e se naquela noite os demônios nos aparecessem, para descaradamente em
nossa mais desoladora impotência nos dizer: "esta
noite, como vocês a estão vivendo e já viveram, vocês
terão de viver mais uma vez e por incontáveis vezes: Que
Deus tenha misericórdia desta nação”.
lançados ao chão, entre ranger de dentes e frustrações, virados e
revirados pelo avesso, como uma ampulheta girando sem parar, assistiríamos
novamente não apenas aquela farsa dantesca encenada no teatro de horrores da
Câmara, mas um entrelaçamento interminável de fatos históricos, retornando mais
uma vez. e se repetindo, se repetindo, se repetindo...
Auro de Moura Andrade declara vaga a Presidência, em 1964. Collor conclama: "Não
me deixem só. Eu preciso de vocês", em 1992. Lula e Dilma choram abraçados, em 2016. 1954:
Getúlio sai da vida para entrar na História. 1964: Jango foge para o Uruguai.
12/12/2002: em Washington, Lula anuncia Meirelles no BC. JK sofre um improvável
acidente automobilístico fatal, em 22/08/1976. Jango morre misteriosamente no exílio,
06/12/1976. Lacerda falece de um ataque
cardíaco após ser internado por causa de uma gripe, 21/05/1977.
numa meticulosa e torturante repetição, nenhuma diferença, sem nada haver
de novo, cada qual em sua mesma ordem e sequência. enfadonho. exasperante.
deprimente.
1984: a derrota das "Diretas
Já". 21/04/1985: Tancredo é declarado morto. 1989: Collor o primeiro Presidente
eleito por voto direto após o Golpe de 1964. a reforma da Previdência de Lula
em 2003. a crise cambial de FHC em 1999. o escândalo dos
anões do orçamento em 1993. 2002: a Carta ao Povo
Brasileiro. 1994: o Plano Real. 1979: a Lei da Anistia
raiva, desespero, melancolia. um retorno eterno de farsas e tragédias sem
qualquer possibilidade de redenção. fracassos. capitulações. traições.
num ir e vir incessante, percorrendo instantaneamente a espessura do
tempo histórico, somente para reviver intensamente cada angústia, cada derrota,
cada depressão, num agora oco, vazio, sem qualquer dimensão.
em 2018, com a eleição de Bolsonaro; em 2016, com o golpe do impeachment;
em 2015, com o “ajuste fiscal” de Dilma Roussef; em 2014, com a Lava Jato; entre
2009 e 2014, com as desonerações e incentivos para os grandes empresários; em
2005, com o Mensalão; em 2008, com a operação Satiagraha...
não só a tradição de
todo um passado morto oprimindo como um pesadelo o cérebro dos vivos, também
uma profusão de eventos ainda não acontecidos mas já determinados.
numa esmagadora
marcha do futuro para um presente paralisado, invertendo e retorcendo a seta do
tempo, com tudo convergindo em direção aquele mesmo instante de um colapso sem
fim, como no horizonte de eventos de algum buraco negro.
a entrega do
pré-sal; as contra-reformas regressivas; a autonomia do Banco Central; a
intervenção militar; o trabalho escravo; o leilão das últimas estatais; o fim
do SUS; a eliminação de qualquer direito trabalhista; a liberação de venda de
terras para estrangeiros; a revogação das terras indígenas; a militarização do
ensino; a cessão da Amazônia; a revisão do Estado laico; a instalação de
check-points; o fim das reservas ambientais; a censura na internet; a difusão
da ração humana; o racionamento de energia; a privatização da água; a
elitização da alfabetização; os comitês de vigilância; a obrigatoriedade do
monitoramento eletrônico individual; a normatização da redução populacional; a
eutanásia compulsória; a limitação da natalidade; a eliminação dos
indesejáveis; os campos de extermínio; a guerra, a fome, a doença, a morte.
o fazer viver e
deixar morrer...
aprisionados naquele asfixiante caleidoscópio, com as dobras temporais
fechando-se e comprimindo-se mais e mais umas sobre as outras, gota a gota de
nossa vitalidade é extraída.
até nada mais restar, somente um corpo inerte, apático, extenuado. já
morto, embora ainda vivo. anomia. zumbificação. nenhum desejo, nem mesmo a
vontade de morrer.
os mortos nem mais sequer conseguem enterrar os seus mortos.
por que os homens querem fazer sua própria História, se não a podem fazer
como querem, e sim sob circunstâncias que não escolhem, aquelas legadas pelo
passado?
malditos demônios! revelam-se sem qualquer pudor numa noite de encenação
farsesca para nos mergulharem no eterno retorno de uma tragédia infinita.
malditos demônios! a noite na qual a farsa e a tragédia brasileira se
uniram em matrimônio indissolúvel, numa cerimônia bancada pelas empresas
"campeães nacionais", capitalizadas com recursos públicos para com
este mesmo dinheiro comprarem os votos do Golpeachment.
malditos demônios! dissolveram todas as miragens ufanistas para revelar
um real que jamais deixara de ser inóspito deserto.
e quando do velho só restara escombros e cinismo, e nas ruínas do caos a
circularidade do tempo era experimentada como uma inescapável prisão, um
curto-circuito infernal girando no vazio, ainda assim na intensidade
avassaladora daquele instante estava presente o tempo como espiral
emancipadora.
um espiral de fluxos
e contra-fluxos, num incessante processamento, no qual os fatos e personagens
de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, não apenas
duas vezes, sob as máscaras da farsa ou da tragédia, mas tantas vezes quantas
forem necessárias até serem depurados e ultrapassados.
uma espiral que se abre e se fecha, em ciclos sucessivos e em níveis
ascendentes ou descendentes, superpondo incontáveis planos. mil plataformas.
cada uma delas não um palco para encenações de farsas e tragédias, mas sim um
teatro de operações, campos de batalhas de uma guerra.
uma espiral cuja fase inicial é de agregação, em seu movimento se expande
para acumular forças até desembocar numa depuração, a partir da qual pode haver
um salto qualitativo para um patamar superior. ou o processo entra em refluxo e
decai.
benditos sejam, demônios! jamais fomos derrotados! aquelas derrotas não
foram nossas, e sim a de nossas auto ilusões.
a luta não apenas continua, como está apenas recomeçando ainda mais uma
vez, em um novo giro das espirais. quanto mais forte e mais rápido se gira,
mais poderosa é a força gerada, num dinamismo intrínseco que retroalimenta o
processo.
fazer-se movimento além da farsa e da tragédia, para romper com a
circularidade infernal de um eterno retorno dos mesmos erros e dos mesmos
fracassos, seja sob a forma da farsa ou da tragédia.
em meio ao caos, chegou o imenso momento da criação da diferença.
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