25 agosto 2007

ficções do futuro

antecipar o futuro com o olhar do presente provoca distorções de perspectiva.

lançado em 1968, o clássico de ficção-científica "2001: Uma odisséia no espaço" descrevia um futuro de viagens espaciais.

a previsão não se cumpriu. no presente, muito além de 2001, mal se mantém uma estação orbital e naves interplanetárias tripuladas estão fora da agenda.

muito embora tenha sido uma decisiva batalha da Guerra Fria, a corrida espacial também esteve envolta num fantástico glamour. o fascínio da última fronteira, o caminho das estrelas, onde nenhum homem jamais pisou. [1]

tanto charme e sedução mascaram que a conquista do espaço nunca deixou de ser também um projeto expansionista. lançar-se por mares nunca antes navegados, nas grandes navegações pelo cosmos, em busca de novos mundos, para colonizar as terras desbravadas e explorar-lhes os recursos.

em 1968, no auge do programa espacial dos EUA, no limiar de num pequeno passo se dar um grande salto para a humanidade [2] - ao menos conforme a propaganda da época - era então previsível que o futuro de "2001" se apresentasse como o desenvolvimento das viagens espaciais.

nada há no filme, entretanto, que evoque o uso pessoal de computadores em miniatura e sua interligação numa rede planetária, a Internet.

na época da cibernética, em que existiam apenas os pesados e gigantescos mainframes, HAL, o computador a bordo de sua própria odisséia no espaço, era anunciado como o futuro da informática. sendo assim sintomático, como a IBM resistiu o quanto pode na preservação de seus domínios contra a invasão alienígena dos microcomputadores domésticos.

o futuro elaborado pelo presente releva muito mais acerca do presente, ele mesmo, que de um futuro supostamente provável.

qual então a trama futura tecida pela web, em sua teia de interconexões globais e instantâneas? qual futuro será a imagem e semelhança de nosso presente?

o drama de consciência do cérebro-eletrônico de "2001" já preconizava o advento da era das máquinas espirituais. o trans-humano cyborg gerado pelo salto quântico tecno-científico, produzindo de si a singularidade tecnológica. [3]

no justo agora, o delírio em rede de um amanhã não biológico, povoado por entidades imortais navegando sem limites na realidade virtual. um bravo novo mundo em que habitam seres intangíveis, codificados binariamente, sem mais qualquer resíduo físico. um neo-humano software concebido pela inteligência artificial.

a pós-sociedade em que todas as necessidades básicas da existência foram equalizadas, a partir de uma contínua expansão econômica baseada no avanço da computação, a qual, com sua progressiva queda de custos, gerou um ciclo virtuoso propagado para todos os setores da economia, incrementando mais e mais a produtividade, até liberar totalmente a humanidade de seus laços com a produção. [4]

o passado da corrida espacial de 1968, projetado na odisséia de "2001", não chegou a se confirmar ao alcançar o cotidiano presente do ano de 2001, posto que nada mais era que uma ficção de futuro, criada por aspirações e interesses do passado.

do mesmo modo, é bem possível jamais se concretizar o idílico upload da mente pós-humana numa paradisíaca realidade virtual concebida pela tecno-ciência.

o futuro nunca se dá com a simplicidade de um puro continuar do presente. pois o tempo da história não se realiza linearmente. sempre há desvios inesperados. surpreendentes saltos e rupturas. marcha e contra-marcha exasperantes.

o futuro não é o desdobramento do que já existe. o futuro é o que nunca houve.

apesar de situar a narrativa de seu filme no espaço, Kubrick teve como objetivo abordar a evolução do homem, o futuro da espécie, sugerindo o nascimento do neo-humano.

frente à evidência que a civilização criada pela Revolução Industrial aponta de forma inexorável para catástrofes, por concentrar riqueza em beneficio de uma minoria, cujo estilo de vida implica no esgotamento de recursos não-renováveis, enquanto a grande maioria é submetida à exclusão, o desafio que se coloca no umbral do século XXI é nada menos que mudar o curso desta civilização, deslocar seu eixo dos meios a serviço da acumulação, num curto horizonte de tempo, para uma lógica dos fins em função do bem-estar social, do exercício da liberdade e da cooperação entre os povos. [5]

mergulhados no fundo deste impasse, em busca da luz do abismo, ainda há motivos para se ter esperanças no futuro da humanidade?

talvez sim. porque o futuro é o que nunca houve. e nunca houve, nunca houve a humanidade. só agora ela está surgindo. o que estamos fazendo, no presente, são os ensaios desta futura humanidade. [6]




[1] Star Trek
[2] Neil Armstrong, ao pisar em solo lunar em 20/07/1969, 23:56 h
[3] surgimento de seres mais inteligentes que o homem capazes de acelerar o progresso tecnológico além da capacidade humana
[4] Raymond Kurzweil, "The Age of Spiritual Machines: Timeline"
[5] Celso Furtado, "Nova concepção de desenvolvimento"
[6] Mílton Santos, "Encontro com Milton Santos", filme de Silvio Tendler

21 agosto 2007

mutação

em 1336, Francesco Petrarca subiu o monte Ventoux. sua intenção era apenas admirar a vista. depois escreveu uma carta relatando a experiência. ali começava o Renascimento.

um homem sobe uma montanha e muda o mundo?

o que viu Petrarca do alto da montanha? os mares, os rios, o percurso dos astros? homens que contemplam a natureza, mas não se preocupam com eles mesmos? [1]

ao subir a montanha, envolto numa época de transição, Petrarca mergulha dentro de si. ao redor dele, a idade das trevas se dissipava. e, no horizonte, a ascensão das luzes parecia vir para iluminar o renascimento dos tempos.

Deus começava a morrer. o homem se colocaria no centro do universo. clero e nobreza sucumbiriam ao charme discreto da burguesia.

como captar a silenciosa movimentação social que marca a chegada do novo? qual o exato início da mudança?

o que hoje se detecta de alto a baixo, e por toda parte? a promessa iluminista não se cumpriu. redundou em desigualdade abundante, na qual prospera a miséria avassaladora. o critério da máxima racionalidade reduziu o homem ao seu valor de matéria-prima [2], cada vez mais e mais supérflua.

no circuito integrado e volátil das operações instantâneas em mercados apátridas, nação, trabalho e trabalhador estão obsoletos. o lucro prescinde da produção e do consumo. a sociedade inteira foi aprisionada num processo autofágico, uma espécie de buraco negro, em que tudo e todos estão submetidos à voracidade ilimitada do capital pós-financeiro.

robótica, nanotecnologia e engenharia genética engendram um futuro que já não precisa de nós, humanos. [3] confinados nos guetos, refugiados em nossa própria terra, sem nacionalidade, renegados, parias, filhos bastardos do apartheid, fornecedores de órgãos, fonte descartável de energia, cobaias, clones...

eis o homem. eis a obra capital do seu trabalho.

quando os coveiros enterraram Deus, eles mesmos já exalavam cheiro de putrefação. Deus continua morto, e aqueles que o mataram, assassinos entre assassinos, sem que ninguém os venha consolar, também eles estão agora à beira de sua própria cova... [4]

no intenso fulgor do meio dia se distingue também o suave traço de luz que prenuncia o crepúsculo. o inexorável desaparecer, como, na orla do mar, o desvanescer de um rosto de areia. [5]

eis o homem. que obra-prima é o homem! entretanto, o homem não passa da quintessência do pó. [6] a grandeza do homem é ser ele uma ponte, e não uma meta; o que se pode amar no homem é ser ele uma transição e um ocaso. [7]

estamos num ponto excepcional da história. há no mundo um número de pessoas vivas superior ao número de todas quantas viveram e morreram em todas as épocas precedentes. agora os mortos são minoria. [8] os vivos já não mais serão governados pelos mortos... [9] quando a experiência corrente excede a passada, a situação se reverte: a novidade e a mudança reinam supremas.

ao se examinar as fases principais do desenvolvimento humano, verifica-se uma brutal aceleração do tempo evolucionário. dois bilhões de anos para a vida, seis milhões de anos para o hominídeo, uns cem mil anos para a espécie humana, como a conhecemos. quando chegamos à agricultura, revolução científica e revolução industrial, estamos falando de dez mil anos, quatrocentos anos e uns cento e cinqüenta anos, respectivamente. identificamos períodos cada vez mais rápidos e curtos. isto significa que ao passarmos por uma nova evolução, ela estará tão acelerada a ponto que a veremos se manifestar dentro de nosso tempo de vida, dentro de uma mesma geração. [10]

eis o homem. eis a obra capital do seu trabalho.

com a ciência e a tecnologia convertidas em força produtiva, a produção de mercadorias é feita por meio de mercadorias. o circuito mercantil reorganiza a sua imagem e semelhança, pela primeira vez na história humana, toda a vida social. tudo o que é sólido se desmancha no ar. o capital ampliou suas possibilidades de acumulação numa forma na qual ele nunca deixa de existir como riqueza abstrata.

o capitalismo venceu. talvez, agora, possa perder. é preciso que o antigo atinja a sua forma mais plena, que é também a mais simples e mais essencial, abandonando as mediações de que necessitou para desenvolver-se. o momento do auge de um sistema, quando suas potencialidades desabrocham plenamente, é o momento que antecede seu esgotamento e sua superação. [11]

ao repudiar o trabalho e a atividade produtiva, a acumulação de capital não mais poderá ser o eixo em torno do qual a vida social se organiza. a humanidade, para sobreviver, precisa finalmente assumir o comando de sua própria história. esse passo pressupõe que o princípio organizador da vida social deixe de ser a acumulação de capital e a forma-mercadoria. é este o desafio que está posto para nós neste século. ainda não sabemos como resolvê-lo. [12]




[1] Petrarca citando Santo Agostinho, “Confissões”
[2] Heiner Müller
[3] Bill Joy, “Why the future doesn’t need us”

[4] Nietzsche, “A Gaia Ciência”
[5] Michel Foucault, “As palavras e as coisas”
[6] Shakespeare , “Hamlet”
[7] Nietzsche, “Assim falou Zaratustra”
[8] Robin Robertson, "Uma interpretação junguiana do apocalipse”
[9] Augusto Comte
[10] Eamonn Healy, no filme “Waking life”, de Richard Linklater
[11] César Benjamin , “Caminhos da transformação (uma abordagem teórica)”
[12] César Benjamin , “Caminhos da transformação (uma abordagem teórica)”

18 agosto 2007

pacto diabólico

o príncipe está nu.

como já fizera com o sapo operário, pego no contrapé de um entreato, João Moreira Salles agora desnuda FHC, expondo que também o príncipe não consegue se livrar do ranço batráquio. [1]

na constatação de sua própria neta, são barbaridades o que gorgeia o andarilho sabiá. [2]

talvez os ventos primaveris de Brasília tenham lhe virado ao contrário não somente os cabelos, como também todas as idéias...


confortavelmente entregue a uma lassidão evocada por um voluntário e bem remunerado exílio mental, não só das palmeiras de sua terra, como de si mesmo e de seu passado, a FHC já não mais se lhe importam as glórias, tão somente o dinheiro.

se para FHC o Brasil não tem nada e ser brasileiro é assim quase uma obrigação, então é como o sabiá perversamente invertendo o sentido dos versos de Gonçalves Dias, apenas a cantar o desânimo e a mediocridade de várzeas sem flores, bosques sem vida, vidas sem amores... a Deus pedindo não permitir que vivo volte para cá.

com nosso céu sem mais estrelas, mas com seu book full of stars, no Google, FHC recebe um dinheirão para fazer algo fácil e de seu inteiro gosto: falar de si mesmo. não é sem razão que a lucidez se tornou um estorvo. cavaleiro da ordem de Bath, tampouco lhe agrada ficar sofrendo no meio do povo, à toa...

embora estude a questão do desenvolvimento há cinqüenta anos, FHC não se pautou em seu governo pelo que agora, em sua risonha decadência, não se esquiva em admitir: mercado é bom para produzir lucros, não valores.

curiosamente foi de FHC a análise afirmando que o empresariado brasileiro sempre preferiu se acomodar na condição de sócio-menor do capitalismo internacional, voltando às costas à aliança com as classes populares e ao compromisso com o desenvolvimento nacional. [3]

mais tarde, FHC formulou uma teoria que postulava o desenvolvimento através de recursos externos. [4] como seria confirmado em seus dois mandatos de presidente, por tal teoria a dependência se torna eterna, sujeitando o país a manter-se para sempre ajoelhado frente ao capital financeiro internacionalizado.

enquanto vê em Lula um Macunaíma, FHC confessa se identificar muito com Picasso.

Lula e FHC sofrem do mesmo mal: paixão incontida por si próprio. não toleram concorrência no que tange a hipertrofia do ego.

FHC sente saudade dos tempos em que era Presidente da República, porque andava de helicóptero. Lula mandou comprar um avião novinho só prá ele. FHC não resiste a uma “buchada de bode”, desde que servida num restaurante em Paris. Lula, que já confessou sentir verdadeiro horror ao macacão de operário, é alérgico ao suor de seu rosto, quanto mais a ganhar o pão com dito cujo. ao chegar a Presidência FHC declarou que esquecessem o que escrevera. Lula se orgulha de que, para ser Presidente, não foi preciso ler até o final um único livro.

FHC já admitiu publicamente que queria ser igual ao Lula da época em que este era líder das greves contra a ditadura. o desejo inconfessável de Lula é um dia receber da elite o mesmo tratamento conferido a FHC: um igual entre iguais. [5]

a combinação das virtudes de FHC e Lula formaria o estadista capaz de colocar o país nos rumos do desenvolvimento. como em sua relação atormentada preferem privilegiar os defeitos, se tornaram cúmplices em um do mais bem sucedidos fracassos de nossa História: nunca foi tão grande a distância entre o que somos e o que poderíamos ser. [6]

tanto FHC quanto Lula pertencem a uma geração que teve a ambição de mudar a história. ao chegarem ao poder, constataram que as possibilidades de transformação eram limitadas. não foram capazes de propor alternativa. ou não quiseram fazê-lo...

não pelos anos que se já passaram, mas pela astúcia que tem certas coisas passadas, [7] é como se, em algum momento, tivessem os dois, FHC e Lula, vendido a alma ao diabo, sem que, mesmo respeitando o negócio firmado, possam eles, porém, jamais vir a saber, com certeza, se o diabo lhes aceitou ou não a compra... [8]



[1] João Moreira Salles, “Entreatos”, documentário de 2003 sobre Lula, e “O andarilho”, matéria sobre FHC, revista Piauí, 08/2007
[2] FHC, "Vou fazer uma proposta um pouco estranha: vamos mudar o bico do tucano e botar um bico de sabiá, porque o que nós precisamos é cantar nossos feitos", 14/08/2007
[3] FHC, "Empresariado industrial e desenvolvimento econômico"
[4] FHC e Enzo Faletto, "Dependência e subdesenvolvimento na América Latina"
[5] arkx, “desconstruindo Lula (2)”
[6] Celso Furtado, “A busca de novo horizonte utópico”
[7] Guimarães Rosa, “Grande sertão: veredas”
[8] ver César Benjamin, “O enigma Lula: Fausto, Maquiavel ou Riobaldo”

07 agosto 2007

finge que funciona

em janeiro de 2005, o então prefeito de SP, José Serra, passou por uma situação constrangedora na inauguração de um posto de saúde.

na frente dos repórteres, após duas enfermeiras e a própria secretária municipal da Saúde não conseguirem - em sete minutos de tentativa - medir sua pressão arterial, devido a defeito no equipamento, Serra discretamente sussurrou:

"Finge que funciona..."

muitas vezes, não é necessário mais que breve murmúrio para a alma de um homem lhe escapar pelos lábios...

apenas três dias após o fim da greve do Metrô de São Paulo, o atual governador do Estado, José Serra, demite 61 funcionários da companhia.

em relação às empreiteiras da tragédia da cratera do Metrô de São Paulo, acidente ocorrido em 12/01/2007, Serra ainda não foi capaz de emitir um pio sequer...

tido por muitos como o político mais preparado do país para assumir a Presidência da República, Serra se limita a reproduzir a tradicional postura do homem público brasileiro: forte com os de baixo. enquanto mansamente rasteja solícito e submisso aos poderosos.

nada como um cargo executivo para que as máscaras caiam por terra.

Serra jamais escondeu que seu grande sonho na política é se tornar presidente do Brasil.

quem ainda precisará de Serra quando ele estiver com 68 anos? terá ele ainda alguma importância em 2010? talvez possa trocar uma lâmpada. ou cuidar do jardim. quem sabe levar os bisnetos prá passear... [1]

os industriais paulistas sempre se opuseram encarniçadamente aos direitos dos trabalhadores. repudiaram as primeiras leis promulgadas classificando-as como um "ensaio de socialismo de estado" no Brasil. entretanto, quando Getúlio consolidou a legislação trabalhista o que se deu, como resultado, foi um tremendo impulso ao crescimento da economia brasileira.

em 1927, publicação do Centro dos Industriais de Fiação e Tecelagem de São Paulo contestava a Lei de Férias, então de apenas 15 dias e promulgada em 24/12/1925, nos seguintes termos:

"o operário é um trabalhador braçal, cujo cérebro não despende energias. assim, é ilógico que o trabalhador braçal necessite de um período de descanso, pois nada, ou quase nada, pede ao cérebro – a não ser os atos habituais e puramente animais da vida vegetativa."

"o período de férias representa um perigo eminente para o homem afeito ao trabalho. nos lazeres e no ócio o trabalhador encontra seduções extremamente perigosas, se não tiver suficiente elevação moral para dominar os instintos subalternos que dormem em todo ser humano."

"o homem do povo não teve suas faculdades morais e intelectuais afinadas pela educação e pelo meio. sua vida física, puramente animal, supera em muito a vida psíquica. o que fará um trabalhador braçal durante o período de férias, se for compelido por uma lei? como não tem o culto do lar, procurará matar suas longas horas de inação nas ruas."

"o trabalhador é, pois, um elemento da coletividade que as férias estragarão." [2]

é muito bonito se falar na necessidade de um projeto para o país, mas a coisa começa a pegar quando se deve definir qual o papel dos trabalhadores neste projeto.

é muito cômodo propor um mercado regulado, e não aceitar que a única força capaz de regular o mercado são os trabalhadores, o trabalho.

sem direito de greve não há democracia.

o direito de greve no Brasil é um tabu porque nunca se criou aqui um mercado de massas. para se ter um mercado de massas é necessário uma população com poder aquisitivo. aqui se produz, aqui se vende, também. quem irá comprar com salários aviltados?

ocorre que todo o nosso modelo econômico, desde os tempos da colonização, sempre foi voltado para fora, dirigido de fora, para atender interesses de fora.

nunca houve qualquer motivo para se criar um mercado de massas. portanto, quanto menor o salário melhor. quanto menor os custos do trabalho, melhor!

não há democracia sem mercado de massas. não há mercado de massas com desemprego e salários rebaixados.

querem construir um país? defendam o direito de greve.

ou façam como José Serra, finjam que funciona...


[1] Beatles, “When I'm Sixty-Four”, música citada pelo então prefeito da cidade de SP, José Serra, em seu aniversário de 64 anos, referindo-se a sua provável candidatura ao governo do Estado.
[2] “Um ensaio de socialismo de estado no Brasil e as indústrias nacionais”, citado por Marisa Saenz Leme em “A ideologia dos industriais brasileiros”

03 agosto 2007

o sonho de uma geração

ao ser indicado como futuro Ministro da Casa Civil, no primeiro mandato de Lula, Zé Dirceu afirmou que realizava “o sonho de sua geração”. em se tratando de uma geração cujos mais preciosos sonhos viraram pesadelos crônicos, a declaração soava como um péssimo augúrio.

como hoje todos sabemos, o mau presságio acabou se confirmando...

mudou-se a nossa estrela, as glórias vieram tardes e frias. Dirceu amarga um novo exílio, sem que possa sequer se queixar de alguma Marília ter-lhe roubado o sincero coração. [1]

havia uma certa ingenuidade otimista no Brasil. 1969. vivíamos em perigo. primeiro ano de vigência do AI-5. o demônio da descrença é melhor? a pergunta pode ser respondida por quem morre? [2]

daquele passado romântico ainda ecoam versos de uma canção de sucesso:

eu prefiro as curvas
da Estrada de Santos
onde eu posso esquecer
um amor que eu tive
e vi pelo espelho
na distância se perder
[3]

reflexos de uma época. tempos em que jovens idealistas tinham um sonho otimista de um futuro socialista. muitos morreram por seus sonhos, mas outros sobreviveram, e ainda estão por aí... [4]

perseguir os sonhos é mesmo um ato de coragem. arriscado. eles podem não dar certo. geralmente não dão.

mas viver... viver já é em si muito, muito perigoso. por um só dia que seja... [5]

aliás... escrever também é perigoso. quem tentou, sabe. há o perigo de mexer no que está oculto – e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas. há ciladas nas palavras. as palavras que dizemos escondem outras – quais? escrever é uma pedra lançada neste abismo sem fundo. [6] e um abismo sempre chama outros abismos. [7]

o que se escreve nunca é o que se escreve e sim outra coisa. é preciso que alguém leia. para que se possa ouvir o silêncio de quem escreve. para captar essa outra coisa que na verdade foi escrita, porque quem mesmo escreve não pode fazê-lo. [8]

houve certa vez, num passado nem tão distante, embora mais e mais remoto, uma geração capaz de ousar tomar os céus de assalto. talvez tenham se equivocado quanto ao assalto e quanto aos céus. porém, nunca em relação ao ímpeto que os motivava.

o mundo mudou? ou mudaram de idéia? e daí... [9] ninguém mudou? é a vida que muda... [10]

pode ser também que o mundo não tenha de fato mudado. e o que se apresenta como mudança não passe de um rearranjo para tudo alterar de modo que, fundamentalmente, nada fique diferente.

atualmente, a desolação do cenário político brasileiro provoca indignação e desalento. o governo não governa e a oposição não se opõe.

o demônio da descrença é melhor? a pergunta pode ser respondida por quem morreu? a morte não é a perda maior, e sim o que morre dentro de nós enquanto vivemos. [11]

devemos nos conformar que nossos sonhos, um por um, todos se transformem em sombras? é melhor precipitar-se na morte no apogeu de uma paixão? ou se extinguir e murchar-se aos poucos com a velhice, deixando a alma se esvair lentamente, enquanto a noite cai com suavidade sobre todos os vivos e todos os mortos? [12]

por quê é mesmo que se morre? talvez por não se sonhar o bastante... [13]

para trazer o morto de volta à vida não é preciso uma grande mágica. poucos estão inteiramente mortos. sopre sobre as cinzas de um homem morto, e uma chama viva surgirá. [14]




[1] Tomás Antônio Gonzaga
[2] Reinaldo Azevedo, “Atos gratuitos”, 27/12/2006
[3] Roberto Carlos e Erasmo Carlos, “As Curvas da Estrada de Santos”
[4] Virgínia, comentário no blog do Reinaldo Azevedo
[5] Virginia Woolf, “Mrs. Dalloway”
[6] Clarice Lispector
[7] Salmos 42:7
[8] Clarice Lispector
[9] Zé Dirceu, 05/2003
[10] Lula, 05/2003
[11] Norman Cousins
[12] James Joyce, “Os Mortos”
[13] Fernando Pessoa, “O Marinheiro”
[14] Robert Graves, “To bring the dead to live”