03 março 2020

Hy-Brazil: para além da farsa e da tragédia


e se naquela noite os demônios nos aparecessem, para descaradamente em nossa mais desoladora impotência nos dizer: "esta noite, como vocês a estão vivendo e já viveram, vocês terão de viver mais uma vez e por incontáveis vezes: Que Deus tenha misericórdia desta nação”. 

lançados ao chão, entre ranger de dentes e frustrações, virados e revirados pelo avesso, como uma ampulheta girando sem parar, assistiríamos novamente não apenas aquela farsa dantesca encenada no teatro de horrores da Câmara, mas um entrelaçamento interminável de fatos históricos, retornando mais uma vez. e se repetindo, se repetindo, se repetindo...

Auro de Moura Andrade declara vaga a Presidência, em 1964. Collor conclama: "Não me deixem só. Eu preciso de vocês", em 1992. Lula e Dilma choram abraçados, em 2016. 1954: Getúlio sai da vida para entrar na História. 1964: Jango foge para o Uruguai. 12/12/2002: em Washington, Lula anuncia Meirelles no BC. JK sofre um improvável acidente automobilístico fatal, em 22/08/1976. Jango  morre misteriosamente no exílio, 06/12/1976.  Lacerda falece de um ataque cardíaco após ser internado por causa de uma gripe, 21/05/1977.       

numa meticulosa e torturante repetição, nenhuma diferença, sem nada haver de novo, cada qual em sua mesma ordem e sequência. enfadonho. exasperante. deprimente.

1984: a derrota das "Diretas Já". 21/04/1985: Tancredo é declarado morto. 1989: Collor o primeiro Presidente eleito por voto direto após o Golpe de 1964. a reforma da Previdência de Lula em 2003. a crise cambial de FHC em 1999. o escândalo dos anões do orçamento em 1993. 2002: a Carta ao Povo Brasileiro. 1994: o Plano Real. 1979: a Lei da Anistia

raiva, desespero, melancolia. um retorno eterno de farsas e tragédias sem qualquer possibilidade de redenção. fracassos. capitulações. traições.

num ir e vir incessante, percorrendo instantaneamente a espessura do tempo histórico, somente para reviver intensamente cada angústia, cada derrota, cada depressão, num agora oco, vazio, sem qualquer dimensão.

em 2018, com a eleição de Bolsonaro; em 2016, com o golpe do impeachment; em 2015, com o “ajuste fiscal” de Dilma Roussef; em 2014, com a Lava Jato; entre 2009 e 2014, com as desonerações e incentivos para os grandes empresários; em 2005, com o Mensalão; em 2008, com a operação Satiagraha...

não só a tradição de todo um passado morto oprimindo como um pesadelo o cérebro dos vivos, também uma profusão de eventos ainda não acontecidos mas já determinados.

numa esmagadora marcha do futuro para um presente paralisado, invertendo e retorcendo a seta do tempo, com tudo convergindo em direção aquele mesmo instante de um colapso sem fim, como no horizonte de eventos de algum buraco negro.

a entrega do pré-sal; as contra-reformas regressivas; a autonomia do Banco Central; a intervenção militar; o trabalho escravo; o leilão das últimas estatais; o fim do SUS; a eliminação de qualquer direito trabalhista; a liberação de venda de terras para estrangeiros; a revogação das terras indígenas; a militarização do ensino; a cessão da Amazônia; a revisão do Estado laico; a instalação de check-points; o fim das reservas ambientais; a censura na internet; a difusão da ração humana; o racionamento de energia; a privatização da água; a elitização da alfabetização; os comitês de vigilância; a obrigatoriedade do monitoramento eletrônico individual; a normatização da redução populacional; a eutanásia compulsória; a limitação da natalidade; a eliminação dos indesejáveis; os campos de extermínio; a guerra, a fome, a doença, a morte.

o fazer viver e deixar morrer...

aprisionados naquele asfixiante caleidoscópio, com as dobras temporais fechando-se e comprimindo-se mais e mais umas sobre as outras, gota a gota de nossa vitalidade é extraída.

até nada mais restar, somente um corpo inerte, apático, extenuado. já morto, embora ainda vivo. anomia. zumbificação. nenhum desejo, nem mesmo a vontade de morrer.

os mortos nem mais sequer conseguem enterrar os seus mortos.

por que os homens querem fazer sua própria História, se não a podem fazer como querem, e sim sob circunstâncias que não escolhem, aquelas legadas pelo passado?

malditos demônios! revelam-se sem qualquer pudor numa noite de encenação farsesca para nos mergulharem no eterno retorno de uma tragédia infinita.

malditos demônios! a noite na qual a farsa e a tragédia brasileira se uniram em matrimônio indissolúvel, numa cerimônia bancada pelas empresas "campeães nacionais", capitalizadas com recursos públicos para com este mesmo dinheiro comprarem os votos do Golpeachment.

malditos demônios! dissolveram todas as miragens ufanistas para revelar um real que jamais deixara de ser inóspito deserto.

e quando do velho só restara escombros e cinismo, e nas ruínas do caos a circularidade do tempo era experimentada como uma inescapável prisão, um curto-circuito infernal girando no vazio, ainda assim na intensidade avassaladora daquele instante estava presente o tempo como espiral emancipadora.

um espiral de fluxos e contra-fluxos, num incessante processamento, no qual os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, não apenas duas vezes, sob as máscaras da farsa ou da tragédia, mas tantas vezes quantas forem necessárias até serem depurados e ultrapassados.

uma espiral que se abre e se fecha, em ciclos sucessivos e em níveis ascendentes ou descendentes, superpondo incontáveis planos. mil plataformas. cada uma delas não um palco para encenações de farsas e tragédias, mas sim um teatro de operações, campos de batalhas de uma guerra.

uma espiral cuja fase inicial é de agregação, em seu movimento se expande para acumular forças até desembocar numa depuração, a partir da qual pode haver um salto qualitativo para um patamar superior. ou o processo entra em refluxo e decai.

benditos sejam, demônios! jamais fomos derrotados! aquelas derrotas não foram nossas, e sim a de nossas auto ilusões.

a luta não apenas continua, como está apenas recomeçando ainda mais uma vez, em um novo giro das espirais. quanto mais forte e mais rápido se gira, mais poderosa é a força gerada, num dinamismo intrínseco que retroalimenta o processo.

fazer-se movimento além da farsa e da tragédia, para romper com a circularidade infernal de um eterno retorno dos mesmos erros e dos mesmos fracassos, seja sob a forma da farsa ou da tragédia.

em meio ao caos, chegou o imenso momento da criação da diferença.
.

Nenhum comentário: