15 abril 2007

entreato

a inabalável popularidade de Lula e de seu governo, confirmada pelas últimas pesquisas de opinião pública, tornou-se o pior dos pesadelos para as oposições conservadoras.


pode acontecer qualquer coisa que não vai dar em nada, porque o país já não se assusta com mais nada. o governo está protegido, blindado. [1]

se hoje Lula parece inexpugnável, uma das origens de sua atual blindagem se deve a diversos erros estratégicos das oposições.

num passado não tão remoto, em dezembro de 2005, Lula descera aos infernos. teve a mais baixa taxa de aprovação a seu governo (28%), com a mais alta reprovação (29%). enquanto a cúpula do PT desmoronava, deputados do partido choravam no plenário e ministros sugeriam a Lula renunciar, PFL e PSDB optaram por fazer o Presidente sangrar até as eleições. [2]


em janeiro de 2006, Serra tinha o dobro das intenções de votos de Alckmin. apesar disto, o tucanato, sempre tão cheio de pavões, começou a exibir papagaios aos montes, galinhas-d’angola, pardais, periquitos, uma vasta algaravia ornitológica. então, com raro senso de ousadia, o PSDB decidiu abrir mão de quem tem o dobro para escolher quem tem a metade. convenha-se: é preciso bastante “coragem” para fazer tal opção. o que mais impressiona é que o PT não precisou mover uma palha para que o PSDB entrasse em transe. ele fez isso absolutamente sozinho. a política brasileira é mesmo um chuchuzinho. [3]

no início do primeiro governo Lula, a Esquerda se dedicou a formular explicações para a contradição do PT dar continuidade ao modelo econômico de FHC. em algum momento, conjeturava-se, Lula colocaria em prática um suposto “Plano B”, coerente com seu histórico na oposição e capaz, enfim, de implementar as promessas de campanha. o tempo se encarregou de provar que se o tal “Plano B” estava tão bem escondido é porque nunca chegou sequer a existir. [4]

mesmo com o fraco desempenho nacional nas eleições de 2006, menos de 7%, Heloísa Helena teve no estado do Rio de Janeiro 17% dos votos, alcançando 20% na capital. numa eleição polarizada, HH e Cristovam dividiram 25% do eleitorado do RJ. sem qualquer prejuízo para Lula, que obteve mais de 49%. infelizmente, a frente de apoio a HH, formada pelo P-SOL, PSTU e PCB, mostrou-se coerente com o insuperável talento da esquerda em sucumbir aos seus próprios conflitos internos. e nem mesmo um programa de governo foram capazes de produzir. [5]

após o fracasso em duas eleições sucessivas, PSDB e PFL-DEM decididamente não demonstram a menor vocação para o incômodo papel de oposição a que se viram alijados. com sua política sem povo e cúmplices do governo no apoio ao modelo econômico, só lhes resta como arena de batalha o circo da grande mídia.

o patriarcado da política brasileira ainda acredita que, para virar o jogo a seu favor, basta xingar Lula de “ladrão”. no fundo, o que não aceita é a quebra do monopólio da corrupção, algo que deteve pelos últimos 500 anos. o eleitorado pobre se identifica com Lula e ao olhar para os oligarcas vê a cara do patrão e do desemprego. o raciocínio é simples: ladrão por ladrão, é melhor que seja um da nossa turma que conseguiu chegar lá. [6]

entretanto, seria um grave erro concluir que a força de Lula vem da fraqueza das oposições, conservadoras ou não. é preciso compreender Lula não pelo que lhe falta e sim pelo que o tornou possível.

nossa história tem sido uma sucessão de modernizações conservadoras e transições tuteladas, sem jamais incluir no "pacto democrático" as classes trabalhadoras, [7] o que nos mantém aprisionados entre dois mundos: um definitivamente morto e outro que luta por vir à luz. [8]

a cada vez que o processo histórico desemboca numa crise, impondo a necessidade de mudanças, se restabelece no Brasil um acordo de cúpula, pactuado pelas elites, e a mudança se reduz a um rearranjo que tudo muda para que nada fique diferente. [9]

em 1980, o PT surge como um partido eminentemente não parlamentar, nascido do movimento social, firmemente apoiado nas bases, com um sólido conceito de democracia interna e voltado para a criação de um socialismo libertário. então, a roda da História se pôs a girar mais decidida do que nunca no Brasil. pela primeira vez neste país, os trabalhadores reivindicavam a condição de protagonistas. [10] começava a se romper nossa exasperante tradição de mudanças lentas, seguras e graduais.

a eleição de Lula em 2002 marca uma escolha inédita: a opção pela mudança e a rejeição ao continuísmo. [11] Lula foi eleito como um símbolo vivo de oposição a um modelo sócio-econômico. suas características pessoais e sua trajetória política fizeram dele o homem certo para receber as expectativas de 53 milhões de Brasileiros. [12]

conduzido nos ombros da plebe ao palácio com a missão de mudar o Brasil, o presidente filho do povo operou o maior estelionato eleitoral da história do país. de tanto fingir o que é, o homem acabou por se tornar aquilo que fingia, mas que de fato era. a mais completa impostura na sincera mentira de representar a verdade. [13]

porém, a primeira eleição de Lula não foi um parêntesis histórico. com a reeleição, a população brasileira reafirma modo inequívoco a sua escolha. a vontade de mudança, reprimida por décadas, séculos, expressou-se mais uma vez pacificamente, democraticamente. [14]

mais do que no carisma ou na identificação com as camadas mais pobres da população, a força de Lula deve ser buscada em poderosos movimentos históricos, para os quais um simples homem não passa de humilde instrumento, expressão de um projeto coletivo. [15]

o Lula Presidente se esmera no extenuar do auge de seu poder em postergações, hesitações, meias-medidas, apaziguamentos, conciliações, recuos e capitulações voluntárias.

como uma metáfora encarnada do processo histórico brasileiro, no qual, muito embora imposta como necessária pelo próprio desenvolvimento da sociedade, a mudança é sempre adiada ao máximo, e, ao se tornar inevitável, é antecipada, para que, no transigir, se possa limitá-la.

para o desespero das oposições conservadoras, a força de Lula advém de que não há mais retrocesso para o Brasil. as massas populares serão o protagonista de qualquer novo projeto nacional que se pretenda legítimo. a inclusão social passa a ser o ponto central da política. [16]

o simples fato de Lula ser eleito fez com que tudo mudasse, mesmo que seu Governo não mudasse nada! a política no Brasil jamais será a mesma. [17] a nação não mais será a mesma após o Governo Lula. apesar dele, tudo mudou. tudo mudará. [18]

após Collor e FHC, Lula marca o fim de um ciclo. a definitiva falência não apenas de um modelo sócio-econômico, como de uma estrutura política que se demonstraram incapazes de desenvolver o Brasil e proporcionar qualidade de vida aos seus habitantes. [19]

eleito por duas vezes em nome da mudança, Lula se tornou o último bastião do continuísmo. desafiado a fazer História, prefere envelhecer calmamente, orgulhoso e impenitente. ao querer ousar, para fazer mover o destino de um povo e de uma nação, apenas aguarda, em espera paciente, a instauração de um consenso abrangente e duradouro. [20] entretanto, a cada vez que os homens se pretendem mais espertos que a História, acabam logrados como tolos.

com o Brasil imobilizado na travessia, sem que possa retornar e interditado seu avanço, a desolação do cenário político provoca indignação e desalento. mesmo que nada se ouça, além do silêncio, ainda assim é possível sentir um grito infinito atravessando a paisagem. [21]

embora possua asas, na maior parte das vezes o Dragão apenas se arrasta pelo fundo lamacento das águas. enquanto ondula seu corpo ao rastejar, fazendo com que a terra afunde sob seu peso, o Dragão supõe que está alçando vôo. volta e meia um vago sentimento lhe aturde. então, como se fosse um sonho, o Dragão entrevê num lapso que acima da lama e da água pairam o ar e o céu. [22]


1 Marco Antonio Villa, 04/04/2007
2 arkx, "por bem , ou por mal", 05/11/2006
3 Reinaldo Azevedo, em 40 textos defendendo a candidatura de Serra à Presidência, 2006
4 arkx, "o lado B", 24/08/20065
5 arkx, "à esquerda", 07/10/2006
6 arkx, "giro no vazio", 28/10/2006
7 Maria da Conceição Tavares, "Política e economia na formação do Brasil contemporâneo"
8 Sérgio Buarque de Holanda, "Raízes do Brasil"
9 Raymundo Faoro, "Existe um pensamento político brasileiro?"
10 arkx, "a sola dos sapatos de FHC e a roda da História", 13/12/2002
11 arkx, "a hora da verdade", 14/12/2002
12 arkx, "tenham uma boa amnésia...", 16/12/2002
13 arkx, "tudo mudará", 05/09/2005
14 Lula, Discurso de posse na Câmara, 2007
15 Lula, Discurso de posse na Câmara, 2007
16 Luis Nassif, "Os cabeças de planilhas"
17 arkx, "a mudança de todos nós", 12/01/2003
18 arkx, "tudo mudará", 05/09/2005
19 arkx, "bando selvagem", 30/09/2006
20 Roberto Mangabeira Unger, "Crescer sem dogma", Folha de São Paulo, 13/03/2007
21 Edvard Munch, sobre "O Grito"
22 arkx, "o Tigre e o Dragão", 12/12//2002

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