05 maio 2007

ruptura

nas eleições presidenciais de 2006, quando parecia que a política se tornara definitivamente irrelevante e os Mercados já festejavam pacificados, não importando quem vencesse, o segundo turno politiza a campanha e a pauta das eleições se altera. [1]

com a reeleição de Lula, a população brasileira reafirma modo inequívoco a sua escolha. a vontade de mudança, reprimida por décadas, séculos, expressou-se mais uma vez pacificamente, democraticamente. [2]

as massas populares passam a ser o protagonista de qualquer novo projeto nacional que se pretenda legítimo. a inclusão social se torna o ponto central da política. [3]

o país entra em um instante particularmente rico de sua história. forma-se um consenso: o Brasil precisa crescer. [4] e, dessa vez, um crescimento que surta efeito includente e de superação das desigualdades. [5]

mas como crescer? em qual direção? qual o desenvolvimento que precisamos? bastaria apenas tentar reproduzir o padrão de consumo dos países desenvolvidos?

a hipótese de extensão ao conjunto dos países das formas de consumo que prevalecem nos países centrais não tem cabimento dentro das possibilidades evolutivas aparentes do sistema capitalista. o custo, em termos de depredação do mundo físico é de tal forma elevado, que toda tentativa de generalização levaria inexoravelmente ao colapso de toda uma civilização, pondo em risco a sobrevivência da espécie humana. a idéia de que os povos pobres podem algum dia desfrutar das formas de vida dos atuais povos ricos é simplesmente irrealizável. as economias da periferia nunca serão desenvolvidas no sentido similar às economias que formam o atual centro do sistema capitalista. cabe, portanto, afirmar que a idéia de desenvolvimento econômico é simplesmente um mito. [6]

qualidade de vida não é uma mercadoria que se possa comprar. tampouco uma posição a ser ocupada na pirâmide social. não importa o quanto de dinheiro e riqueza disponível. taxa de lucro e acumulação de capital não redundam, automaticamente, em qualidade de vida.

qual então o modelo de desenvolvimento que também proporcione qualidade de vida?

eleito com o voto das massas trabalhadoras, Lula prefere governar com as elites. [7] sua ampla coalizão política "pensando nos próximos 20 anos” [8], reúne apenas quem nas últimas décadas sempre esteve no poder. [9]

por mais ampla, porém, que seja a coalizão, não haverá alternativa para um governo de mudanças se sua liderança, o presidente, não introduzir a sociedade brasileira como interlocutora. se uma vez mais – em 2007 repetindo 2003 – , o governo optar pelos entendimentos de gabinete, se uma vez mais apostar na solução dos impasses através as negociações de elite, de cima para baixo, em entendimentos com banqueiros e empresários da grande imprensa, perderá a força do apoio popular e não realizará qualquer das mudanças necessárias, ou pelo menos não as realizará na medida exigida pelo país. [10]

Lula privilegia os grandes grupos, o grande capital. oferece desonerações tributárias para os setores afetados pelo câmbio, enquanto mantém blindado o cerne da política econômica, atendendo aos setores dominantes, bancos e grandes investidores, com a mais alta taxa de juros reais do mundo.

o “moderno” agronegócio dos usineiros do álcool, os novos heróis de Lula [11], não produz comida [12] e submete os “trabalhadores em um regime de escravidão disfarçada”. [13] o novo ciclo da cana-de-açúcar impõe uma rotina aos cortadores que lhes reduz a vida útil de trabalho à cerca de 12 anos, comparável a dos escravos em 1850, antes da proibição do tráfico negreiro. [14] mesmo assim, o ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues, titular da pasta no primeiro mandato de Lula, afirma que o trabalho dos cortadores de cana é "bruto, pesado, mas bem remunerado". [15]

do café à cana-de-açúcar, numa viagem imóvel pelos séculos, Ribeirão Preto é a imagem do Brasil e de sua elite. paralisada no tempo, produzindo commodities e combinando a desigualdade do trabalho semi-escravo dos cortadores de cana com o enriquecimento dos senhores das modernas usinas. resiste obstinadamente a todas as transformações fundamentais. haure sua longevidade do veneno, que a alimenta e corrompe o vinho novo, incapaz assim de fermentar. um modelo incapaz de trazer desenvolvimento e muito menos inclusão social. o “arcaico” e o “moderno” se entrelaçam e formam o nó que interdita o avanço do país.

como reconstruir a sociedade após um século de derrocada das utopias? a esquerda atua e fala como se escondesse um plano que não tem. temerosa da reação econômica a qualquer iniciativa transformadora, esforça-se para parecer confiável aos que manejam o dinheiro. as lições da experiência contemporânea são inequívocas: os países que avançam são os que insistem em fazer diferente, os que inovam [16]

enquanto Lula desperdiça o auge de seu poder na instauração de um hipotético consenso abrangente e duradouro [17], na desolação do cenário político brasileiro, mesmo que nada se ouça, além do silêncio, ainda assim é possível sentir um grito infinito atravessando a paisagem. [18]

para romper este silêncio gritante no qual um país inteiro se imobilizou, surge a situação que toma impossível qualquer retrocesso e na qual são as próprias condições que gritam: aqui está o Brasil, salta aqui! [19]

os velhos odres devem ser abandonados. [20]

não há mudança sem ruptura. parto sem dor. passamos do tempo das postergações, hesitações, meias-medidas, apaziguamentos, conciliações, recuos e capitulações voluntárias. chegou o momento de tomar a trajetória que exige autotransformação, a via do engrandecimento, pavimentada com as dores da reconstrução de nós mesmos. [21]

sem atingir o coração das trevas da política econômica, rompendo o pacto maldito entre a Casa Grande e a Senzala, entre os bancos e os grotões, entre as forças do mercado e as favelas, entre o Copom e o Bolsa Família, que para uns distribui juros, enquanto perpetua a miséria dos outros com políticas compensatórias, não haverá desenvolvimento, não haverá inclusão social.

as soluções existem. elas são mais do que sabidas. estão colocadas sobre as mesas de todas as autoridades. todo mundo sabe como resolver. o que falta é decisão: [22]

controle de fluxo de capitais; queda dos juros até patamar correspondente a classificação de risco internacional do Brasil; reforma para terminar com a indexação dos títulos federais pela Selic, ou seja, fim da correção diária da dívida pública interna pela mesma taxa de juros que o Banco Central estabelece sobre as reservas bancárias para conduzir a política monetária; desindexação dos preços dos serviços públicos, e, mais amplamente, a proibição terminante de o governo brasileiro aceitar qualquer indexação em seus contratos e preços administrados; BC assumir como missão, além do controle da inflação, a manutenção do nível do emprego e do crescimento econômico.

para nos livrarmos das armadilhas do fiscalismo - aceitação integral da cartilha dos mercados financeiros - e do mercantilismo – economia voltada para as exportações e o mercado externo - é preciso produzir mais e melhor, dando a dezenas de milhões de brasileiros as condições para participarem do esforço produtivo e para consumir-lhe os produtos. [23]

a chave para destravar o desenvolvimento está nas massas do trabalho informal. são os marginalizados das cidades e das áreas rurais, os bóias-frias e os favelados, que, ao serem incorporadas à economia formal de modo organizado e estratégico, trarão consigo o crescimento.

é na inclusão maciça da periferia das grandes metrópoles brasileiras, implicando na construção de bairros inteiros, escolas, centros de saúde e de capacitação profissional, acompanhada da implantação de um modelo agrícola baseado em pequenas unidades camponesas de produção, é desta economia de guerra, com suas inevitáveis imposições de inovações tecnológicas e criatividade de soluções, que virá o desenvolvimento do Brasil.






[1] arkx, “a terceira via”, 18/10/2006
[2] Lula, Discurso de posse na Câmara, 2007
[3] Luis Nassif, “Os cabeças de planilhas”
[4] Roberto Mangabeira Unger, “Duas ilusões ruinosas“

[5] Roberto Mangabeira Unger, “Crescer“
[6] Roberto Mangabeira Unger, “Duas ilusões ruinosas“
[7] arkx, “a segunda descida aos infernos de Lula da Silva”, 31/03/2006
[8] Lula, 23/03/2007
[9] arkx, “ciclos”, 26/03/2006
[10] Roberto Amaral, “As eleições de 2006 e as massas: uma emergência frustrada?”
[11] Lula, 30/03/2007
[12] Ariovaldo Umbelino de Oliveira, Correio da Cidadania, 02/05/2007
[13] Luiz Felipe de Alencastro, sequenciasparisienses.blogspot.com
[14] Maria Aparecida de Moraes Silva, citada por Mauro Zafalon, Folha de São Paulo, 29/04/2007
[15] Folha de são Paulo, 01/05/2007
[16] Roberto Mangabeira Unger, “Contra a corrente“
[17] Roberto Mangabeira Unger, “Crescer sem dogma”, 13/03/2007
[18] arkx, “entreato”, 15/04/2007
[19] Karl Marx, "O 18 Brumário"
[20] Raymundo Faoro, "O estamento burocrático no Brasil: consequências e esperanças"
[21] Roberto Mangabeira Unger, “Qual futuro?”, 27/03/2007
[22] Julio Sergio Gomes de Almeida, ex secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, demitido por ter criticado a política monetária do BC e seus efeitos sobre o câmbio, 04/04/2007

[23] Roberto Mangabeira Unger, “Duas ilusões ruinosas“

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