03 agosto 2007

o sonho de uma geração

ao ser indicado como futuro Ministro da Casa Civil, no primeiro mandato de Lula, Zé Dirceu afirmou que realizava “o sonho de sua geração”. em se tratando de uma geração cujos mais preciosos sonhos viraram pesadelos crônicos, a declaração soava como um péssimo augúrio.

como hoje todos sabemos, o mau presságio acabou se confirmando...

mudou-se a nossa estrela, as glórias vieram tardes e frias. Dirceu amarga um novo exílio, sem que possa sequer se queixar de alguma Marília ter-lhe roubado o sincero coração. [1]

havia uma certa ingenuidade otimista no Brasil. 1969. vivíamos em perigo. primeiro ano de vigência do AI-5. o demônio da descrença é melhor? a pergunta pode ser respondida por quem morre? [2]

daquele passado romântico ainda ecoam versos de uma canção de sucesso:

eu prefiro as curvas
da Estrada de Santos
onde eu posso esquecer
um amor que eu tive
e vi pelo espelho
na distância se perder
[3]

reflexos de uma época. tempos em que jovens idealistas tinham um sonho otimista de um futuro socialista. muitos morreram por seus sonhos, mas outros sobreviveram, e ainda estão por aí... [4]

perseguir os sonhos é mesmo um ato de coragem. arriscado. eles podem não dar certo. geralmente não dão.

mas viver... viver já é em si muito, muito perigoso. por um só dia que seja... [5]

aliás... escrever também é perigoso. quem tentou, sabe. há o perigo de mexer no que está oculto – e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas. há ciladas nas palavras. as palavras que dizemos escondem outras – quais? escrever é uma pedra lançada neste abismo sem fundo. [6] e um abismo sempre chama outros abismos. [7]

o que se escreve nunca é o que se escreve e sim outra coisa. é preciso que alguém leia. para que se possa ouvir o silêncio de quem escreve. para captar essa outra coisa que na verdade foi escrita, porque quem mesmo escreve não pode fazê-lo. [8]

houve certa vez, num passado nem tão distante, embora mais e mais remoto, uma geração capaz de ousar tomar os céus de assalto. talvez tenham se equivocado quanto ao assalto e quanto aos céus. porém, nunca em relação ao ímpeto que os motivava.

o mundo mudou? ou mudaram de idéia? e daí... [9] ninguém mudou? é a vida que muda... [10]

pode ser também que o mundo não tenha de fato mudado. e o que se apresenta como mudança não passe de um rearranjo para tudo alterar de modo que, fundamentalmente, nada fique diferente.

atualmente, a desolação do cenário político brasileiro provoca indignação e desalento. o governo não governa e a oposição não se opõe.

o demônio da descrença é melhor? a pergunta pode ser respondida por quem morreu? a morte não é a perda maior, e sim o que morre dentro de nós enquanto vivemos. [11]

devemos nos conformar que nossos sonhos, um por um, todos se transformem em sombras? é melhor precipitar-se na morte no apogeu de uma paixão? ou se extinguir e murchar-se aos poucos com a velhice, deixando a alma se esvair lentamente, enquanto a noite cai com suavidade sobre todos os vivos e todos os mortos? [12]

por quê é mesmo que se morre? talvez por não se sonhar o bastante... [13]

para trazer o morto de volta à vida não é preciso uma grande mágica. poucos estão inteiramente mortos. sopre sobre as cinzas de um homem morto, e uma chama viva surgirá. [14]




[1] Tomás Antônio Gonzaga
[2] Reinaldo Azevedo, “Atos gratuitos”, 27/12/2006
[3] Roberto Carlos e Erasmo Carlos, “As Curvas da Estrada de Santos”
[4] Virgínia, comentário no blog do Reinaldo Azevedo
[5] Virginia Woolf, “Mrs. Dalloway”
[6] Clarice Lispector
[7] Salmos 42:7
[8] Clarice Lispector
[9] Zé Dirceu, 05/2003
[10] Lula, 05/2003
[11] Norman Cousins
[12] James Joyce, “Os Mortos”
[13] Fernando Pessoa, “O Marinheiro”
[14] Robert Graves, “To bring the dead to live”

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