21 agosto 2007

mutação

em 1336, Francesco Petrarca subiu o monte Ventoux. sua intenção era apenas admirar a vista. depois escreveu uma carta relatando a experiência. ali começava o Renascimento.

um homem sobe uma montanha e muda o mundo?

o que viu Petrarca do alto da montanha? os mares, os rios, o percurso dos astros? homens que contemplam a natureza, mas não se preocupam com eles mesmos? [1]

ao subir a montanha, envolto numa época de transição, Petrarca mergulha dentro de si. ao redor dele, a idade das trevas se dissipava. e, no horizonte, a ascensão das luzes parecia vir para iluminar o renascimento dos tempos.

Deus começava a morrer. o homem se colocaria no centro do universo. clero e nobreza sucumbiriam ao charme discreto da burguesia.

como captar a silenciosa movimentação social que marca a chegada do novo? qual o exato início da mudança?

o que hoje se detecta de alto a baixo, e por toda parte? a promessa iluminista não se cumpriu. redundou em desigualdade abundante, na qual prospera a miséria avassaladora. o critério da máxima racionalidade reduziu o homem ao seu valor de matéria-prima [2], cada vez mais e mais supérflua.

no circuito integrado e volátil das operações instantâneas em mercados apátridas, nação, trabalho e trabalhador estão obsoletos. o lucro prescinde da produção e do consumo. a sociedade inteira foi aprisionada num processo autofágico, uma espécie de buraco negro, em que tudo e todos estão submetidos à voracidade ilimitada do capital pós-financeiro.

robótica, nanotecnologia e engenharia genética engendram um futuro que já não precisa de nós, humanos. [3] confinados nos guetos, refugiados em nossa própria terra, sem nacionalidade, renegados, parias, filhos bastardos do apartheid, fornecedores de órgãos, fonte descartável de energia, cobaias, clones...

eis o homem. eis a obra capital do seu trabalho.

quando os coveiros enterraram Deus, eles mesmos já exalavam cheiro de putrefação. Deus continua morto, e aqueles que o mataram, assassinos entre assassinos, sem que ninguém os venha consolar, também eles estão agora à beira de sua própria cova... [4]

no intenso fulgor do meio dia se distingue também o suave traço de luz que prenuncia o crepúsculo. o inexorável desaparecer, como, na orla do mar, o desvanescer de um rosto de areia. [5]

eis o homem. que obra-prima é o homem! entretanto, o homem não passa da quintessência do pó. [6] a grandeza do homem é ser ele uma ponte, e não uma meta; o que se pode amar no homem é ser ele uma transição e um ocaso. [7]

estamos num ponto excepcional da história. há no mundo um número de pessoas vivas superior ao número de todas quantas viveram e morreram em todas as épocas precedentes. agora os mortos são minoria. [8] os vivos já não mais serão governados pelos mortos... [9] quando a experiência corrente excede a passada, a situação se reverte: a novidade e a mudança reinam supremas.

ao se examinar as fases principais do desenvolvimento humano, verifica-se uma brutal aceleração do tempo evolucionário. dois bilhões de anos para a vida, seis milhões de anos para o hominídeo, uns cem mil anos para a espécie humana, como a conhecemos. quando chegamos à agricultura, revolução científica e revolução industrial, estamos falando de dez mil anos, quatrocentos anos e uns cento e cinqüenta anos, respectivamente. identificamos períodos cada vez mais rápidos e curtos. isto significa que ao passarmos por uma nova evolução, ela estará tão acelerada a ponto que a veremos se manifestar dentro de nosso tempo de vida, dentro de uma mesma geração. [10]

eis o homem. eis a obra capital do seu trabalho.

com a ciência e a tecnologia convertidas em força produtiva, a produção de mercadorias é feita por meio de mercadorias. o circuito mercantil reorganiza a sua imagem e semelhança, pela primeira vez na história humana, toda a vida social. tudo o que é sólido se desmancha no ar. o capital ampliou suas possibilidades de acumulação numa forma na qual ele nunca deixa de existir como riqueza abstrata.

o capitalismo venceu. talvez, agora, possa perder. é preciso que o antigo atinja a sua forma mais plena, que é também a mais simples e mais essencial, abandonando as mediações de que necessitou para desenvolver-se. o momento do auge de um sistema, quando suas potencialidades desabrocham plenamente, é o momento que antecede seu esgotamento e sua superação. [11]

ao repudiar o trabalho e a atividade produtiva, a acumulação de capital não mais poderá ser o eixo em torno do qual a vida social se organiza. a humanidade, para sobreviver, precisa finalmente assumir o comando de sua própria história. esse passo pressupõe que o princípio organizador da vida social deixe de ser a acumulação de capital e a forma-mercadoria. é este o desafio que está posto para nós neste século. ainda não sabemos como resolvê-lo. [12]




[1] Petrarca citando Santo Agostinho, “Confissões”
[2] Heiner Müller
[3] Bill Joy, “Why the future doesn’t need us”

[4] Nietzsche, “A Gaia Ciência”
[5] Michel Foucault, “As palavras e as coisas”
[6] Shakespeare , “Hamlet”
[7] Nietzsche, “Assim falou Zaratustra”
[8] Robin Robertson, "Uma interpretação junguiana do apocalipse”
[9] Augusto Comte
[10] Eamonn Healy, no filme “Waking life”, de Richard Linklater
[11] César Benjamin , “Caminhos da transformação (uma abordagem teórica)”
[12] César Benjamin , “Caminhos da transformação (uma abordagem teórica)”

Um comentário:

paulo goya disse...

Ola... sabe fazia tempos que eu não lia uma coisa que me tocava... tocava mesmo. No sentido primeiro da expressão... grande abraço.