04 abril 2007

a lição da chibata

os indômitos comandantes militares brasileiros, tão corajosos no ressurgir da chibata nas costas dos controladores de vôo, têm em comum o fato de que nunca estiveram em missão de combate.

é no calor da luta no campo de batalha que enfim se compreende a distinção entre hierarquia e liderança.

em arriscadas operações de assalto ou na defesa encarniçada de posições nas trincheiras, são os líderes que conduzem a tropa à vitória.

um bom líder não abre mão da disciplina e respeita a hierarquia, mas sabe que a força de sua liderança não advém nem da disciplina e muito menos da hierarquia.

o bom líder conquista o respeito de seus comandados por nunca os abandonar a própria sorte. um bom líder está sempre à frente de seus homens. um bom líder não emite ordens irracionais e não submete seus soldados a baixas desnecessárias.

um bom líder é reverenciado pelos subordinados. sua voz de comando eleva o moral da tropa, que se orgulha de morrer sob suas ordens.

um bom líder se mantém na linha de frente, ombro a ombro com os soldados, e vê a cada um deles como um irmão, por quem se mata e se morre.

um bom líder jamais é esquecido pela História, mesmo se a ele caiba por monumento apenas pedras pisadas no cais. [1]

guerra e política se entrelaçam, sendo uma a continuação da outra, ainda que sob formas distintas.

desde a queda do Boeing da Gol, em novembro de 2006, até a greve dos controladores em 30/03/2007, nenhum dos bravos brigadeiros, agora tão categóricos em restaurar a cadeia de comando, tomou qualquer iniciativa para resolver a degradação do sistema de controle aéreo.

preserve-se a qualquer custo a hierarquia. não interessa se os Boeings continuem caindo...

metam a chibata nos controladores. punam. retaliem. transfiram. expulsem. enterrem os mestres-salas dos ares nos subterrâneos das masmorras.

mas o que os controladores querem? quais eram a reivindicações dos marujos na Revolta da Chibata?

como nos tempos do pelourinho, os marinheiros, em esmagadora maioria negros, eram açoitados, por determinação da oficialidade branca, ao som de tambores e diante dos companheiros perfilados.

muito embora pela legislação da Marinha fossem 25 as chibatadas regulamentares, para a preservação da hierarquia militar ainda não eram em quantidade suficiente.

em 22 de novembro de 1910, pela ponta da chibata, rubras cascatas jorraram das costas do marinheiro negro Marcelino Rodrigues Menezes. recebeu 250 chibatadas. desmaiou, mas os açoites continuaram.

decididos a colocar um basta à chibata e não serem mais escravos dos oficiais, os marinheiros se rebelam e tomam os principais navios da frota. os sublevados hasteiam bandeiras vermelhas e um pavilhão: "Ordem e Liberdade".

liderados por um filho de escravos, João Cândido Felisberto, os marinheiros emitem um ultimato:

"O governo tem que acabar com os castigos corporais, melhorar nossa comida e dar anistia a todos os revoltosos. Senão, a gente bombardeia a cidade, dentro de 12 horas." [2]

e o que os controladores querem?

abrir um canal de negociação sobre remuneração [3] e uma permanente negociação com seus representantes, inclusive dos controladores militares, para o aprimoramento do tráfego aéreo brasileiro. [4]

os controladores de vôo estão brigando para trabalhar. lutam por melhores condições de trabalho, cujo maior beneficiado será o usuário dos serviços.

o caos nos aeroportos e a deterioração do controle aéreo são o resultado de mais um serviço público brasileiro sucateado, como a saúde, a educação, a infraestrutura terrestre, portuária, energética...

a falta de investimentos é correspondente ao superávit primário e ao pagamento de juros da dívida interna destinados aos bancos e grandes investidores, na mais brutal concentração de renda e riqueza do planeta.

Lula afirma ter sido "apunhalado pelas costas" e "traído" por um grupo de "irresponsáveis". [5] entretanto, ao assumir o cargo, Lula jogou no lixo tudo o que ele e seu partido haviam dito e escrito durante seus primeiros 23 anos de história. se isso não é traição, rasguem-se os dicionários. [6]

Lula, de fato, parece ter uma definição muito particular do que seja traição.

após oficialidade da Aeronáutica, encarregada da chefia do tráfego aéreo, abandonar seu posto, falta tão grave quanto a dos controladores, e a coação sofrida em reunião convocada unilateralmente pelos comandantes militares, algo inadmissível numa democracia consolidada, na qual a sociedade civil tem controle sobre os militares, Lula volta atrás e rasga o acordo assinado com os controladores.

Lula, o senhor dos consensos, desde que erguidos sob o primado dos poderosos, ex-metalúrgico e líder grevista, prefere compor com quem manda. e a ordem do dia é inequívoca: são sempre os trabalhadores que estão errados.

em sua ânsia de ser aceito pelas elites, Lula se recusa a aceitar a mais básica das lições, que a cada crise de seu governo lhe é cuspida na face.

pouco importa seus ternos exclusivos, sua renovada arcada dental, seus charutos e seus vinhos, seu botox e seu aero-Lula, seus 53 milhões de votos e sua reeleição consagradora.

para as elites, pouca importa Lula ser o Presidente da República, porque sempre será aquilo que nunca deixou de ser: um "baiano", um "paraíba". apedeuta. incompetente. analfabeto. leniente. inapetente. ignorante. vagabundo. um trabalhador brasileiro.

décadas após a Revolta da Chibata, em plena ditadura militar, os compositores João Bosco e Aldir Blanc tiveram problemas com a censura, por causa de música em homenagem João Cândido, o "Almirante Negro", líder dos marinheiros amotinados. apesar das diversas mudanças feitas, o Departamento de Censura não liberava a letra. até que um censor lhes esclareceu melhor: "Vocês estão trocando as palavras como revolta, sangue... E não é aí que a coisa tá pegando... O problema é essa história de negro, negro, negro..."

um bom líder jamais abandona seus homens, porque sabe que, acima de qualquer disciplina e hierarquia, é só por eles que vale a pena lutar e morrer.

glória a todas as lutas inglórias, que através da nossa história não serão esquecidas jamais.




[1] João Bosco e Aldir Blanc, "O mestre sala dos mares"
[2] João Cândido Felisberto
[3] item 3 do acordo firmado por escrito entre governo e controladores de vôo, 31/03/2007
[4] item 2 do acordo firmado por escrito entre governo e controladores de vôo, 31/03/2007
[5] Lula, 03/04/2007
[6] Clóvis Rossi, "Trair e coçar é só começar", 04/04/2007

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