15 abril 2007

entreato

a inabalável popularidade de Lula e de seu governo, confirmada pelas últimas pesquisas de opinião pública, tornou-se o pior dos pesadelos para as oposições conservadoras.


pode acontecer qualquer coisa que não vai dar em nada, porque o país já não se assusta com mais nada. o governo está protegido, blindado. [1]

se hoje Lula parece inexpugnável, uma das origens de sua atual blindagem se deve a diversos erros estratégicos das oposições.

num passado não tão remoto, em dezembro de 2005, Lula descera aos infernos. teve a mais baixa taxa de aprovação a seu governo (28%), com a mais alta reprovação (29%). enquanto a cúpula do PT desmoronava, deputados do partido choravam no plenário e ministros sugeriam a Lula renunciar, PFL e PSDB optaram por fazer o Presidente sangrar até as eleições. [2]


em janeiro de 2006, Serra tinha o dobro das intenções de votos de Alckmin. apesar disto, o tucanato, sempre tão cheio de pavões, começou a exibir papagaios aos montes, galinhas-d’angola, pardais, periquitos, uma vasta algaravia ornitológica. então, com raro senso de ousadia, o PSDB decidiu abrir mão de quem tem o dobro para escolher quem tem a metade. convenha-se: é preciso bastante “coragem” para fazer tal opção. o que mais impressiona é que o PT não precisou mover uma palha para que o PSDB entrasse em transe. ele fez isso absolutamente sozinho. a política brasileira é mesmo um chuchuzinho. [3]

no início do primeiro governo Lula, a Esquerda se dedicou a formular explicações para a contradição do PT dar continuidade ao modelo econômico de FHC. em algum momento, conjeturava-se, Lula colocaria em prática um suposto “Plano B”, coerente com seu histórico na oposição e capaz, enfim, de implementar as promessas de campanha. o tempo se encarregou de provar que se o tal “Plano B” estava tão bem escondido é porque nunca chegou sequer a existir. [4]

mesmo com o fraco desempenho nacional nas eleições de 2006, menos de 7%, Heloísa Helena teve no estado do Rio de Janeiro 17% dos votos, alcançando 20% na capital. numa eleição polarizada, HH e Cristovam dividiram 25% do eleitorado do RJ. sem qualquer prejuízo para Lula, que obteve mais de 49%. infelizmente, a frente de apoio a HH, formada pelo P-SOL, PSTU e PCB, mostrou-se coerente com o insuperável talento da esquerda em sucumbir aos seus próprios conflitos internos. e nem mesmo um programa de governo foram capazes de produzir. [5]

após o fracasso em duas eleições sucessivas, PSDB e PFL-DEM decididamente não demonstram a menor vocação para o incômodo papel de oposição a que se viram alijados. com sua política sem povo e cúmplices do governo no apoio ao modelo econômico, só lhes resta como arena de batalha o circo da grande mídia.

o patriarcado da política brasileira ainda acredita que, para virar o jogo a seu favor, basta xingar Lula de “ladrão”. no fundo, o que não aceita é a quebra do monopólio da corrupção, algo que deteve pelos últimos 500 anos. o eleitorado pobre se identifica com Lula e ao olhar para os oligarcas vê a cara do patrão e do desemprego. o raciocínio é simples: ladrão por ladrão, é melhor que seja um da nossa turma que conseguiu chegar lá. [6]

entretanto, seria um grave erro concluir que a força de Lula vem da fraqueza das oposições, conservadoras ou não. é preciso compreender Lula não pelo que lhe falta e sim pelo que o tornou possível.

nossa história tem sido uma sucessão de modernizações conservadoras e transições tuteladas, sem jamais incluir no "pacto democrático" as classes trabalhadoras, [7] o que nos mantém aprisionados entre dois mundos: um definitivamente morto e outro que luta por vir à luz. [8]

a cada vez que o processo histórico desemboca numa crise, impondo a necessidade de mudanças, se restabelece no Brasil um acordo de cúpula, pactuado pelas elites, e a mudança se reduz a um rearranjo que tudo muda para que nada fique diferente. [9]

em 1980, o PT surge como um partido eminentemente não parlamentar, nascido do movimento social, firmemente apoiado nas bases, com um sólido conceito de democracia interna e voltado para a criação de um socialismo libertário. então, a roda da História se pôs a girar mais decidida do que nunca no Brasil. pela primeira vez neste país, os trabalhadores reivindicavam a condição de protagonistas. [10] começava a se romper nossa exasperante tradição de mudanças lentas, seguras e graduais.

a eleição de Lula em 2002 marca uma escolha inédita: a opção pela mudança e a rejeição ao continuísmo. [11] Lula foi eleito como um símbolo vivo de oposição a um modelo sócio-econômico. suas características pessoais e sua trajetória política fizeram dele o homem certo para receber as expectativas de 53 milhões de Brasileiros. [12]

conduzido nos ombros da plebe ao palácio com a missão de mudar o Brasil, o presidente filho do povo operou o maior estelionato eleitoral da história do país. de tanto fingir o que é, o homem acabou por se tornar aquilo que fingia, mas que de fato era. a mais completa impostura na sincera mentira de representar a verdade. [13]

porém, a primeira eleição de Lula não foi um parêntesis histórico. com a reeleição, a população brasileira reafirma modo inequívoco a sua escolha. a vontade de mudança, reprimida por décadas, séculos, expressou-se mais uma vez pacificamente, democraticamente. [14]

mais do que no carisma ou na identificação com as camadas mais pobres da população, a força de Lula deve ser buscada em poderosos movimentos históricos, para os quais um simples homem não passa de humilde instrumento, expressão de um projeto coletivo. [15]

o Lula Presidente se esmera no extenuar do auge de seu poder em postergações, hesitações, meias-medidas, apaziguamentos, conciliações, recuos e capitulações voluntárias.

como uma metáfora encarnada do processo histórico brasileiro, no qual, muito embora imposta como necessária pelo próprio desenvolvimento da sociedade, a mudança é sempre adiada ao máximo, e, ao se tornar inevitável, é antecipada, para que, no transigir, se possa limitá-la.

para o desespero das oposições conservadoras, a força de Lula advém de que não há mais retrocesso para o Brasil. as massas populares serão o protagonista de qualquer novo projeto nacional que se pretenda legítimo. a inclusão social passa a ser o ponto central da política. [16]

o simples fato de Lula ser eleito fez com que tudo mudasse, mesmo que seu Governo não mudasse nada! a política no Brasil jamais será a mesma. [17] a nação não mais será a mesma após o Governo Lula. apesar dele, tudo mudou. tudo mudará. [18]

após Collor e FHC, Lula marca o fim de um ciclo. a definitiva falência não apenas de um modelo sócio-econômico, como de uma estrutura política que se demonstraram incapazes de desenvolver o Brasil e proporcionar qualidade de vida aos seus habitantes. [19]

eleito por duas vezes em nome da mudança, Lula se tornou o último bastião do continuísmo. desafiado a fazer História, prefere envelhecer calmamente, orgulhoso e impenitente. ao querer ousar, para fazer mover o destino de um povo e de uma nação, apenas aguarda, em espera paciente, a instauração de um consenso abrangente e duradouro. [20] entretanto, a cada vez que os homens se pretendem mais espertos que a História, acabam logrados como tolos.

com o Brasil imobilizado na travessia, sem que possa retornar e interditado seu avanço, a desolação do cenário político provoca indignação e desalento. mesmo que nada se ouça, além do silêncio, ainda assim é possível sentir um grito infinito atravessando a paisagem. [21]

embora possua asas, na maior parte das vezes o Dragão apenas se arrasta pelo fundo lamacento das águas. enquanto ondula seu corpo ao rastejar, fazendo com que a terra afunde sob seu peso, o Dragão supõe que está alçando vôo. volta e meia um vago sentimento lhe aturde. então, como se fosse um sonho, o Dragão entrevê num lapso que acima da lama e da água pairam o ar e o céu. [22]


1 Marco Antonio Villa, 04/04/2007
2 arkx, "por bem , ou por mal", 05/11/2006
3 Reinaldo Azevedo, em 40 textos defendendo a candidatura de Serra à Presidência, 2006
4 arkx, "o lado B", 24/08/20065
5 arkx, "à esquerda", 07/10/2006
6 arkx, "giro no vazio", 28/10/2006
7 Maria da Conceição Tavares, "Política e economia na formação do Brasil contemporâneo"
8 Sérgio Buarque de Holanda, "Raízes do Brasil"
9 Raymundo Faoro, "Existe um pensamento político brasileiro?"
10 arkx, "a sola dos sapatos de FHC e a roda da História", 13/12/2002
11 arkx, "a hora da verdade", 14/12/2002
12 arkx, "tenham uma boa amnésia...", 16/12/2002
13 arkx, "tudo mudará", 05/09/2005
14 Lula, Discurso de posse na Câmara, 2007
15 Lula, Discurso de posse na Câmara, 2007
16 Luis Nassif, "Os cabeças de planilhas"
17 arkx, "a mudança de todos nós", 12/01/2003
18 arkx, "tudo mudará", 05/09/2005
19 arkx, "bando selvagem", 30/09/2006
20 Roberto Mangabeira Unger, "Crescer sem dogma", Folha de São Paulo, 13/03/2007
21 Edvard Munch, sobre "O Grito"
22 arkx, "o Tigre e o Dragão", 12/12//2002

11 abril 2007

o grito

nas últimas eleições, Lula enfrentou um poderoso arco de forças, ao qual impôs uma derrota arrasadora. sua reeleição o trouxe a uma situação absolutamente singular. lastreado na própria imagem e popularidade, Lula não se descolou somente do PT, move-se através da estrutura partidária e acima do sistema político com a desenvoltura de um mito.
[1]

Lula converteu-se num mito, e o mito é antipolítico por excelência, acima das classes, dos conflitos.
[2]

muito embora a dinâmica do segundo turno das eleições de 2006 tenha obrigado Lula a carimbar seu novo mandato como "desenvolvimentista"
[3], o perfil do governo surgido da reforma ministerial é, mais uma vez, afinado com os interesses derrotados nas urnas.

sem luz própria, a feição do novo ministério é a de um ajuntamento para o desfrute da máquina estatal, posta a serviço do continuísmo do modelo econômico dominante. um ministério apagado e de perfil baixo, que não manda, não pode e não vale nada, é de grande valia para os negócios que estão dominando a política.
[4]

com a área econômica blindada pelo “sucesso”
[5], a política econômica se reduz a mero processo de acomodamento de pressões. [6]

lançado com a pretensão de acelerar a retomada do desenvolvimento, o PAC prossegue empacado. tudo indica que se tornará o “Fome Zero” do segundo mandato: puro marketing de início de governo.

pela política monetária prevista no PAC, somente em 2010 será alcançada uma taxa de juros de 10% ao ano, o que é incompatível com o objetivo do crescimento. os ativos financeiros permanecem mais atraentes que o investimento produtivo. e não se reduz de forma significativa a despesa do governo Federal com pagamento de juros, inviabilizando os investimentos públicos.
[7]

até mesmo parcelas da Direita mais conservadora parecem já ter desvendado o enigma brasileiro.

por um lado: os ricos gritam "Enxuguem o Estado!", mas querem continuar nadando na piscina das verbas oficiais. prosternam-se ante a autoridade governamental e depois reclamam que ela os oprime com sobrecarga de impostos e de exigências burocráticas.
[8]

e do outro: a maior fonte de recursos do BNDES é o FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), um fundo gerido pela classe trabalhadora. ou seja, o FAT é o maior financiador de capital de longo prazo no país. entretanto, os trabalhadores que ascendem à função de gestão desses recursos estão focados exclusivamente na rentabilidade do capital. embora sob gestão dos trabalhadores, os recursos do FAT passam, então, a financiar uma reestruturação econômica que só produz desemprego.
[9]

trabalhadores transformados em operadores de fundos públicos se entrelaçam com as tradicionais e novas oligarquias brasileiras, sempre dependuradas nos subsídios governamentais, nas desonerações tributárias, nas renúncias fiscais, na rentabilidade farta e segura dos títulos públicos da dívida interna.

a identidade dos dois casos reside no controle do acesso aos recursos públicos, no conhecimento do “mapa da mina”.

a desolação do cenário político brasileiro provoca indignação e desalento. mesmo que nada se ouça, além do silêncio, ainda assim é possível sentir um grito infinito atravessando a paisagem.
[10]

conforme pesquisa da CNT/Sensus [11], o governo tem avaliação positiva de 49% dos entrevistados e o desempenho pessoal de Lula atinge 63% de aprovação. ainda que no auge de seu poder, Lula não tem como eternizar a duração desse momento. a festa da reeleição fica para trás. começa a longa e desgastante travessia do segundo mandato.

parte majoritária da Esquerda se manteve paralisada no primeiro governo de Lula, tido então como supostamente em disputa. apesar de ter um mundo a ganhar, coube a Esquerda colocar tudo a perder. mesmo que fosse contra as políticas do Governo Lula, ainda assim se manteve a favor dele. mais do que esquizofrenia política, tal postura é um grave problema de ética. não importa que o “nosso” governo tenha uma prática contrária aos “nossos” interesses, ainda assim é o “nosso” governo e cabe a “nós” defendê-lo a todo custo até o último instante. [12]

para romper o silêncio gritante no qual se imobilizou, a Esquerda não terá opção a não ser criticar constantemente a si própria, interromper continuamente seu curso, voltar ao que parecia resolvido para recomeçá-lo outra vez, escarnecer com impiedosa consciência as deficiências, fraquezas e misérias de seus primeiros esforços, parece derrubar seu adversário apenas para que este possa retirar da terra novas forças e erguer-se novamente, agigantado, diante dela, recuar constantemente ante a magnitude infinita de seus próprios objetivos até que se cria uma situação que toma impossível qualquer retrocesso e na qual as próprias condições gritam:

aqui está o Brasil, salta aqui! [13]





[1]
arkx, "Lula II: o Homem-Presidência", 26/10/2006
[2]
Francisco de Oliveira, entrevista ao O Globo, 04/02/2007
[3]
arkx, "a terceira via", 18/10/2006
[4]
Léo Lince, "Modo lulista de governar", 05/04/2007
[5]
Lula, 04/03/2007
[6]
Luis Nassif, "Um país sem sorte", 05/04/2007
[7]
João Sicsú , "Depois de quatro anos: governo tenta mudar o rumo"
[8] Olavo de Carvalho, citado no blog do Reinaldo Azevedo, 09/04/2007
[9] Francisco de Oliveira, "O ornitorrinco"
[10] Edvard Munch sobre "O Grito"
[11] 11/04/2007
[12] arkx, "o nosso governo", 05/10/2003
[13] Karl Marx, "O 18 Brumário"

08 abril 2007

tragédia e farsa

mesmo após o fim da escravidão e da proclamação da República, o uso da chibata como medida disciplinar continuou sendo aplicado na Marinha brasileira.

como nos tempos do pelourinho, os marinheiros, em esmagadora maioria negros, eram açoitados, por determinação da oficialidade branca, ao som de tambores e diante dos companheiros perfilados.

durante a Revolta da Chibata, deflagrada em 22/11/1910, os marujos negros, liderados por João Cândido, se amotinam pelo fim da chibata, criando um impasse institucional.

os comandantes da Marinha queriam uma rigorosa punição dos sublevados. governo e políticos avaliavam que, naquele momento, os marinheiros estavam militarmente mais fortes, pois controlavam os principais navios da armada, mantendo os canhões apontados para a capital da República.

o governo foi pego de surpresa. grande parte da população da cidade se entrega ao pânico. somente em um dia partem 12 trens especiais para Petrópolis, levando 3.000 pessoas.

o povo comum está feliz. a gente de cor, os escravos de ontem, sorriem com orgulho mostrando a brancura de seus dentes, porque vem nascer para eles uma nova era de liberdades não sonhadas. [1]

em 1850, na província do Rio de Janeiro, o número de escravos (294.000) ultrapassava o número de livres e libertos (264.000). na cidade do Rio, viviam na mesma data, 266.000 habitantes dos quais 110.000 (41%) eram escravos, formando a maior concentração urbana de cativos das Américas e da época moderna. ricos, remediados e pobres; padres, padeiros e militares; fazendeiros e escreventes; muita gente possuía escravos. [2]

Rui Barbosa apóia os marinheiros e condena os “abusos com os quais, na gloriosa época do abolicionismo, levantamos a indignação dos nossos compatriotas”.

a revolta dura cinco dias e acaba vitoriosa. os amotinados são anistiados com a aprovação de um projeto, em cujo artigo 1° constava:

"Será concedida anistia aos insurretos da Armada Nacional, se estes, dentro do prazo que lhes fora marcado, pelo Governo, se submeterem às autoridades constituídas".

porém, logo vem a traição. a anistia fora uma farsa para desarmar os amotinados.

os marinheiros procuram Rui Barbosa, mas sequer são recebidos. civis e militares se unem para restaurar honra e brios da Marinha.

não podiam admitir que João Cândido, o "Almirante Negro", se tornasse a alma da Marinha brasileira. e que sua sombra fosse o ídolo dos marinheiros de amanhã. e tivesse suas façanhas cantadas pela massa popular, que imortaliza mais que os bronzes oficiais. [3]

os líderes do movimento são expulsos. cerca de 100 marinheiros são presos e mandados, nos porões do navio "Satélite", para serem abandonados na Floresta Amazônica. alguns são fuzilados e atirados no mar.

na noite de Natal de 1910, João Cândido é preso e enviado para uma masmorra na Ilha das Cobras, com mais 17 companheiros. são jogados em uma cela recém-lavada com água e cal. na manhã seguinte, sobreviviam apenas dois presos. um deles, João Cândido. o médico da Marinha, no entanto, diagnosticou a causa das mortes como sendo "insolação".

seria impossível explicar os modestos avanços e os contínuos recuos do processo democrático no Brasil sem incluir aí a colaboração ativa da burguesia brasileira. [4]

a cada vez que desafiados pelos trabalhadores, os setores dominantes brasileiros nunca hesitaram em reagir com violência brutal. forte com os fracos e submissa aos poderosos, a burguesia brasileira jamais teve o menor prurido em se manter de joelhos frente ao capital internacional.

fatos e personagens de grande importância na história ocorrem, por assim dizer, duas vezes. a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. [5]

em acordo firmado com os controladores de vôo, para por fim ao movimento grevista [6], o governo Lula se comprometera a rever transferências e afastamentos e assegurava que não seriam praticadas punições em decorrência da greve. também abria um canal permanente de negociação com representantes da categoria, inclusive dos controladores militares, para o aprimoramento do tráfego aéreo brasileiro, tendo como referência a implantação gradual de uma solução civil.

os grandes meios de comunicação se unem na exigência de punição aos grevistas, condenam a posição conciliatória do governo e incitam uma rebelião militar.

um presidente incompetente e leniente [7] cedera à extorsão dos amotinados, desautorizando o comando da Aeronáutica, enquanto deveria ter erradicado a insubordinação e punido os infratores [8], que se valeram até da sublevação e da chantagem para emancipar-se das Forças Armadas. [9]

após oficiais da Aeronáutica, encarregados da chefia do tráfego aéreo, abandonarem seu posto [10], falta tão grave quanto à dos controladores, e a coação sofrida em reunião convocada unilateralmente pelos comandantes militares [11], algo inadmissível numa democracia consolidada, na qual a sociedade civil tem controle sobre os militares, Lula volta atrás e rasga o acordo assinado com os controladores. [12]

as raízes da atual crise aérea são contemporâneas ao início do sucateamento dos serviços públicos brasileiros, remontando aos governos Collor e FHC.

matéria publicada no Jornal da Tarde, em 13/12/2000, com o título "Controle de vôo: profissão perigo", já relatava que o tráfego aéreo estava à beira de um colapso, com a tecnologia cheia de falhas, as normas internacionais de segurança desrespeitadas diariamente e as condições de trabalho prejudicando a saúde dos controladores de vôo, aumentando ainda mais os riscos de acidentes. [13]

em 12/12/2006 relatório do TCU (Tribunal de Contas da União) apontou o contingenciamento de recursos como a principal causa para o "apagão" aéreo. desde 2004, foram cortados R$ 522 milhões do setor. [14]

apesar de todas as suas postergações, hesitações, meias-medidas, apaziguamentos e conciliações, o governo Lula sempre sabe como atender com presteza imediata a voz do dono.

o rendimento da poupança estava incomodando os banqueiros e foi alterado sem delongas. os resseguros privatizados precisavam de regulação para abrigar os interesses das grandes corporações e ela veio com a rapidez de um relâmpago. [15]

decisão tomada no âmbito da CVM e BC, que são órgãos reguladores, sem poder decisório, permite a fundos multimercados investir no exterior, sancionando, num país que tanto necessita de capitais de investimento, a exportação de capitais. [16]

ao fazerem sua própria história, os homens não a fazem como querem, sob circunstâncias de sua escolha, e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. a tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. [17]

todo um povo que pensava ter comunicado a si próprio um forte impulso para diante, se encontra de repente trasladado a uma época morta, e para que não possa haver sombra de dúvida quanto ao retrocesso, surgem novamente as velhas datas, o velho calendário, os velhos nomes, os velhos éditos e os velhos esbirros da lei que há muito pareciam desfeitos na poeira dos tempos. [18]



[1] Joaquim Edwards Bello, "Tres Meses en Rio de Janeiro"
[2] Luiz Felipe de Alencastro, "II - O escravismo no Brasil, em Cuba e nos EUA"
[3] Joaquim Edwards Bello, "Tres Meses en Rio de Janeiro"
[4] Octávio Ianni, "A revolução brasileira"
[5] Karl Marx, "O 18 Brumário"
[6] 31/03/2007
[7] Eliane Catanhêde, "Incompetência e leniência", 03/04/2007
[8] Editorial da Folha de São Paulo, 01/04/2007
[9] Editorial da Folha de São Paulo, 03/04/2007
[10] 01/04/2007
[11] 02/04/2007
[12] arkx, "a lição da chibata", 04/04/2007
[13] Fernando Silva, "A crise do tráfego aéreo e o movimento dos controladores"
[14] Juliano Basile, Valor Econômico, 13/12/2006
[15] Léo Lince, "Modo lulista de governar", 05/04/2007
[16] Luis Nassif, "Exportando capitais", 02/04/2007
[17] Karl Marx, "O 18 Brumário"
[18] Karl Marx, "O 18 Brumário"

04 abril 2007

a lição da chibata

os indômitos comandantes militares brasileiros, tão corajosos no ressurgir da chibata nas costas dos controladores de vôo, têm em comum o fato de que nunca estiveram em missão de combate.

é no calor da luta no campo de batalha que enfim se compreende a distinção entre hierarquia e liderança.

em arriscadas operações de assalto ou na defesa encarniçada de posições nas trincheiras, são os líderes que conduzem a tropa à vitória.

um bom líder não abre mão da disciplina e respeita a hierarquia, mas sabe que a força de sua liderança não advém nem da disciplina e muito menos da hierarquia.

o bom líder conquista o respeito de seus comandados por nunca os abandonar a própria sorte. um bom líder está sempre à frente de seus homens. um bom líder não emite ordens irracionais e não submete seus soldados a baixas desnecessárias.

um bom líder é reverenciado pelos subordinados. sua voz de comando eleva o moral da tropa, que se orgulha de morrer sob suas ordens.

um bom líder se mantém na linha de frente, ombro a ombro com os soldados, e vê a cada um deles como um irmão, por quem se mata e se morre.

um bom líder jamais é esquecido pela História, mesmo se a ele caiba por monumento apenas pedras pisadas no cais. [1]

guerra e política se entrelaçam, sendo uma a continuação da outra, ainda que sob formas distintas.

desde a queda do Boeing da Gol, em novembro de 2006, até a greve dos controladores em 30/03/2007, nenhum dos bravos brigadeiros, agora tão categóricos em restaurar a cadeia de comando, tomou qualquer iniciativa para resolver a degradação do sistema de controle aéreo.

preserve-se a qualquer custo a hierarquia. não interessa se os Boeings continuem caindo...

metam a chibata nos controladores. punam. retaliem. transfiram. expulsem. enterrem os mestres-salas dos ares nos subterrâneos das masmorras.

mas o que os controladores querem? quais eram a reivindicações dos marujos na Revolta da Chibata?

como nos tempos do pelourinho, os marinheiros, em esmagadora maioria negros, eram açoitados, por determinação da oficialidade branca, ao som de tambores e diante dos companheiros perfilados.

muito embora pela legislação da Marinha fossem 25 as chibatadas regulamentares, para a preservação da hierarquia militar ainda não eram em quantidade suficiente.

em 22 de novembro de 1910, pela ponta da chibata, rubras cascatas jorraram das costas do marinheiro negro Marcelino Rodrigues Menezes. recebeu 250 chibatadas. desmaiou, mas os açoites continuaram.

decididos a colocar um basta à chibata e não serem mais escravos dos oficiais, os marinheiros se rebelam e tomam os principais navios da frota. os sublevados hasteiam bandeiras vermelhas e um pavilhão: "Ordem e Liberdade".

liderados por um filho de escravos, João Cândido Felisberto, os marinheiros emitem um ultimato:

"O governo tem que acabar com os castigos corporais, melhorar nossa comida e dar anistia a todos os revoltosos. Senão, a gente bombardeia a cidade, dentro de 12 horas." [2]

e o que os controladores querem?

abrir um canal de negociação sobre remuneração [3] e uma permanente negociação com seus representantes, inclusive dos controladores militares, para o aprimoramento do tráfego aéreo brasileiro. [4]

os controladores de vôo estão brigando para trabalhar. lutam por melhores condições de trabalho, cujo maior beneficiado será o usuário dos serviços.

o caos nos aeroportos e a deterioração do controle aéreo são o resultado de mais um serviço público brasileiro sucateado, como a saúde, a educação, a infraestrutura terrestre, portuária, energética...

a falta de investimentos é correspondente ao superávit primário e ao pagamento de juros da dívida interna destinados aos bancos e grandes investidores, na mais brutal concentração de renda e riqueza do planeta.

Lula afirma ter sido "apunhalado pelas costas" e "traído" por um grupo de "irresponsáveis". [5] entretanto, ao assumir o cargo, Lula jogou no lixo tudo o que ele e seu partido haviam dito e escrito durante seus primeiros 23 anos de história. se isso não é traição, rasguem-se os dicionários. [6]

Lula, de fato, parece ter uma definição muito particular do que seja traição.

após oficialidade da Aeronáutica, encarregada da chefia do tráfego aéreo, abandonar seu posto, falta tão grave quanto a dos controladores, e a coação sofrida em reunião convocada unilateralmente pelos comandantes militares, algo inadmissível numa democracia consolidada, na qual a sociedade civil tem controle sobre os militares, Lula volta atrás e rasga o acordo assinado com os controladores.

Lula, o senhor dos consensos, desde que erguidos sob o primado dos poderosos, ex-metalúrgico e líder grevista, prefere compor com quem manda. e a ordem do dia é inequívoca: são sempre os trabalhadores que estão errados.

em sua ânsia de ser aceito pelas elites, Lula se recusa a aceitar a mais básica das lições, que a cada crise de seu governo lhe é cuspida na face.

pouco importa seus ternos exclusivos, sua renovada arcada dental, seus charutos e seus vinhos, seu botox e seu aero-Lula, seus 53 milhões de votos e sua reeleição consagradora.

para as elites, pouca importa Lula ser o Presidente da República, porque sempre será aquilo que nunca deixou de ser: um "baiano", um "paraíba". apedeuta. incompetente. analfabeto. leniente. inapetente. ignorante. vagabundo. um trabalhador brasileiro.

décadas após a Revolta da Chibata, em plena ditadura militar, os compositores João Bosco e Aldir Blanc tiveram problemas com a censura, por causa de música em homenagem João Cândido, o "Almirante Negro", líder dos marinheiros amotinados. apesar das diversas mudanças feitas, o Departamento de Censura não liberava a letra. até que um censor lhes esclareceu melhor: "Vocês estão trocando as palavras como revolta, sangue... E não é aí que a coisa tá pegando... O problema é essa história de negro, negro, negro..."

um bom líder jamais abandona seus homens, porque sabe que, acima de qualquer disciplina e hierarquia, é só por eles que vale a pena lutar e morrer.

glória a todas as lutas inglórias, que através da nossa história não serão esquecidas jamais.




[1] João Bosco e Aldir Blanc, "O mestre sala dos mares"
[2] João Cândido Felisberto
[3] item 3 do acordo firmado por escrito entre governo e controladores de vôo, 31/03/2007
[4] item 2 do acordo firmado por escrito entre governo e controladores de vôo, 31/03/2007
[5] Lula, 03/04/2007
[6] Clóvis Rossi, "Trair e coçar é só começar", 04/04/2007