08 agosto 2010


31 Dezembro 2007



skyline pigeon

se é tão melhor ser bom, por que alguns decidem ser maus? [1]

pelo quarto escuro e solitário projetam-se sombras de melancolia e desolação. e meus olhos são espelhos do mundo lá fora. [2]

sem que interesse por quê, enquanto escrevo posso ouvir pela janela uma antiga música romântica. a melodia vem da direção em que se perdem os sonhos há muito deixados para trás.

a cada vez que se abre o peito, algo escapa, como pombas libertam-se de mãos que as aprisionam e voam para a linha do horizonte.

uma geração inteira encara seu destino: o mergulho no abismo, em busca da luz do abismo.

numa terra imperfeita, cheia de gente imperfeita, o que é ser bom? como é possível ser justo?

por que praticamos tantas atrocidades? em nome da justiça? ou por não querermos ser bons?

neste mundo cheio de matizes, qual o caminho correto entre a bondade e a justiça? 
só a arte pode trazer a resposta. [3]


[1] Reinaldo Azevedo, “Iscailainepijonflai”
[2] Skyline Pigeon, Elton John
[3] arkx, comentário no blog do Reinaldo Azevedo, “Iscailainepijonflai”

22 Dezembro 2007


merda doce merda

nos tempos do Chile de Allende e de seu governo da Unidade Popular, Maria da Conceição Tavares declarou num desabafo exemplar: “É um governo de merda, mas é o nosso governo de merda.”

depois de 34 anos, a frase é repetida no Brasil de hoje pelos defensores incondicionais do governo Lula: "sei que não quero entrar na história como linchador de Lula e de um governo que ajudei eleger”. [1]

a queda de Allende, na manhã da terça-feira 11 de setembro de 1973, tornou-se uma data trágica e sempre relembrada pela Esquerda.

bem menos se recorda, porém, a posse de Pinochet como chefe das Forças Armadas chilenas, nomeado pelo próprio Allende não mais que poucos dias antes do golpe. [2]

embora Pinochet estivesse conspirando em segredo há mais de um ano, aos olhos de Allende se tratava de um homem leal: o “nosso” Pinochet.

assim que surgiram as primeiras notícias do golpe, Allende teria ordenado: "Chamem o Augusto, que é um dos nossos".

o chamado de Allende foi atendido com uma exigência de rendição e a oferta de um avião com destino ao exílio. numa comunicação para os demais oficiais golpistas, interceptada por um radioamador, revela-se a real intenção de Pinochet: "No caminho os jogaremos de lá"[3]

como explicar a atitude de Allende? um quadro político não age por acaso nem por impulsos repentinos. será que ele queria mesmo era morrer? esse é o grande enigma. um denso mistério que não pode ficar debaixo da terra junto com seu corpo. [4]

com a eleição de Lula, parecia ter sido derrotada a poderosa discriminação social brasileira, o preconceito de classe absurdamente alto num país com tradição racista. mas, para quê? para governar para os ricos. e os ricos consentem, desde que os fundamentos da exploração não sejam postos em xeque. é o que o Lula faz: uma hegemonia às avessas. [5]

ao negar-se a decifrar o enigma do auto-engano em que se imobilizou, parte da Esquerda apela para o argumento definitivo : “mesmo que fosse contra todas as políticas do Governo Lula, ainda assim seria a favor dele.” [6]

além de esquizofrenia política, tal raciocínio se constitui num grave problema de ética. [7]

por que parcelas da Esquerda sempre repetem os mesmos erros? algum insuperável impulso kamikaze?


[1] Bernardo Kucinsky, “O Natal da discórdia”
[2] Pinochet tomou posse em 25/08/1973
[3] Patricia Verdugo, “Interferência Secreta”
[4] Bernardo Kucinsky, “O bispo de Barra quer morrer”
[5] Francisco de Oliveira, “Hegemonia às avessas”
[6] Wladimir Pomar , “Declaração de Voto”
[7] arkx, "o nosso governo", 05/10/2003

21 Dezembro 2007


suicídio
quando a razão se extingue, a loucura é o caminho? [1]

quantas vidas valem a vida de um rio e de seu povo?

o bispo de Barra quer morrer? é obvio que o que ele quer mesmo é morrer... [2]

então, faça o favor de morrer logo. prometem enviar flores. [3]

por que incomoda tanto a atitude do bispo?

por que a atitude do bispo incomoda tanto o governo? por que incomoda tanto algumas pessoas?

o PT foi fundado sob a premissa de não apenas apoiar-se no movimento social como colocar-se a serviço dele.

hoje, o PT não apenas está completamente desvinculado de sua base social histórica, como se tornou um instrumento de neutralização e desmobilização do movimento social.

o bispo incomoda tanto por ser liderança de um dos poucos setores da sociedade que não se desestruturou inteiramente no governo Lula.

durante um ano, de 04/10/1992 a 04/10/1993 [4], o bispo "suicida" realizou uma caminhada ao longo do Rio São Francisco, da nascente a foz.

visitou todas as comunidades, realizou palestras nas escolas – desde o pré-primário até as universidades. debateu os objetivos da caminhada com os meios de comunicação, com os grupos organizados e associações de bairro, com as entidades, câmaras de vereadores e prefeituras .

o bispo incomoda tanto por não ser possível silenciá-lo, comprá-lo. para que desfrute da conveniente ida de Lula ao paraíso através do pacto sinistro firmado pelo governo entre os grandes investidores, agraciados com os juros do Copom, e os miseráveis, mantidos desmobilizados pelo Bolsa Família.

incomoda tanto por não aceitar ser refém do impasse suicida no qual a maior parte da Esquerda se aprisionou: “É um governo de merda, mas é o nosso governo de merda.” [5]

afinal, tem certas coisas, no que tange a favorecer os que dominam fingindo defender os explorados, que só Lula é capaz de fazer...

em algum momento, infelizmente mais tarde do que cedo, os setores progressistas da sociedade brasileira enfim se renderão a inexorável compreensão do mal causado pelo apoio que incondicionalmente empenharam ao governo Lula.

por vários e vários motivos, Lula tudo confunde e nada explica, com sua dubiedade e sua arrogância, suas meias-medidas e sua vã onipotência, o que faz com que um país inteiro se paralise, prisioneiro de uma encruzilhada e de uma esfinge, sem que possa dar uma resposta simples a tão incômoda pergunta:

- como pode um governo dos trabalhadores executar tão bem a política dos patrões?
quando finalmente a resposta óbvia que os progressistas tanto teimam em deixar oculta não mais se for capaz de evitar, o impasse brasileiro terá se aprofundado a tal ponto que já não mais será possível nenhuma saída pactuada.

nada pior do que negar a realidade. ainda mais em nome de avanços frágeis, promessas destinadas a frustração e absoluta falta de compromisso com princípios e ética na política.

assim como os indivíduos, países e sociedade são responsáveis por seu destino. em última instância, nos tornamos aquilo que escolhemos. e o momento da opção já passou para o Brasil...

talvez o bispo seja um "suicida"? pode ser... quando a razão se extingue, a loucura é caminho? não sei...

nada porém é mais certo que Lula empenhou sua palavra num acordo com o bispo, e não cumpriu!

o bispo incomoda tanto por se tratar de uma questão de princípios! de se fazer valer a palavra empenhada! de se honrar compromissos assumidos!

e nada pode ser mais incômodo para os fariseus que nem todos aceitem se tornar semelhantes a eles. 



[1] D. Luiz Cappio
[2] Bernardo Kucinski, “O bispo de Barra quer morrer”, Carta Capital, 11/12/2007
[3] comentário de Arlete Santos, no Blog do Nassif, 07/12/2007
[4] 4 de outubro: dia de São Francisco
[5] Maria da Conceição Tavares, no Chile antes da derrubada de Allende, ciatada por Bernardo Kucinski, “O Natal da discórdia”, Carta Maior, 18/12/2007

20 Dezembro 2007


indústria da seca
em 1959, Celso Furtado foi chamado por JK para estudar e traçar um plano para o Nordeste. cumprindo essa missão, o economista paraibano chegou a conclusão de que não mais se deveria inutilmente combater as secas com “soluções hídricas e grandes projetos de engenharia”[1]

embora no imaginário nacional o semi-árido seja visto como uma região seca, tem uma pluviosidade de 750 bilhões de metros cúbicos por ano, dos quais apenas são aproveitados 30 bilhões, tem águas de subsolo e muita água estocada em açudes. [2]

a “seca do nordeste” é muito mais um problema social do que um problema da natureza.

Celso Furtado entendia que o projeto da transposição do rio São Francisco era "uma panacéia”, prioritariamente beneficiando os grandes proprietários de terras, que teriam "novos açudes para evaporar”, pois “o problema não está em ter mais água, mas em usar bem a água que já existe." [3]

o Nordeste tem mais de setenta mil açudes particulares de pequeno e médio portes, e mais de quatrocentos açudes públicos de médio e grande portes, com capacidade de armazenamento total de cerca de trinta bilhões de metros cúbicos, maior que a da barragem de Três Maria (cerca de 21 bilhões) e quase igual ao da grande barragem de Sobradinho (cerca de 34 bilhões). [4] trata-se do maior volume represado em regiões semi-áridas do mundo. [5]

a defesa do projeto da transposição se baseia nos seguintes pontos principais:

- a transposição é indispensável para resolver a situação de doze milhões de pessoas no Nordeste Setentrional;
- prevê retirar apenas 1% da vazão do São Francisco, sem prejudicar a utilização já existente;
- só haverá utilização maior de águas quando o nível do reservatório de Sobradinho estiver acima de 94%.
- o custo é muito baixo, pois evitará as despesas de quase todo ano no socorro a flagelados da seca;

nenhum destes pontos tem o menor embasamento técnico.

no Eixo Norte não há déficit hídrico para abastecimento da população. conforme o EIA/RIMA do empreendimento, 80% da água a ser transportada para esta região destina-se à irrigação e à criação de camarões. [6]

no Ceará, por exemplo, existe uma oferta hídrica potencial de 215 m³/s em suas bacias hidrográficas e uma demanda atual de 54 m³/s. no Rio Grande do Norte existe uma oferta potencial de 70 m³/s e uma demanda de 33 m³/s . na Paraíba, um dos estados mais problemáticos da região em termos de garantias hídricas, existe uma oferta potencial de 32 m³/s e uma demanda atual de 21 m³/s. não há escassez hídrica nos estados receptores, não se justificando, portanto, o ingresso das águas do rio São Francisco naqueles estados para fins de abastecimento. [7]

só os 2,4 bilhões de metros cúbicos do açude Açu seriam suficientes para abastecer a população do Rio Grande do Norte durante vinte anos – mas prevê-se abastecer o estado com águas transpostas do São Francisco. [8]

se a região receptora precisasse de água apenas para consumo humano, nem haveria a necessidade da transposição. o problema básico do semi-árido é a falta de confiabilidade de água para atividade produtiva, o que obriga a manter muita reserva técnica nos açudes, parte das quais acaba se evaporando. [9]

o acréscimo vindo da transposição não cobre nem a evaporação dos açudes. se os 2,10 bilhões fossem totalmente direcionados só para o açude do Castanhão (CE), apenas compensaria a evaporação deste mega açude que é, igualmente, de 2,10 bilhões de m³/ano. [10]

é um sofisma dizer que a transposição utilizará apenas 1% da água do São Francisco que chega ao Atlântico. a comparação honesta é relacionar o volume a ser captado com a vazão outorgável definida no âmbito do Plano de Recursos Hídricos. a vazão outorgável foi definida em 360 m³/s. este é o volume reservado para uso consuntivo em toda a bacia. [11]

dos 360 m³/s alocáveis na bacia, cerca de 335 m³/s já foram outorgados, restando apenas 25 m³/s - coincidentemente o que se pretende alocar como a nova justificativa do projeto de transposição. [12]

a demanda média do projeto será de 65 m³/s, podendo a vazão máxima atingir cerca de 127 m³/s, como restam apenas 25 m³/s outorgáveis, o rio já não dispõe, hoje, dos volumes necessários ao atendimento das demandas do projeto. [13]

mesmo com a regra de operação do projeto, de retirar uma vazão acima de 26m³/s somente quando o reservatório de Sobradinho estiver vertendo, isto é, quando tiver água “sobrando”, traz mais dúvidas do que certezas, porque os estudos comprovam que esta situação ocorre somente em 40% do tempo. em 10 anos só seriam retirados mais de 26 m³/s durante 4 anos. [14]

a represa de Sobradinho verteu em 1997 e voltou a verter em 2004. nesses sete anos, a bacia do rio passou por secas sucessivas, culminando, em 2001, com a mais séria crise energética da nossa história. [15]

o custo médio da água do projeto de transposição cobrado pelo uso da água bruta nos estados receptores será de R$ 0,1467/m³. este será o metro cúbico de água para irrigação dos mais caro do mundo, os projetos agrícolas ficarão inviáveis. [16]

segundo o EIA-Rima do projeto, a região potencialmente irrigável a ser beneficiada pela transposição é de 265.853 hectares. no Vale do São Francisco - segundo o Comitê de Bacias - existem 340 mil hectares irrigáveis e um potencial de mais 800 mil hectares, hoje não aproveitados justamente por falta de investimentos em valor muito inferior ao da transposição. [17] 


as projeções do Ministério da Integração Nacional apontam como beneficiados pela transposição 9,075 milhões de habitantes. número que, pela evolução demográfica, deverá alcançar cerca de 12 milhões em 2025. a auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU), com base em informações fornecidas pelos governos dos Estados "receptores" de águas do São Francisco (Ceará, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Paraíba), estima à população potencialmente beneficiada pelo projeto em 7,031 milhões de pessoas. [18]

conforme informa o Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco, o Projeto de Transposição atende a menos de 20% da área do Semi-Árido e 44% da população que vive no meio rural continuará sem acesso a água. significa dizer que, de 5.712.160 habitantes (Censo IBGE 2001) da população rural dos quatro estados, apenas 3.198.809 habitantes é que serão beneficiados. [19]

portanto um número muito diferente daquele anunciado pelo projeto, que é de 9,075 milhões de pessoas. [20]

de acordo com a Embrapa, do total de precipitação pluviométrica caído anualmente no Nordeste, estimado em cerca de 700 bilhões de m³, 642 bilhões são consumidos pelo fenômeno da evapotranspiração. cerca de 36 bilhões são despejados no mar, em virtude do intenso escoamento superficial existente. e 22 bilhões de m³ são efetivamente pelos habitantes da região. bastaria o aproveitamento de 1/3 dos volumes escoados e manejados para o efetivo abastecimento de toda população nordestina (hoje estimada em 47 milhões de pessoas), com uma taxa de 200 litros por pessoa/dia e para a irrigação de cerca de 2 milhões de hectares, com uma taxa de 7.000 m³ por hectare/ano. [21]

numa só noite chuvosa, com precipitação de 70 mm num terço do Semi-Árido (300.000 km²) desabam sobre esta superfície exatamente 2,1 bilhões de m³ de água, o mesmo volume da transposição. [22]

o problema não está em ter mais água, mas em usar bem a água que já existe.

falta apenas uma grande e potente rede de adutoras para levar esta água a todos os recantos do semi-árido.70% dos açudes públicos não estão disponíveis para a população.

o custo atual da transposição, a maior obra do PAC, totaliza R$ 6,6 bilhões. esta verba não inclui os investimentos adicionais para levar a água para a população nas áreas laterais dos canais e para regiões mais dispersas do sertão, cujas despesas ocorrerão por conta dos governos estaduais. estima-se na verdade, que o custo final da obra chegue à R$ 20 bilhões. [23]

nos últimos anos, apesar da obra não ter saído do papel, a transposição do Rio São Francisco já custou aos cofres públicos, de acordo com o SIAFI, cerca de 466 milhões de reais. a maior parte do dinheiro foi paga ao consórcio Logos-Concremat, que venceu licitação para administrar o projeto, a começar pelas licenças ambientais. [24]



[1] Celso Furtado, “A Operação Nordeste”
[2] Marco Antônio Coelho, “A política governamental de obras contra as secas”
[3] Washington Novaes, “A transposição demolida antes de começar”
[4] Alberto Daker, em “Os descaminhos do São Francisco”, Marco Antônio Coelho
[5] João Suassuna, “Abastecimento no Nordeste: morrendo de sede no deserto com água no joelho.”
[6] José Carlos Carvalho, depoimento na Câmara dos Deputados
[7] João Suassuna, “Abastecimento no Nordeste: morrendo de sede no deserto com água no joelho.”
[8] Universidade Federal do Rio Grande do Norte
[9] Luis Nassif, “A transposição do São Francisco”
[10] Manoel Bomfim Ribeiro, “Ttransposição – uma análise cartesiana”
[11] José Carlos Carvalho, depoimento na Câmara dos Deputados
[12] João Abner Guimarães Jr., “O lobby da transposição”
[13] João Suassuna, “Transposição: projeto tecnicamente ruim, socialmente preocupante e politicamente desastroso.”
[14] José Carlos Carvalho, depoimento na Câmara dos Deputados
[15] João Suassuna, “Transposição: projeto tecnicamente ruim, socialmente preocupante e politicamente desastroso.”
[16] João Abner Guimarães Jr.
[17] Luis Nassif, “O Bird e a transposição”
[18] Alberto Daker
[19] Alberto Daker
[20] Alberto Daker
[21] Aldo Rebouças
[22] Manoel Bomfim Ribeiro, “Transposição – uma análise cartesiana”
[23] Alberto Daker
[24] Alberto Daker

12 Dezembro 2007


Economistas: a chave do tesouro
economistas de mercado se distribuem em dois grandes grupos.

no primeiro estão os que fazem o marketing da política econômica neoliberal.

precisam adquirir currículo acadêmico em universidades norte-americanas. isto tanto os certifica como devidamente capacitados a servir os interesses do mercado, quanto confere respeitabilidade ao marketing, revestindo-o de "teoria e história da economia".

geralmente ocupam cargos ligados a análise macroeconômica, com grande visibilidade na mídia. e quase sempre não possuem a menor intimidade com o dia a dia das operações de mercado.

exemplo: Alexandre Schwartsman.

já os do segundo grupo não dão a mínima para o marketing, pois sabem que se trata apenas de jogo de interesses. preferem focar diretamente no cerne do negócio: rentabilidade.

decidem sobre o destino de centenas de bilhões de reais. são responsáveis por rolar aplicações de curtíssimo prazo. identificam oportunidades de arbitragem que se fecham em segundos. definem estratégia de investimentos baseada nos movimentos do mercado e não nos "fundamentos macroeconômicos". buscam a combinação certa de risco, prazo, rentabilidade, normas e instrumentos de gestão, para o que as "boas teorias econômicas" não passam de literatura ideológica.

embora tenham acesso franqueado a grande mídia, evitam o excesso de exposição. também não costumam se comprometer com a defesa fundamentalista do neoliberalismo.

exemplo: Armínio Fraga.

economistas do primeiro grupo até podem ocupar altos postos no mercado financeiro, como economistas-chefe ou diretores, mas não é comum lançarem-se a frente de empresas próprias (exceto consultorias), como acontece com os do segundo grupo.

para apoio a tomada de suas decisões de negócio, economistas do segundo grupo se valem de estudos técnicos, nos quais fica flagrante que, num cenário de queda de juros, o pré-fixado é excelente investimento, e não uma exatamente opção para "melhorar o perfil da dívida interna"[1]

entretanto, a manutenção da política econômica, que garante as rentabilidade obtida pelos economistas do segundo grupo em suas operações no mercado, necessita do marketing conduzido pelos economistas do primeiro grupo. 


apesar disto, nas reuniões matinais realizadas pelos economistas do segundo grupo para traçar a estratégia das operações do dia, o marketing dos economistas do primeiro grupo não tem nenhum significado – nem mesmo como alguma poesia. [2]

tudo o que lhes importa é em quais mãos está segura a chave do Banco Central.





[1] vide Ricardo Summa, “Alongamento da dívida pública e pré fixados interessam aos rentistas”
[2] comentário do Economista no site Crítica Econômica, www.criticaeconomica.com.br

06 Dezembro 2007


óbvio ululante

nada é mais cansativo do que tentar demonstrar o óbvio. 
[1]

para Fabio Giambiagi, um dos “expurgados” do Ipea, o Brasil não cresce porque não merece. não passamos de um país com "mentalidade de funcionário público acomodado”
[2]

talvez as correntes aprisionando nossa economia sejam mesmo as despesas com a previdência e os gastos sociais. e por causa da Constituição de 1988 nos tornamos cidadãos de mentalidade indolente, espírito acomodado e satisfeitos em depender do Estado.

também já houve época, no inicio do século XX, em que não podíamos crescer por causa do determinismo geográfico e racial. diziam que o desenvolvimento só era possível nos climas frios e por obra de grupos étnicos superiores.

talvez sejamos mesmo um povo de índole corrompida, sem caráter, padecendo no calor dos trópicos de triste sina, irremediavelmente inscrita pela mestiçagem em nossos genes, sem que jamais sejamos capazes de superar nossa preguiça e atraso ancestrais.

se assim for, como então conseguimos ser, até 1980, a economia mais dinâmica do mundo, dobrando o PIB cinco vezes seguidas em cinqüenta anos?

o descontrole do endividamento do Estado veio após o Plano Real (1994), com a dívida interna disparando de 7% do PIB em 1993, para 13% em 1994, até chegar aos 50% em 2006. apesar de sucessivos superávits primários, desde 1994, a taxa de juros reais se manteve a mais alta do mundo. 
[3]

dissimulado sob a marca do Ipea, Giambiagi dedica-se em tempo integral a destruir o que restou da previdência pública brasileira. é também co-autor de um projeto de reforma previdenciária elaborado por encomenda de um conjunto de entidades do setor financeiro. 
[4]

em 1989, quando Giambiagi estava em Caracas, como membro da equipe do BID que assessorava o governo de Andrés Pérez, a Venezuela foi sacudida por intensos protestos em reação a um pacote de medidas neoliberais inspirado pelo FMI .

iniciada em 27 de fevereiro daquele ano, a explosão social ficou conhecida como El Caracazo e sofreu repressão brutal. números oficiais admitem 300 vítimas. estima-se que entre 3.000 e 10.000 pessoas foram assassinadas.

referindo-se ao episódio, Giambiagi comenta da “perplexidade” que ele e seus colegas “sentiram na Venezuela vendo como as ruas reagiam diante daquilo que no resto do mundo pertencia ao terreno da obviedade”
[5]

a quem serve Giambiagi? não é preciso ser profeta para se enxergar o óbvio ululante... 
[6]



[1] Nélson Rodrigues, citado por Fabio Giambiagi, “Raízes do atraso - As dez vacas sagradas que acorrentam o país”[2] Fabio Giambiagi, Folha de São Paulo, 04/03/2007[3] arkx, “o que merecemos”[4] Henrique Júdice Magalhães , “A quem serve Giambiagi?”[5] Henrique Júdice Magalhães, “A Previdência e o Caracazo”[6] Nélson Rodrigues: “Só os profetas enxergam o óbvio”

16 Novembro 2007


a batalha do Ipea
tradicional colunista social do mercado execra o que denomina de “expurgos” no Ipea, segundo ele, um ataque a pluralidade do órgão. [1]

como se sabe, o famoso "pluralismo" do pensamento único do mercado foi inaugurado de forma categórica por Madame Thachter, na década de 80, ao decretar: “there is no alternative”.

sintomaticamente um dos "expurgados", dedicado em tempo integral a destruir o que restou da previdência pública brasileira, é também co-autor de um projeto de reforma previdenciária elaborado por encomenda de um conjunto de entidades do setor financeiro – aglutinadas na Ação Para o Desenvolvimento do Mercado de Capitais. [2]

trata-se de uma versão muito peculiar do pluralismo, desde que todos compartilhem das mesmas idéias e concepção do mundo e estejam a serviço, muito bem remunerado, dos mesmos senhores.

Pochmann e Sicsú implementam no Ipea o que Lula deveria fazer no BC: uma troca de guarda para reconduzir o Brasil ao rumo do desenvolvimento.

enquanto os fiéis defensores da democracia do pensamento único alugam os cadernos de economia da grande mídia para histericamente espernearem contra as mudanças no Ipea, uma pergunta não pode se calar:

por que o Ipea, um órgão público, deveria acobertar um emérito lobista da previdência privada, travestido de pesquisador, que nem funcionário é do Ipea, e sim do Bndes?

muito embora Pochmann já tenha trocado 5 dos 6 diretores do Ipea, não houve esta gritaria de agora. foi considerado normal. ninguém saiu se fazendo de "expurgado".

muito bem, por que?

é que agora mexeram com o lobista. e o lobby saiu em socorro dele.

agora mexeram com um dos inventores do déficit da previdência - aquele que nunca existiu, não existe e nem pode existir nos termos da Constituição de 88.

nenhum dos argumentos do lobista a favor de uma nova reforma da previdência tem sustentação técnica.

são apenas negócios. a cada vez que o governo apenas cogita uma nova reforma - e o lobby faz ecoar através da grande mídia – dispara a captação dos fundos privados de previdência.

por que o lobista não faz suas pesquisas contratado diretamente pela Febraban? porque então seria tudo muito descarado, revelando tratar-se apenas de negócios e não de produção de conhecimento.


o lobby funciona bem melhor disfarçado através da bandeira do Ipea.




[1] Guilherme de Barros, Folha de São Paulo, 15/11/2007
[2] Henrique Júdice Magalhães , “A quem serve Giambiagi?”

24 Outubro 2007


concessões
enquanto a grande mídia classifica o leilão de concessão das principais rodovias do país como uma vitória pessoal da ministra-chefe da Casa Civil da Presidência, é a própria Dilma Rousseff quem revela a razão do "sucesso": "aplicar regras capitalistas no capitalismo"[1]

de fato, as empresas vencedoras apresentaram preços bem abaixo do máximo estipulado pelo governo, com a proposta da espanhola OHL, que arrematou 4 dos 5 trechos leiloados, chegando a um deságio de 65% para a BR-381 (Fernão Dias).

segundo a ministra-chefe da Casa Civil da Presidência, "o governo aplicou regras de competição", e mesmo ao reduzir a taxa interna de retorno do projeto para 8,95%, ainda assim as tarifas vencedoras foram mais baixas.

Lula não pode conter seu júbilo e festejou: "pela primeira vez os pedágios ficaram mais baratos".

a questão das privatizações foi tema central no segundo turno das eleições presidenciais de 2006. encurralado pela campanha petista, Alckmin vestiu jaqueta e usou boné cobertos de logotipos das estatais ao assinar uma carta antiprivatização.

agora, segundo Lula, não se trata de privatização, e sim "concessão". por 25 anos. e sem que por ela o Estado nada receba. uma graciosa doação "não onerosa"de infraestrutura pública para ser explorada pelo capital privado internacional.

e como ironia maior, a bandeira da gestão não-ideológica, desfraldada sem sucesso pelo candidato tucano nas eleições passadas, é assumida por Dilma Roussef, já em pleno rumo da sucessão de 2010.

apesar de todos os aplausos e comemorações, ninguém no governo, ou mesmo fora dele, teve capacidade de explicar quais as justificativas técnicas e políticas para se privatizar, enquanto se prossegue transferindo cerca de 7% do PIB como juros da dívida pública interna aos setores rentistas.

logo nos primeiros dias subseqüentes ao leilão, as verdadeiras razões do "sucesso" das privatizações vieram a público:

- o BNDES financiará 70% do valor a ser investido nas rodovias;

- para estimular a internacionalização das empresas, o governo da Espanha concede incentivos e benefícios que podem alcançar 25% do total do investimento.

com tamanha felicidade em seus negócios com o governo brasileiro, os empresários espanhóis não podem deixar de se conceder um esfuziante entusiasmo:


"O Brasil é um país fantástico, com bancos fantásticos, empresários fantásticos. E teve o privilégio de contar com dois presidentes fantásticos: Fernando Henrique Cardoso e Lula, que é uma figura sensacional." [2]



[1] Dilma Roussef, entrevista à revista "Época", 10/2007
[2] Emilio Botín, presidente mundial do banco Santander, 23/10/2007

07 Outubro 2007


tropa de elite

“na cara não... na cara não... prá não estragar o velório.” 

caído no chão, já desarmado e ferido, o traficante suplica. mas não implora pela vida. só pede para não tomar um tiro no rosto, que não lhe prejudiquem o velório...

o sucessor do Capitão Nascimento aponta a arma. no contra-plano, encara a platéia, que passa a ocupar o lugar de quem vai ser executado. com o dedo no gatilho, parece titubear por um momento. por detrás dele, a luz do sol invade a cena e explode a imagem no instante do disparo.

numa época de total crise de valores de uma sociedade dominada pela hipocrisia e o cinismo, o filme “Tropa de Elite” cria um herói.

onde tudo tem um preço e todos se vendem, o personagem do capitão do BOPE não compactua com o tráfico e muito menos com a corrupção da própria polícia.

pesquisa do Datafolha indica que 19% dos paulistanos já viram o filme antes da estréia, sendo que 80% destes classificam “Tropa de Elite” como ótimo ou bom. estimativa do diretor calcula que mais de 5 milhões de pessoas, em São Paulo e no Rio, já assistiram ao filme em cópias piratas, sem nenhum investimento de marketing, numa fenomenal demanda espontânea.

por quê as camadas populares estão aplaudindo o filme?

por quê o Capitão Nascimento é um justiceiro? o Salvador, acima de tudo e de todos, que encarna em si a Lei.

ou apenas alguém que, finalmente, assume valores que pareciam perdidos para sempre? um homem comum, com toda a fraqueza de suas certezas, perdido no meio de uma guerra suja, instado a tomar decisões e agir, sem nunca desobedecer sua própria consciência.

num tempo de líderes traidores e de tantos anti-heróis, o Capitão Nascimento jamais abre mão de seus princípios: jurou fazer o bem, nem que seja à força. é tão forte seu compromisso com o bem, que ele não pode deixar de fazê-lo, nem que seja pelo mal...

missão dada é missão cumprida.

como fenômeno de massas, o surgimento de um personagem como o Capitão Nascimento é um sintoma importante. uma reação extremada a uma época em que a perda de referências chegou ao extremo.

é possível se fazer o bem à força? certamente que não!

Capitão Nascimento sente remorso. tem consciência que está errado. dispensa os que não concordam em prosseguir na caçada de vingança ao traficante.

mas, por outro lado, é possível se fazer o bem quando se é fraco?

assim como todos são contra a criminalidade e pela paz, se mantém incessante o movimento nas bocas-de-fumo. as mesmas ONGs que trabalham pela consciência social nas favelas, também selam acordos de coexistência “mais do que pacífica” com os traficantes. políticas de redução de danos se recusam a combater as causas do vício e perenizam a dependência dos viciados. chefes do tráfico são tratados como magnânimos patronos beneméritos pelos moradores das “comunidades’.

como se tornar forte? quem está disposto a ir até o fim com os seus princípios? qual é esta força que nos torna invencíveis para jamais trairmos nossos valores?

a ascensão irresistível de um símbolo é sempre claro indicativo de mudanças sociais. a espontânea adoção do Capitão Nascimento como herói popular é indício que a sociedade brasileira começou a subida do fundo do poço.

revela movimento e saída da estagnação. busca de valores pelos quais há um alto preço a se pagar, às vezes com a própria vida, e não mais a conveniente malandragem de se “levar vantagem em tudo”. busca de soluções, mesmo a qualquer preço, ao invés do plácido conformismo do “não tem mais jeito”.

Capitão Nascimento é um líder autêntico. sabe que não pode se perpetuar na liderança. sabe que ninguém fica incólume muito tempo na linha de frente. prepara seu substituto. alguém digno para sucedê-lo e liderar a equipe. seu sucessor é também o passo a frente no processo. caberá a ele questionar os métodos de Nascimento.

terá a força necessária para fazê-lo? como se tornar forte?

na cena final do filme, um rito de passagem, o substituto do Capitão Nascimento atira contra a platéia. a luz do sol invade a cena, explodindo a imagem no instante do disparo. a tela fica branca. plena de luz.

embora a narrativa nos induza a crer que o traficante acaba executado, a rigor não se pode ter certeza disto. não se vê esta imagem. não se sabe ao certo o que acontece. apenas se imagina.

só há uma única certeza: quem leva o tiro na cara é a platéia.

25 Setembro 2007


o pátio dos milagres

enfim reconciliados, o governo Lula e a grande mídia celebram as últimas façanhas da política econômica: crescimento de 5,4% no PIB, com cerca de seis milhões de pessoas saindo da faixa da miséria.

consuma-se o milagre longamente anunciado.

do pacto perverso entre o Bolsa Família e a Selic Banqueiro é gerada a redenção dos miseráveis.

através dos juros do endividamento consignado em folha, com risco zero para os credores, as camadas populares são conduzidas, em longas prestações, ao paraíso do consumo.

pela obra e graça do aumento do salário mínimo se faz a multiplicação da renda a remissão da desigualdade.

parece se confirmar a santidade de uma política econômica capaz de fazer nascer, da estéril combinação de alta taxa de juros e câmbio apreciado, a milagrosa luz do desenvolvimento.

entretanto, de uma análise com mais profundidade dos números das pesquisas recentes sobre o desempenho da economia 
[1] a única luz que emerge é a luz do abismo.

o crescimento do PIB está se desacelerando: de 2,8% de expansão no terceiro trimestre do ano passado em relação ao trimestre anterior, caiu para 1% no trimestre seguinte, para 0,9% no primeiro trimestre deste ano e para apenas 0,8 % agora. [2]

e continua bem menor do que os índices da China (11,9%), Índia (9,3%), Rússia (7,8%), Venezuela (8,9%) ou Coréia do Sul (6,7%). 
[3]

no cálculo de redução das desigualdades não entram os ganhos de juros. os salários tiveram uma redução relevante na participação no PIB. dentro dessa redução, houve redução nas desigualdades. os juros tiraram cada vez mais recursos da economia. quem arcou com a conta foram os que pagam impostos, basicamente classe média assalariada (através do Imposto de Renda) e consumidores em geral (através dos impostos indiretos). a classe média perdeu renda; as classes D e E ganharam. houve redução na desigualdade apenas nesse universo que perdeu espaço na economia. 
[4]

a renda domiciliar per capita para definir um pobre na metrópole paulista seria aquela inferior a R$ 250 por mês (a renda total de um domicílio dividida pelo número de moradores). a do miserável seria inferior a R$ 125 mensais. ao se considerar a pobreza absoluta, os que estão abaixo da média nacional, no Brasil de 2006, a renda de 70% a 80% das pessoas não passava dessa média. 
[5]

a distribuição de renda que está em curso é intrasalarial. a riqueza está se concentrando, ou seja, os ricos estão mais ricos. a melhora na distribuição pessoal da renda (que exclui juros e lucros) vem acompanhada da piora da distribuição funcional, que coloca de um lado os salários e, de outro, juros e lucros. uma coisa é a distribuição de renda entre trabalhadores, outra entre eles e os capitalistas. se o Brasil estivesse melhorando, o Bolsa Família estaria diminuindo, porque as pessoas sairiam à medida em que tivessem trabalho e renda própria. 
[6]

o extrato mais pobre da sociedade está todo pendurado em políticas de exceção, e a tarefa do Estado consiste nisso. não se pretende diminuir a desigualdade, eliminar a pobreza. quem é beneficiado pelo Bolsa Família não muda de classe social. programas como esse apenas contemplam os gastos mínimos de sobrevivência. 
[7]

no pátio dos milagres do governo Lula cada dádiva é sempre um embuste.


[1] IBGE e FGV
[2] Bernardo Kucinski,, “O crescimento do PIB: A conspiração triunfalista”
[3] Paulo Passarinho, “A economia brasileira se recupera?”
[4] Márcio Pochman, citado por Luis Nassif em “O PNAD e os juros”
[5] Vinicius Torres Freire, “O que é um miserável?”
[6] Reinaldo Gonçalves, entrevista ao Jornal do Commercio
[7] Francisco de Oliveira, entrevista ao Brasil de Fato

20 Setembro 2007


os miseráveis
no pátio dos milagres do governo Lula, milagres que não se realizam, a panacéia com maior louvação tem sido o Bolsa Família.

para seus devotos, o Bolsa Família possuiria o milagroso poder de promover inclusão social.

como programa compensatório, nos moldes recomendados pelo FMI e o Banco Mundial, o Bolsa Família é o atestado de falência de uma política econômica que produz desigualdade em abundância e faz prosperar a miséria avassaladora.

na imundície do pátio dá prá ver muitos bichos. catam comida entre os detritos. não examinam nem cheiram, apenas engolem com voracidade. não são cães. não são gatos. não são ratos. os bichos, meu deus, são homens... [1]

apesar de sua guerra sem tréguas contra Lula, a grande mídia deu tratamento bastante favorável à divulgação de pesquisas recentes sobre o desempenho da economia. [2] crescimento do PIB (5,4%) puxado pela indústria (6,8%), expansão de 5,7% no consumo das famílias e "6 milhões saíram da faixa da miséria".

foi como se no pátio dos milagres todos os sinos repicassem. desvalidos, mutilados, estropiados enfim ungidos com a graça.

qual este improvável mistério glorioso de uma elite fanatizada numa cruzada para lançar Lula na fogueira dos hereges, enquanto entoa cânticos à política econômica do governo?

as pesquisas apontam que o crescimento do consumo das famílias se deu em ritmo superior ao crescimento da massa salarial, indicando como são mecanismos de crédito que sustentam esse incremento. numa clara demonstração de como tem funcionado a expansão daquilo que alguns já denominam de economia do endividamento. o aumento em 26,5% do saldo das operações de empréstimos a pessoas físicas se reflete nos extraordinários resultados dos balanços dos bancos, com as receitas de crédito embaladas pela consignação em folha. [3]

quando o paralítico atira para longe as muletas, o coxo se endireita sobre os pés e o cego encara com olhos que resplandecem, não há dúvidas de se estar no Pátio dos Milagres [4], onde cada dádiva é sempre um embuste.



[1] Manuel Bandeira, “O Bicho”
[2] IBGE e FGV
[3] Paulo Passarinho, “A economia brasileira se recupera?”

[4] Victor Hugo, “Notre Dame de Paris"

11 Setembro 2007


paulicéia ltda.
tão bem organizados vivem e prosperam os Paulistas na mais perfeita ordem e progresso.

esses heróicos sucessores da raça dos bandeirantes são a única gente útil do país, e por isso chamados de Locomotivas.

a cidade é belíssima, e grato o seu convívio. oh! este orgulho máximo de ser paulistanamente!!! [1]

para celebrar seu esplendor hipócrita, São Paulo cunhou uma sucessão viciosa de lendas e de mitos, como um cortejo triunfante de vencedores que se recusa a pagar qualquer tributo à virtude dos fatos históricos.

ah! tudo começa com o largo coro de ouro das sacas de café... [2]

mas por acaso o café floresceu de si próprio?

como capital faz capital antes de ser capital? pela acumulação primitiva: de um lado o Rio, com o comércio de escravos, de outro as fontes fiscais, drenando recursos das províncias superavitárias - Bahia, Pernambuco e Minas - para a deficitária - São Paulo. [3]

os Barões do Café jamais se metamorfosearam em Capitães de Indústria. o capital industrial brasileiro não surge num momento de crise do complexo cafeeiro exportador. ao contrário, desponta num instante de auge, em que a taxa de rentabilidade ainda alcançava níveis elevadíssimos. [4]

os vultosos excedentes líquidos foram desviados para o financiamento da indústria por meio dos bancos, que cumpriram o papel de transmissão entre a acumulação originária de capital na cafeicultura e a acumulação propriamente capitalista na indústria. [5]

o núcleo inicial da burguesia industrial brasileira encontra suas origens na emigração européia. [6] entretanto, ao contrário do mito do self-made man, de origem modesta e que constitui fortuna graças ao trabalho árduo e persistente, o imigrante que vem a se tornar proprietário de empresas no Brasil aqui já chega com alguma forma de capital. [7]

para a burguesia industrial nascente, a base de apoio para o início da acumulação não é a pequena empresa industrial, mas o grande comércio ligado às atividades de importação e exportação. do mesmo modo que a exportação, a importação é dominada em grande parte por empresas estrangeiras. por sua vez, o comércio interno é controlado pelos importadores. graças a sua origem social, o burguês imigrante encontra facilmente um lugar no grande comércio. [8]

desse modo, o latifúndio exportador, a importação, o grande comércio e a burguesia imigrante, que vem a ser o núcleo da burguesia industrial nascente, estão todos intimamente conectados – fazendo com que, desde os primórdios, a burguesia brasileira nunca tenha se distinguido pelo caráter “nacional”.

ainda na República Velha, as divisas empregadas na sustentação do preço do café no mercado internacional já superavam as receitas com as exportações. [9] o subsídio estatal ao café não apenas dificultou a acumulação de capital em outros setores como circunscreveu a concorrência, impedindo a expansão de outros segmentos.

muito embora o grande salto na industrialização brasileira tenha se dado com Getúlio, a partir de 1930, não há em São Paulo uma rua sequer, uma estrada, um monumento, uma praça de periferia que preste homenagem a Vargas. [10]

já para os Bandeirantes, aqueles bravos empreendedores privados tão eficientes em sua caça às esmeraldas para exterminar índios e escravos foragidos, São Paulo ergueu não só um monumento como em denominação deles reservou o próprio palácio do governo estadual. Borba Gato ganhou uma enorme estátua. e Raposo Tavares – que de suas marchas pelo sertão retornava com caixotes repletos com milhares de orelhas salgadas das vítimas de suas matanças - tem uma rodovia inteira.

São Paulo tem sido fiel guardião da supremacia natural do liberalismo, sem que admita sequer compensações sociais bancadas pelo Estado (ou seja, pelo contribuinte) [11] - como se o mercado fosse bom também para produzir valores, e não apenas lucros. [12]

enquanto execra o Bolsa Família, que corresponde a uma ínfima fração (0,4% do PIB) da despesa com os juros com a dívida interna (cerca de 7% do PIB), São Paulo abriga a sede de 12 dos 15 maiores bancos brasileiros. [13]

a capital brasileira do capital, em seus delírios de grandeza, nunca deixou de sonhar com a secessão, pois ao se ver como dínamo econômico que não pode parar e funciona por si próprio, São Paulo julga prescindir do Estado, entendendo-se na condição de locomotiva arrastando uma composição de vagões vazios.

sob a sombra da bandeira desfraldada do estado mínimo, São Paulo discretamente se apraz com as desonerações tributárias, os créditos oficiais subsidiados e as renúncias fiscais.

e sua auto-imagem de próspera ilha de capitalismo num país fadado ao atraso, por absoluta falta de vocação para o trabalho e sem nenhuma propensão a poupar, nada mais é que o reflexo da face nua do isolamento de São Paulo, sua incapacidade em compreender a diversidade regional brasileira e um dos motivos da impossibilidade de produção cultural paulista com âmbito nacional.


Paulicéia Ltda. nada tem contra o apoio recebido por Lula nos Estados nordestinos, já que neles se encontra a maioria dos eleitores devidamente subornados pelo Bolsa Família, mas, a bem da Nação, propõe que o presidente faça para o Nordeste uma longa viagem, com passagem só de ida. [14]

sem jamais lograr um consenso sobre juros e câmbio, São Paulo firmou consigo mesma um pacto tácito contra a carga tributária. [15] contudo, da arrecadação com impostos, apenas 33% são oriundos de receitas, enquanto 67% provêm das contribuições, caracterizando um sistema fiscal socialmente injusto e altamente concentrador de renda.

matriz do cansaço de uma burguesia sem ousadia, para a qual a miséria sempre foi pesadelo e nunca desafio, São Paulo é um palco de bailados, onde sapateiam as apoteoses da ilusão... [16]



[1] Mário de Andrade, "Macunaíma" e "Paulicéia desvairada"
[2] Mário de Andrade, "Paisagem nO 2"
[3] Francisco de Oliveira, "A hegemonia inacabada"
[4] João Manuel Cardoso de Mello, "O capitalismo tardio"
[5] Jacob Gorender, "A burguesia brasileira"
[6] Luiz Carlos Bresser-Pereira, "Origens étnicas e sociais do empresário paulista"
[7] Warren Dean, "A industrialização de São Paulo"
[8] Sérgio Silva, "Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil"
[9] Wilson Suzigan e Annibal Villanova Villela, "Política de governo e crescimento da
economia brasileira (1889-1945)"
[10] Cristóvão Feil, no blog “Diário Gauche”, www.diariogauche.blogspot.com
[11] Otavio Frias Filho, “Suspense”
[12] FHC, em matéria de João Moreira Salles, revista Piauí, 08/2007
[13] Jorge Alano, “Economia e política no processo de financeirização do Brasil”
[14] João Mellão Neto, “Os perigos da incomPeTência”, 03/08/2007
[15] vide Luis Nassif, “Dos consensos limitados”, 10/09/2007
[16] Mário de Andrade, "Paisagem nO 2"



25 Agosto 2007


ficções do futuro
antecipar o futuro com o olhar do presente provoca distorções de perspectiva. 

lançado em 1968, o clássico de ficção-científica "2001: Uma odisséia no espaço" descrevia um futuro de viagens espaciais.

a previsão não se cumpriu. no presente, muito além de 2001, mal se mantém uma estação orbital e naves interplanetárias tripuladas estão fora da agenda.
muito embora tenha sido uma decisiva batalha da Guerra Fria, a corrida espacial também esteve envolta num fantástico glamour. o fascínio da última fronteira, o caminho das estrelas, onde nenhum homem jamais pisou. [1]
tanto charme e sedução mascaram que a conquista do espaço nunca deixou de ser também um projeto expansionista. lançar-se por mares nunca antes navegados, nas grandes navegações pelo cosmos, em busca de novos mundos, para colonizar as terras desbravadas e explorar-lhes os recursos.
em 1968, no auge do programa espacial dos EUA, no limiar de num pequeno passo se dar um grande salto para a humanidade [2] - ao menos conforme a propaganda da época - era então previsível que o futuro de "2001" se apresentasse como o desenvolvimento das viagens espaciais.
nada há no filme, entretanto, que evoque o uso pessoal de computadores em miniatura e sua interligação numa rede planetária, a Internet.
na época da cibernética, em que existiam apenas os pesados e gigantescos mainframes, HAL, o computador a bordo de sua própria odisséia no espaço, era anunciado como o futuro da informática. sendo assim sintomático, como a IBM resistiu o quanto pode na preservação de seus domínios contra a invasão alienígena dos microcomputadores domésticos.
o futuro elaborado pelo presente releva muito mais acerca do presente, ele mesmo, que de um futuro supostamente provável.
qual então a trama futura tecida pela web, em sua teia de interconexões globais e instantâneas? qual futuro será a imagem e semelhança de nosso presente?
o drama de consciência do cérebro-eletrônico de "2001" já preconizava o advento da era das máquinas espirituais. o trans-humano cyborg gerado pelo salto quântico tecno-científico, produzindo de si a singularidade tecnológica. [3]
no justo agora, o delírio em rede de um amanhã não biológico, povoado por entidades imortais navegando sem limites na realidade virtual. um bravo novo mundo em que habitam seres intangíveis, codificados binariamente, sem mais qualquer resíduo físico. um neo-humano software concebido pela inteligência artificial.
a pós-sociedade em que todas as necessidades básicas da existência foram equalizadas, a partir de uma contínua expansão econômica baseada no avanço da computação, a qual, com sua progressiva queda de custos, gerou um ciclo virtuoso propagado para todos os setores da economia, incrementando mais e mais a produtividade, até liberar totalmente a humanidade de seus laços com a produção. [4]
o passado da corrida espacial de 1968, projetado na odisséia de "2001", não chegou a se confirmar ao alcançar o cotidiano presente do ano de 2001, posto que nada mais era que uma ficção de futuro, criada por aspirações e interesses do passado.
do mesmo modo, é bem possível jamais se concretizar o idílico upload da mente pós-humana numa paradisíaca realidade virtual concebida pela tecno-ciência.
o futuro nunca se dá com a simplicidade de um puro continuar do presente. pois o tempo da história não se realiza linearmente. sempre há desvios inesperados. surpreendentes saltos e rupturas. marcha e contra-marcha exasperantes.
o futuro não é o desdobramento do que já existe. o futuro é o que nunca houve. 

apesar de situar a narrativa de seu filme no espaço, Kubrick teve como objetivo abordar a evolução do homem, o futuro da espécie, sugerindo o nascimento do neo-humano.

frente à evidência que a civilização criada pela Revolução Industrial aponta de forma inexorável para catástrofes, por concentrar riqueza em beneficio de uma minoria, cujo estilo de vida implica no esgotamento de recursos não-renováveis, enquanto a grande maioria é submetida à exclusão, o desafio que se coloca no umbral do século XXI é nada menos que mudar o curso desta civilização, deslocar seu eixo dos meios a serviço da acumulação, num curto horizonte de tempo, para uma lógica dos fins em função do bem-estar social, do exercício da liberdade e da cooperação entre os povos. [5]
mergulhados no fundo deste impasse, em busca da luz do abismo, ainda há motivos para se ter esperanças no futuro da humanidade?
talvez sim. porque o futuro é o que nunca houve. e nunca houve, nunca houve a humanidade. só agora ela está surgindo. o que estamos fazendo, no presente, são os ensaios desta futura humanidade. [6]



[1] Star Trek
[2] Neil Armstrong, ao pisar em solo lunar em 20/07/1969, 23:56 h
[3] surgimento de seres mais inteligentes que o homem capazes de acelerar o progresso tecnológico além da capacidade humana
[4] Raymond Kurzweil, "The Age of Spiritual Machines: Timeline"
[5] Celso Furtado, "Nova concepção de desenvolvimento"
[6] Mílton Santos, "Encontro com Milton Santos", filme de Silvio Tendler

21 Agosto 2007


mutaçãoem 1336, Francesco Petrarca subiu o monte Ventoux. sua intenção era apenas admirar a vista. depois escreveu uma carta relatando a experiência. ali começava o Renascimento.

um homem sobe uma montanha e muda o mundo?

o que viu Petrarca do alto da montanha? os mares, os rios, o percurso dos astros? homens que contemplam a natureza, mas não se preocupam com eles mesmos? [1]

ao subir a montanha, envolto numa época de transição, Petrarca mergulha dentro de si. ao redor dele, a idade das trevas se dissipava. e, no horizonte, a ascensão das luzes parecia vir para iluminar o renascimento dos tempos.

Deus começava a morrer. o homem se colocaria no centro do universo. clero e nobreza sucumbiriam ao charme discreto da burguesia.

como captar a silenciosa movimentação social que marca a chegada do novo? qual o exato início da mudança?

o que hoje se detecta de alto a baixo, e por toda parte? a promessa iluminista não se cumpriu. redundou em desigualdade abundante, na qual prospera a miséria avassaladora. o critério da máxima racionalidade reduziu o homem ao seu valor de matéria-prima [2], cada vez mais e mais supérflua.

no circuito integrado e volátil das operações instantâneas em mercados apátridas, nação, trabalho e trabalhador estão obsoletos. o lucro prescinde da produção e do consumo. a sociedade inteira foi aprisionada num processo autofágico, uma espécie de buraco negro, em que tudo e todos estão submetidos à voracidade ilimitada do capital pós-financeiro.

robótica, nanotecnologia e engenharia genética engendram um futuro que já não precisa de nós, humanos. [3] confinados nos guetos, refugiados em nossa própria terra, sem nacionalidade, renegados, parias, filhos bastardos do apartheid, fornecedores de órgãos, fonte descartável de energia, cobaias, clones...

eis o homem. eis a obra capital do seu trabalho.

quando os coveiros enterraram Deus, eles mesmos já exalavam cheiro de putrefação. Deus continua morto, e aqueles que o mataram, assassinos entre assassinos, sem que ninguém os venha consolar, também eles estão agora à beira de sua própria cova... [4]

no intenso fulgor do meio dia se distingue também o suave traço de luz que prenuncia o crepúsculo. o inexorável desaparecer, como, na orla do mar, o desvanescer de um rosto de areia. [5]

eis o homem. que obra-prima é o homem! entretanto, o homem não passa da quintessência do pó. [6] a grandeza do homem é ser ele uma ponte, e não uma meta; o que se pode amar no homem é ser ele uma transição e um ocaso. [7]

estamos num ponto excepcional da história. há no mundo um número de pessoas vivas superior ao número de todas quantas viveram e morreram em todas as épocas precedentes. agora os mortos são minoria. [8] os vivos já não mais serão governados pelos mortos... [9] quando a experiência corrente excede a passada, a situação se reverte: a novidade e a mudança reinam supremas.

ao se examinar as fases principais do desenvolvimento humano, verifica-se uma brutal aceleração do tempo evolucionário. dois bilhões de anos para a vida, seis milhões de anos para o hominídeo, uns cem mil anos para a espécie humana, como a conhecemos. quando chegamos à agricultura, revolução científica e revolução industrial, estamos falando de dez mil anos, quatrocentos anos e uns cento e cinqüenta anos, respectivamente. identificamos períodos cada vez mais rápidos e curtos. isto significa que ao passarmos por uma nova evolução, ela estará tão acelerada a ponto que a veremos se manifestar dentro de nosso tempo de vida, dentro de uma mesma geração. [10]

eis o homem. eis a obra capital do seu trabalho.

com a ciência e a tecnologia convertidas em força produtiva, a produção de mercadorias é feita por meio de mercadorias. o circuito mercantil reorganiza a sua imagem e semelhança, pela primeira vez na história humana, toda a vida social. tudo o que é sólido se desmancha no ar. o capital ampliou suas possibilidades de acumulação numa forma na qual ele nunca deixa de existir como riqueza abstrata.

o capitalismo venceu. talvez, agora, possa perder. é preciso que o antigo atinja a sua forma mais plena, que é também a mais simples e mais essencial, abandonando as mediações de que necessitou para desenvolver-se. o momento do auge de um sistema, quando suas potencialidades desabrocham plenamente, é o momento que antecede seu esgotamento e sua superação. [11]

ao repudiar o trabalho e a atividade produtiva, a acumulação de capital não mais poderá ser o eixo em torno do qual a vida social se organiza. a humanidade, para sobreviver, precisa finalmente assumir o comando de sua própria história. esse passo pressupõe que o princípio organizador da vida social deixe de ser a acumulação de capital e a forma-mercadoria. é este o desafio que está posto para nós neste século. ainda não sabemos como resolvê-lo. [12]



[1] Petrarca citando Santo Agostinho, “Confissões”
[2] Heiner Müller[3] Bill Joy, “Why the future doesn’t need us”
[4] Nietzsche, “A Gaia Ciência”
[5] Michel Foucault, “As palavras e as coisas”
[6] Shakespeare , “Hamlet”
[7] Nietzsche, “Assim falou Zaratustra”
[8] Robin Robertson, "Uma interpretação junguiana do apocalipse”
[9] Augusto Comte
[10] Eamonn Healy, no filme “Waking life”, de Richard Linklater
[11] César Benjamin , “Caminhos da transformação (uma abordagem teórica)”
[12] César Benjamin , “Caminhos da transformação (uma abordagem teórica)”

18 Agosto 2007


pacto diabólico

o príncipe está nu.

como já fizera com o sapo operário, pego no contrapé de um entreato, João Moreira Salles agora desnuda FHC, expondo que também o príncipe não consegue se livrar do ranço batráquio. [1]

na constatação de sua própria neta, são barbaridades o que gorgeia o andarilho sabiá. [2]

talvez os ventos primaveris de Brasília tenham lhe virado ao contrário não somente os cabelos, como também todas as idéias... 


confortavelmente entregue a uma lassidão evocada por um voluntário e bem remunerado exílio mental, não só das palmeiras de sua terra, como de si mesmo e de seu passado, a FHC já não mais se lhe importam as glórias, tão somente o dinheiro.

se para FHC o Brasil não tem nada e ser brasileiro é assim quase uma obrigação, então é como o sabiá perversamente invertendo o sentido dos versos de Gonçalves Dias, apenas a cantar o desânimo e a mediocridade de várzeas sem flores, bosques sem vida, vidas sem amores... a Deus pedindo não permitir que vivo volte para cá.

com nosso céu sem mais estrelas, mas com seu book full of stars, no Google, FHC recebe um dinheirão para fazer algo fácil e de seu inteiro gosto: falar de si mesmo. não é sem razão que a lucidez se tornou um estorvo. cavaleiro da ordem de Bath, tampouco lhe agrada ficar sofrendo no meio do povo, à toa...

embora estude a questão do desenvolvimento há cinqüenta anos, FHC não se pautou em seu governo pelo que agora, em sua risonha decadência, não se esquiva em admitir: mercado é bom para produzir lucros, não valores.

curiosamente foi de FHC a análise afirmando que o empresariado brasileiro sempre preferiu se acomodar na condição de sócio-menor do capitalismo internacional, voltando às costas à aliança com as classes populares e ao compromisso com o desenvolvimento nacional. [3]

mais tarde, FHC formulou uma teoria que postulava o desenvolvimento através de recursos externos. [4] como seria confirmado em seus dois mandatos de presidente, por tal teoria a dependência se torna eterna, sujeitando o país a manter-se para sempre ajoelhado frente ao capital financeiro internacionalizado.

enquanto vê em Lula um Macunaíma, FHC confessa se identificar muito com Picasso.

Lula e FHC sofrem do mesmo mal: paixão incontida por si próprio. não toleram concorrência no que tange a hipertrofia do ego.

FHC sente saudade dos tempos em que era Presidente da República, porque andava de helicóptero. Lula mandou comprar um avião novinho só prá ele. FHC não resiste a uma “buchada de bode”, desde que servida num restaurante em Paris. Lula, que já confessou sentir verdadeiro horror ao macacão de operário, é alérgico ao suor de seu rosto, quanto mais a ganhar o pão com dito cujo. ao chegar a Presidência FHC declarou que esquecessem o que escrevera. Lula se orgulha de que, para ser Presidente, não foi preciso ler até o final um único livro.

FHC já admitiu publicamente que queria ser igual ao Lula da época em que este era líder das greves contra a ditadura. o desejo inconfessável de Lula é um dia receber da elite o mesmo tratamento conferido a FHC: um igual entre iguais. [5]

a combinação das virtudes de FHC e Lula formaria o estadista capaz de colocar o país nos rumos do desenvolvimento. como em sua relação atormentada preferem privilegiar os defeitos, se tornaram cúmplices em um do mais bem sucedidos fracassos de nossa História: nunca foi tão grande a distância entre o que somos e o que poderíamos ser. [6]

tanto FHC quanto Lula pertencem a uma geração que teve a ambição de mudar a história. ao chegarem ao poder, constataram que as possibilidades de transformação eram limitadas. não foram capazes de propor alternativa. ou não quiseram fazê-lo...

não pelos anos que se já passaram, mas pela astúcia que tem certas coisas passadas, [7] é como se, em algum momento, tivessem os dois, FHC e Lula, vendido a alma ao diabo, sem que, mesmo respeitando o negócio firmado, possam eles, porém, jamais vir a saber, com certeza, se o diabo lhes aceitou ou não a compra... [8]



[1] João Moreira Salles, “Entreatos”, documentário de 2003 sobre Lula, e “O andarilho”, matéria sobre FHC, revista Piauí, 08/2007
[2] FHC, "Vou fazer uma proposta um pouco estranha: vamos mudar o bico do tucano e botar um bico de sabiá, porque o que nós precisamos é cantar nossos feitos", 14/08/2007
[3] FHC, "Empresariado industrial e desenvolvimento econômico"
[4] FHC e Enzo Faletto, "Dependência e subdesenvolvimento na América Latina"
[5] arkx, “desconstruindo Lula (2)”
[6] Celso Furtado, “A busca de novo horizonte utópico”
[7] Guimarães Rosa, “Grande sertão: veredas”
[8] ver César Benjamin, “O enigma Lula: Fausto, Maquiavel ou Riobaldo”

07 Agosto 2007


finge que funciona
em janeiro de 2005, o então prefeito de SP, José Serra, passou por uma situação constrangedora na inauguração de um posto de saúde.

na frente dos repórteres, após duas enfermeiras e a própria secretária municipal da Saúde não conseguirem - em sete minutos de tentativa - medir sua pressão arterial, devido a defeito no equipamento, Serra discretamente sussurrou:
"Finge que funciona..." 
muitas vezes, não é necessário mais que breve murmúrio para a alma de um homem lhe escapar pelos lábios...

apenas três dias após o fim da greve do Metrô de São Paulo, o atual governador do Estado, José Serra, demite 61 funcionários da companhia.
em relação às empreiteiras da tragédia da cratera do Metrô de São Paulo, acidente ocorrido em 12/01/2007, Serra ainda não foi capaz de emitir um pio sequer...
tido por muitos como o político mais preparado do país para assumir a Presidência da República, Serra se limita a reproduzir a tradicional postura do homem público brasileiro: forte com os de baixo.enquanto mansamente rasteja solícito e submisso aos poderosos.
nada como um cargo executivo para que as máscaras caiam por terra. 

Serra jamais escondeu que seu grande sonho na política é se tornar presidente do Brasil.
quem ainda precisará de Serra quando ele estiver com 68 anos? terá ele ainda alguma importância em 2010? talvez possa trocar uma lâmpada. ou cuidar do jardim. quem sabe levar os bisnetos prá passear... [1]
os industriais paulistas sempre se opuseram encarniçadamente aos direitos dos trabalhadores. repudiaram as primeiras leis promulgadas classificando-as como um "ensaio de socialismo de estado" no Brasil. entretanto, quando Getúlio consolidou a legislação trabalhista o que se deu, como resultado, foi um tremendo impulso ao crescimento da economia brasileira.

em 1927, publicação do Centro dos Industriais de Fiação e Tecelagem de São Paulo contestava a Lei de Férias, então de apenas 15 dias e promulgada em 24/12/1925, nos seguintes termos:

"o operário é um trabalhador braçal, cujo cérebro não despende energias. assim, é ilógico que o trabalhador braçal necessite de um período de descanso, pois nada, ou quase nada, pede ao cérebro – a não ser os atos habituais e puramente animais da vida vegetativa."
"o período de férias representa um perigo eminente para o homem afeito ao trabalho. nos lazeres e no ócio o trabalhador encontra seduções extremamente perigosas, se não tiver suficiente elevação moral para dominar os instintos subalternos que dormem em todo ser humano."
"o homem do povo não teve suas faculdades morais e intelectuais afinadas pela educação e pelo meio. sua vida física, puramente animal, supera em muito a vida psíquica. o que fará um trabalhador braçal durante o período de férias, se for compelido por uma lei? como não tem o culto do lar, procurará matar suas longas horas de inação nas ruas."
"o trabalhador é, pois, um elemento da coletividade que as férias estragarão." [2]

é muito bonito se falar na necessidade de um projeto para o país, mas a coisa começa a pegar quando se deve definir qual o papel dos trabalhadores neste projeto.

é muito cômodo propor um mercado regulado, e não aceitar que a única força capaz de regular o mercado são os trabalhadores, o trabalho.

sem direito de greve não há democracia.

o direito de greve no Brasil é um tabu porque nunca se criou aqui um mercado de massas. para se ter um mercado de massas é necessário uma população com poder aquisitivo. aqui se produz, aqui se vende, também. quem irá comprar com salários aviltados?

ocorre que todo o nosso modelo econômico, desde os tempos da colonização, sempre foi voltado para fora, dirigido de fora, para atender interesses de fora.

nunca houve qualquer motivo para se criar um mercado de massas. portanto, quanto menor o salário melhor. quanto menor os custos do trabalho, melhor!

não há democracia sem mercado de massas. não há mercado de massas com desemprego e salários rebaixados.

querem construir um país? defendam o direito de greve.

ou façam como José Serra, finjam que funciona...

[1] Beatles, “When I'm Sixty-Four”, música citada pelo então prefeito da cidade de SP, José Serra, em seu aniversário de 64 anos, referindo-se a sua provável candidatura ao governo do Estado.
[2] “Um ensaio de socialismo de estado no Brasil e as indústrias nacionais”, citado por Marisa Saenz Leme em “A ideologia dos industriais brasileiros”

03 Agosto 2007


o sonho de uma geração
ao ser indicado como futuro Ministro da Casa Civil, no primeiro mandato de Lula, Zé Dirceu afirmou que realizava “o sonho de sua geração”. em se tratando de uma geração cujos mais preciosos sonhos viraram pesadelos crônicos, a declaração soava como um péssimo augúrio.

como hoje todos sabemos, o mau presságio acabou se confirmando...

mudou-se a nossa estrela, as glórias vieram tardes e frias. Dirceu amarga um novo exílio, sem que possa sequer se queixar de alguma Marília ter-lhe roubado o sincero coração. [1]

havia uma certa ingenuidade otimista no Brasil. 1969. vivíamos em perigo. primeiro ano de vigência do AI-5. o demônio da descrença é melhor? a pergunta pode ser respondida por quem morre? [2]

daquele passado romântico ainda ecoam versos de uma canção de sucesso:

eu prefiro as curvas
da Estrada de Santos
onde eu posso esquecer
um amor que eu tive
e vi pelo espelho
na distância se perder
 [3]

reflexos de uma época. tempos em que jovens idealistas tinham um sonho otimista de um futuro socialista. muitos morreram por seus sonhos, mas outros sobreviveram, e ainda estão por aí... [4]

perseguir os sonhos é mesmo um ato de coragem. arriscado. eles podem não dar certo. geralmente não dão.

mas viver... viver já é em si muito, muito perigoso. por um só dia que seja... [5]

aliás... escrever também é perigoso. quem tentou, sabe. há o perigo de mexer no que está oculto – e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas. há ciladas nas palavras. as palavras que dizemos escondem outras – quais? escrever é uma pedra lançada neste abismo sem fundo. [6] e um abismo sempre chama outros abismos. [7]

o que se escreve nunca é o que se escreve e sim outra coisa. é preciso que alguém leia. para que se possa ouvir o silêncio de quem escreve. para captar essa outra coisa que na verdade foi escrita, porque quem mesmo escreve não pode fazê-lo. [8]

houve certa vez, num passado nem tão distante, embora mais e mais remoto, uma geração capaz de ousar tomar os céus de assalto. talvez tenham se equivocado quanto ao assalto e quanto aos céus. porém, nunca em relação ao ímpeto que os motivava.

o mundo mudou? ou mudaram de idéia? e daí... [9] ninguém mudou? é a vida que muda... [10]

pode ser também que o mundo não tenha de fato mudado. e o que se apresenta como mudança não passe de um rearranjo para tudo alterar de modo que, fundamentalmente, nada fique diferente.

atualmente, a desolação do cenário político brasileiro provoca indignação e desalento. o governo não governa e a oposição não se opõe.

o demônio da descrença é melhor? a pergunta pode ser respondida por quem morreu? a morte não é a perda maior, e sim o que morre dentro de nós enquanto vivemos. [11]

devemos nos conformar que nossos sonhos, um por um, todos se transformem em sombras? é melhor precipitar-se na morte no apogeu de uma paixão? ou se extinguir e murchar-se aos poucos com a velhice, deixando a alma se esvair lentamente, enquanto a noite cai com suavidade sobre todos os vivos e todos os mortos? [12]

por quê é mesmo que se morre? talvez por não se sonhar o bastante... [13]

para trazer o morto de volta à vida não é preciso uma grande mágica. poucos estão inteiramente mortos. sopre sobre as cinzas de um homem morto, e uma chama viva surgirá. [14] 




[1] Tomás Antônio Gonzaga
[2] Reinaldo Azevedo, “Atos gratuitos”, 27/12/2006
[3] Roberto Carlos e Erasmo Carlos, “As Curvas da Estrada de Santos”
[4] Virgínia, comentário no blog do Reinaldo Azevedo
[5] Virginia Woolf, “Mrs. Dalloway”
[6] Clarice Lispector
[7] Salmos 42:7
[8] Clarice Lispector
[9] Zé Dirceu, 05/2003
[10] Lula, 05/2003
[11] Norman Cousins
[12] James Joyce, “Os Mortos”
[13] Fernando Pessoa, “O Marinheiro”
[14] Robert Graves, “To bring the dead to live”

31 Julho 2007


ai! que cansaço...
tudo vai num descalabro sem comedimento, estamos corroídos pelo morbo e pelos miriápodes!

por isso e para eterna lembrança destes paulistas, que são a única gente útil do país, e por isso chamados de Locomotivas, nos demos ao trabalho de metrificarmos um dístico, em que se encerram os segredos de tanta desgraça: [1]

“cansei...”

com as forças exauridas, por insistir em negar uma conjuntura política que lhes assombra como o seu pior pesadelo, as oposições conservadoras convulsionam-se em seus derradeiros suspiros.

OAB-SP, FEBRABAN , FIESP, Associação Comercial de São Paulo...
João Dória Jr., Luiz D'Urso, Paulo Zottolo...
milagres do Brasil são.
mas que importa o branco cueiro, se o cu é tão denegrido! [2]

São Paulo, São Paulo, por que tanto tropeças na pedra de tropeço? [3]

os que tão cansados estão, são também os que mais deveriam estar aplaudindo. foram os que mais ganharam dinheiro neste governo. basta ver quanto ganharam os banqueiros, empresários. [4] foram R$ 43,7 bilhões de superávit, um crescimento de 13,5% no primeiro semestre de 2007. no outro lado, o dos investimentos, só 10% do programado foi realizado. [5]

para o desespero das oposições conservadoras, a força de Lula advém de que não há mais retrocesso para o Brasil. as massas populares serão o protagonista de qualquer novo projeto nacional que se pretenda legítimo.

Lula, por sua vez, em sua ânsia de ser aceito pelas elites, recusa-se a aceitar a mais básica das lições, que a cada crise de seu governo lhe é cuspida na face.

pouco importa seus ternos exclusivos, sua renovada arcada dental, seus charutos e seus vinhos, seu botox e seu aero-Lula, seus 53 milhões de votos e sua reeleição consagradora.

para as elites, pouca importa Lula ser o Presidente da República, porque sempre será aquilo que nunca deixou de ser: um "baiano", um "paraíba". apedeuta. incompetente. analfabeto. leniente. inapetente. ignorante. vagabundo. um trabalhador brasileiro. [6]

Lula, um trabalhador brasileiro. um representante das massas populares que serão o protagonista de qualquer novo projeto nacional que se pretenda legítimo.

ainda mais uma vez é o anti-lulismo que reabilita e fortalece o lulismo. um paradoxo paralisando o país. um impasse que mantém o Brasil imobilizado no meio de uma travessia, sem que possa retornar e interditado seu avanço.

é possível se captar a silenciosa movimentação social que marca o inicio de novos tempos? qual o exato início da mudança? quando não há mais caminho de volta ao passado? e também não há como voltar-se para o futuro?



[1] Mário de Andrade. “Macunaíma”
[2] Gregório de Matos
[3] Romanos 9:32
[4] Lula, 31/07/2007
[5] blog do Zé Dirceu

[6] arkx, “a lição da chibata”

18 Julho 2007


a origem da tragédia

  • "A informação que temos é que o avião pousou, e não caiu".

  • Vice-presidente de planejamento da TAM, 
    declaração às 19:30h.
    acidente ocorreu às 18:50h.

    a maior tragédia ainda não aconteceu.
    temos sido um país de tragédias discretas e desgraças silenciosas.
    aceitamos como inevitável a crônica tragédia dos juros e do câmbio, responsável por uma transferência de riqueza ainda mais brutal que a tragédia da inflação.
    tornou-se natural a tragédia continuada da concentração de renda, fazendo com que 0,7% da população possua fortuna estimada em cerca de metade do PIB, numa trágica herança dos tempos da escravidão.
    acompanhamos com enfado e deboche a tragédia da representação política, como se fosse cômico...
    uma das tragédias mais recentes é a obstinação na defesa irracional do governo Lula, que além de ter arrastado a esquerda brasileira para a pior crise de sua história, mergulha o país inteiro num buraco negro de cinismo, hipocrisia e total falta de perspectivas.
    são nossas tragédias do dia a dia. por maior que sejam suas dimensões, são ainda pequenas tragédias.
    se algumas utopias são verdades prematuras, até mesmo a mais óbvia e ululante verdade parece inexplicável para quem insiste em enxergar a realidade unicamente a partir de suas próprias premissas.
    a maior tragédia é a de se negar a grande tragédia que se anuncia. uma tragédia que se antevê a partir do desdobramento lógico dos fatos em curso.
    as portas para o futuro estão se fechando. estamos nos colocando, nós brasileiros, num rumo de muitas tragédias, de muito sofrimento. individual e, principalmente, coletivo.
    estamos assistindo ao desmoronamento de um modelo. como toda queda, será explosiva. haverá chamas. não serão poucos os mortos e feridos.
    não vai acontecer de uma vez, se arrastará ao longo da agonizante travessia do segundo mandato de Lula.
    o Brasil está condenado à civilização. ou progredimos, ou desapareceremos.

    13 Julho 2007


    as multidões dos estádios
    cidades sem povo são cidades sem alma. em Brasília a política se faz através das intrigas palacianas, dos conchavos de corredor e dos discursos inflamados para um plenário vazio.

    as vaias a Lula num Maracanã lotado têm significado político claro e implacável: não se faz política sem povo.

    nas ruas e no encontro com as multidões, a popularidade das pesquisas de opinião pública se desmancha no ar.

    como decifrar o enigma de um presidente com mais de 60% de popularidade ser olimpicamente vaiado onde obteve 70% dos votos nas últimas eleições?

    Lula é um interregno. um entreato.

    para o desespero das oposições conservadoras, a força de Lula advém de que não há mais retrocesso para o Brasil. as massas populares serão o protagonista de qualquer novo projeto nacional que se pretenda legítimo.[1]

    eleito por duas vezes em nome da mudança, Lula se tornou o último bastião do continuísmo. como uma metáfora encarnada do processo histórico brasileiro, no qual, muito embora imposta como necessária pelo próprio desenvolvimento da sociedade, a mudança é sempre adiada ao máximo, e, ao se tornar inevitável, é antecipada, para que, no transigir, se possa limitá-la.

    com o Brasil imobilizado no meio de uma travessia, sem que possa retornar e interditado seu avanço, a desolação do cenário político provoca indignação e desalento. mesmo que nada se ouça, além do silêncio, ainda assim é possível sentir um grito infinito atravessando a paisagem.

    um grito silencioso parado no ar, que, por vezes, explode numa vaia vinda do fundo da alma.


    [1] Luis Nassif, “Os cabeças de planilhas”

    10 Julho 2007


    à bala
    guerra e política se entrelaçam, sendo uma a continuação da outra, ainda que sob formas distintas e através de outros meios.


    como conduzir o combate político?

    o direito à liberdade de expressão é o direito daqueles com os quais não concordamos? como lidar com o contraditório e qual o limite da tolerância? até que ponto a opção pela não-agressão apenas dissimula covardia e redunda em omissão e conivência?

    teríamos de eliminar a balas um infinito de seres medíocres? [1] essas amebas, seres rastejantes, totalmente descerebrados, que melhor seriam se tivessem nascidos ratos, pelo menos teríamos o direito de exterminá-los, sem dó nem piedade, pois é o que merecem, já que para nada servem... [2]

    fazer-se invencível significa conhecer-se a si mesmo; descobrir a vulnerabilidade do adversário significa conhecer os demais. a invencibilidade está em si mesmo, a vulnerabilidade no adversário. [3]

    onde está o inimigo? quem é o outro? quais são suas idéias?

    é no exame de cada um de nós, nos mais recônditos segredos dissimulados em cada um de nossos próprios pensamentos, que podemos encontrar o outro. somos o nosso próprio inferno.

    as idéias que dominam em nossa mente são aquelas mesmas idéias que dominam em cada época: as idéias da classe dominante daquela época.

    “nós” e “eles”, “direita” e “esquerda”, “progressistas” e “reacionários” não diferem tanto no que tange aos mecanismos de poder, à busca por supremacia, a obsessão pelo controle, à imposição de liderança, ao centralismo “democrático”, à vontade soberana da maioria, a repulsa pela autonomia e ao culto à hierarquia. toda uma série de perversões destinadas a submeter e disciplinar os indivíduos, para que seus corpos sejam dóceis e úteis.

    todos elogiam uma vitória ganha em batalha, porém essa vitória não é realmente tão boa. armas são instrumentos de mau augúrio. nunca se viu nenhum especialista na arte da guerra que as utilizasse por muito tempo. verdadeiramente desejável é poder ver o mundo do sutil e dar-se conta do mundo do oculto, até o ponto de ser capaz de alcançar a vitória onde não mais exista forma. em conseqüência, um guerreiro vitorioso ganha primeiro e inicia a batalha depois; enquanto um derrotado primeiro inicia a batalha para só depois tentar obter a vitória. [4]

    a política não é a arte do possível. é a capacidade de tornar o impossível uma das possibilidades.

    a vitória completa não se obtém com a aniquilação total do inimigo. a vitória completa se produz quando não há luta. o inimigo é vencido pelo emprego da estratégia. ao se criar uma perspectiva mais ampla, a qual, por também englobar o inimigo, conduz obrigatoriamente ao trabalho em conjunto.




    [1] comentário no blog do Luis Nassif
    [2] comentário no blog do Reinaldo Azevedo
    [3] Sun Tzu, “A arte da guerra”
    [4] Sun Tzu, “A arte da guerra”

    05 Julho 2007



    Brasil favela
    para sempre se foi o tempo romântico do Rio quatro vezes favelas. agora no berço do samba proliferam os falcões do tráfico. as vozes que vem do morro são estampidos de armas automáticas.

    ainda há salvação para as favelas?

    mega complexos de construções desconexas de alvenaria erguidas umas sobre as lajes das outras, como labirintos de labirintos. múltiplos andares de favelas, empilhados sobre os escombros daquilo que deveria ter sido uma cidade e um país. um território posto à parte do controle do Estado. uma terra de ninguém para que o Chefe do Morro possa reinar. onde prospera o melhor negócio do Brasil.

    um negócio imune à desestruturação de nossa infra-estrutura produtiva. capaz de reconciliar grandeza de escala com descentralização de operações, conforme as práticas empresariais mais avançadas. e combinar o autofinanciamento típico das antigas estratégias nacionais de produção com a aceleração de prazos e com a flexibilidade de métodos que marcam os empreendimentos internacionalizados de última geração. transforma desespero em prazer, prazer em dinheiro, dinheiro em força. o melhor negócio no Brasil. o narcotráfico. [1]
    entretanto, não há plantação de maconha nas favelas. ou de cocaína. tampouco instalações de refino. muito menos fábricas de armas. a verdadeira favela não está na favela. assim como os verdadeiros imperadores do tráfico lá também não estão. a polícia pode executar tantos e quantos traficantes nas favelas. sempre surgirão mais e mais. ou mesmo bombardear a favela com napalm. inútil. novas favelas se multiplicarão em seu lugar.

    o segredo do poder do narcotráfico é sua dupla sustentação em pólos inversos da pirâmide social: as favelas e o sistema financeiro.

    o território sem lei das favelas é imprescindível na rede do tráfico. fora do alcance do Estado, os territórios das favelas são as bases a partir da quais a rede começa a se capilarizar, ramificando-se por todo o tecido social. as favelas não são pontos de venda no varejo, funcionam como as grandes centrais de abastecimento.

    é esta estratégia de negócio que obriga os traficantes a se armarem. as armas pesadas do tráfico não são utilizadas, prioritariamente, para ações criminosas fora das favelas. e muito menos servem para o enfrentamento com a polícia, com a qual sempre é preferível um "pacto de não agressão" (ou além). o armamento tem como objetivo a manutenção e conquista de território. proteger-se de incursões de facções rivais e dominar outras bases de atuação.

    para se legalizar, os lucros astronômicos do narcotráfico passam pelo mesmo circuito do capital financeiro especulativo, beneficiando-se do livre fluxo de capitais em vigor na economia brasileira. são remetidos ao exterior através das contas CC5 e retornam por um fundo offshore, sob o manto de capital estrangeiro.

    a maneira mais eficaz de estrangular o crime organizado é cercear suas atividades financeiras de duas maneiras: impedindo a circulação de dinheiro e coibindo as atividades que, de alguma forma, possam estar ligadas ao crime organizado. [2] é preciso tratar penalmente a lavagem de dinheiro com os mesmos instrumentos jurídicos de crimes como o tráfico, mesmo que os crimes correlatos (os que geraram os fundos iniciais) estejam sujeitos a penas pequenas. [3] na medida que o BC amplia enormemente as facilidades para a remessa de dinheiro para o exterior, pratica-se lavagem de dinheiro a céu aberto. pelos dutos que passa o dinheiro frio, passa também o dinheiro de origem criminosa. [4]
    a explosão dos mega complexos de favelas é a contrapartida de uma modernização conservadora do latifúndio brasileiro, sob a forma do agronegócio, através de uma selvagem industrialização do campo, que expropriou os moradores das áreas rurais, criando-se um vasto exército industrial de reserva, miserável e favelado. [5]
    o caminho para desenvolvimento trilhado pelos atuais países industrializados - de um passado rural e agrícola, para um urbano e industrial - não pode mais ser reproduzido. o contexto histórico se alterou irreversivelmente. o binômio indústria/urbanização foi tributário da existência de colônias, das migrações em larga escala e das guerras mundiais. além disto, hoje as indústrias empregam cada vez menos. [6]

    não há saída para as cidades brasileiras sem uma ampla erradicação das favelas. não há rumo para o crescimento economicamente sustentado que não seja através da inclusão social e de um novo ciclo de desenvolvimento rural.

    o Brasil necessita de uma economia de guerra.

    a chave para destravar o desenvolvimento está nas massas do trabalho informal. são os marginalizados das cidades e das áreas rurais, os bóias-frias e os favelados, que, ao serem incorporadas à economia formal de modo organizado e estratégico, trarão consigo o crescimento.

    é na inclusão maciça da periferia das grandes metrópoles brasileiras, implicando na construção de bairros inteiros, escolas, centros de saúde e de capacitação profissional, creches, postos policiais e áreas de lazer, acompanhada da implantação de um modelo agrícola baseado em pequenas unidades produção, mas com uso intensivo de alta tecnologia, é desta economia de guerra, com suas inevitáveis imposições de inovações e criatividade de soluções, que virá o desenvolvimento do Brasil.

    nenhum outro país do mundo reúne como o Brasil condições tão favoráveis à criação gradual de uma nova civilização baseada na exploração sistemática do trinômio biodiversidade-biomassas-biotecnologias, estas últimas aplicadas nas duas pontas para aumentar a podutividade das biomassas e abrir o leque dos produtos dela derivados. [7]


    [1] Roberto Mangabeira Unger, "Qual o melhor negócio do Brasil?"
    [2] Luis Nassif, "O crime organizado e os bancos", 17/05/2006
    [3] Luis Nassif, "Um dia de cão", 16/05/2006
    [4] Luis Nassif, "O crime organizado e os bancos", 17/05/2006
    [5] Wladimir Pomar, "A nova estirpe burguesa"
    [6] Ignacy Sachs, "A revolução energética do século XXI "
    [7] Ignacy Sachs, "Inclusão social pelo trabalho decente"

    04 Julho 2007


    novos impasses de uma antiga direita
    as duas vitórias consecutivas de Lula da Silva provocaram danos irreparáveis em ambos os sentidos do espectro ideológico da política brasileira. esquerda e direita já não serão as mesmas. para o bem e para o mal...
    quando o filho do povo Lula I, eleito em nome da esperança de mudança, subiu o Planalto apenas para inaugurar a era Palocci, um estelionato eleitoral como nunca antes se dera na história deste país, a esquerda silenciou. afinal, era o "nosso" governo. não importa que o "nosso" governo tenha uma prática contrária aos "nossos" interesses, ainda assim é o "nosso" governo e cabe a "nós" defendê-lo a todo custo até o último instante.
    em vez de tomar a iniciativa de formular uma crítica consistente ao governo Lula, a quase totalidade da esquerda se empenhou na tentativa de legitimá-lo, entregando-se às mais delirantes teorias esquizofrênicas.
    a manutenção da política econômica derrotada nas urnas era apenas uma inevitável opção tática, por ser impossível dar um cavalo-de–pau no Titanic da economia. ao chegar o devido tempo, um muito bem oculto plano "B" seria implementado. além disto, uma bem sucedida superação do transe da transição dependeria da correlação interna de forças de um governo em disputa. a suposta cautela também se justificava, por não se tratar de uma tomada de poder, apenas se vencera uma eleição presidencial.
    o que restava desta farsa se converteu em tragédia, quando, em agosto de 2005, o publicitário Duda Mendonça confessou ter recebido de caixa dois no exterior pela campanha presidencial de 2002. então, Lula desceu a mais baixa taxa de aprovação a seu governo (28%), com a mais alta reprovação (29%). a cúpula do PT desmoronou, deputados do partido choravam descontrolados no plenário e ministros sugeriam a Lula renunciar. foi também então que PFL (atual DEM) e PSDB optaram por fazer o Presidente sangrar até as eleições de 2006.
    a origem de Lula II deve ser buscada em erros estratégicos da oposição conservadora.
    em janeiro de 2006, Serra tinha o dobro das intenções de votos de Alckmin. apesar disto, o tucanato, sempre tão cheio de pavões, começou a exibir papagaios aos montes, galinhas-d’angola, pardais, periquitos, uma vasta algaravia ornitológica. então, com raro senso de ousadia, o PSDB decidiu abrir mão de quem tem o dobro para escolher quem tem a metade. convenha-se: é preciso bastante "coragem" para fazer tal opção. o que mais impressiona é que o PT não precisou mover uma palha para que o PSDB entrasse em transe. ele fez isso absolutamente sozinho. [1]
    quando já não se podia mais negar que Lula não só fraudara a vontade dos brasileiros, ao radicalizar o projeto que foi eleito para substituir, ameaçando a democracia com o veneno do cinismo, como comandara, com um olho fechado e outro aberto, um aparato político que trocou dinheiro por poder e poder por dinheiro, sendo assim obrigação do Congresso Nacional declarar o impedimento do presidente, também ficou claro que a oposição praticada pelo PSDB é impostura. acumpliciados nos mesmos crimes e aderentes ao mesmo projeto, o PT e o PSDB são hoje as duas cabeças do mesmo monstro que sufoca o Brasil. as duas cabeças precisam ser esmagadas juntas. [2]
    se o repúdio de parcela bastante minoritária da esquerda em relação ao governo Lula foi politicamente canalizado com a criação do P-SOL, o mesmo não ocorreu com a sua contraparte da direita. 

    o anunciado fracasso da alckimia de um candidato a presidente com perfil de gestor não-ideológico só acrescentou frustração a estas parcelas da direita.

    a reeleição de Lula, lastreado apenas na própria imagem e popularidade e impondo derrota arrasadora ao poderoso arco de forças conservadoras que enfrentou, deixou como última opção uma virada de mesa institucional, o recurso desesperado ao terceiro turno. fogo que não se apaga, consome-se por si mesmo. a tática das denúncias gira no vazio. numa confirmação de que certas armas são instrumentos de má sorte. empregá-las por muito tempo é trazer infortúnios para si próprio.

    a sucessão de revezes conduz a direita indignada ao impasse. sem identificação partidária, incapaz de expressão no movimento social, nenhum horizonte histórico para o "golpe redentor"...

    num impensável encontro de paralelas, segmentos da esquerda e da direita, órfãos de um impeachment que não houve e reféns do mesmo sentimento de traição de suas lideranças, convergem na constatação de que a política tradicional se tornou irrelevante.

    enquanto a maior parte da esquerda recuou, se apaziguou e se apadrinhou nos corredores do poder, a direita indignada avançou. deu as caras. a maioria silenciosa se exprime pela web. fazendo dos blogs o seu partido político e dos fóruns de discussão seu parlamento, floresce uma neo-direita. sem envergonhar-se de seu conservadorismo, exibe orgulhosa sua face. o novo impasse faz com que o antigo obscurantismo se manifeste às claras. vindo à luz, corre o risco de se iluminar.

    para uma esquerda que perdeu seu rumo, sua identidade e se prostrou a serviço de um governo que traiu 23 anos de lutas populares não há mais dignidade, nem mesmo no desprezo. ela é hoje o verdadeiro ninho no qual vem se alojar o ovo da serpente.



    [1] Reinaldo Azevedo, em 40 textos defendendo a candidatura de Serra à Presidência, 2006

    [2] Roberto Mangabeira Unger, “Pôr fim ao governo Lula”

    03 Julho 2007


    excesso insuficiente
    "Foi aqui, na Scania, nesse pátio, que nós começamos a conquistar a democratização do nosso país. Era um tempo em que eu dizia que era socialista. Mas aí eu fui presidente de um país capitalista, um país capitalista sem capital." 

    Lula
    02/07/2007

    embora seja visto como padecendo de insuficiência crônica e incurável de recursos, o Brasil tem sido um país de oferta necessariamente abundante de capitais. 
    [1]
    apesar deste enigma da esfinge brasileira já ter sido decifrado em 1963, por Ignácio Rangel, ainda prospera um estado de confortável e conveniente ignorância em relação à questão.
    devido a sua altamente concentrada estrutura de distribuição de renda, o Brasil é um país de baixíssima propensão a consumir. para quem não erga o "véu monetário", entretanto, este fato se mostra deformado e mascarado, de tal forma que uma demanda insuficiente aparece como excessiva. um país sufocado ao peso de sua própria capacidade produtiva ociosa apresenta-se como se tudo lhe faltasse. [2]

    foi também Ignácio Rangel quem anteviu para o Brasil um novo estágio de desenvolvimento, não mais comandado pelo capital industrial, e sim pelo capital financeiro. ousou defender que, para a soberania nacional, a estruturação de um mercado interno de capitais era então da mesma importância estratégica quanto fora no passado a criação de nosso parque industrial. o mercado de capitais se converteria na fonte principal de financiamento da economia, tendo como prioritária destinação dos recursos a criação e expansão dos grandes serviços de utilidade pública.
    hoje, a indústria de fundos de investimentos no Brasil, com patrimônio líquido atual superior a R$ 1 trilhão, é mais desenvolvida, mais sofisticada, mais competitiva e maior como proporção do PIB se comparada a qualquer outro país emergente. [3]
    bastaria uma redução na oferta dos títulos públicos - por conta da diminuição da dívida interna - para disponibilizar uma dinheirama no mercado, para financiar o desenvolvimento. os gestores terão que buscar ativos com rentabilidade para substituir títulos públicos. é erro pensar que o sistema bancário é quem irá prover recursos para financiar empresas e consumo. o funding será dado pelos fundos, financiando a produção por meio de debêntures e o consumo por meio de instrumentos como os Fundos de Direitos Creditórios, pelos quais as empresas antecipam receitas futuras contratadas. [4]
    este cenário promissor é, evidentemente, incompatível com a atual taxa básica de juros. não há incentivo em se investir em atividade produtiva, gerando empregos, renda e aumentando a propensão ao consumo, enquanto a taxa básica do BC regular a disponibilidade de recursos bancários para empréstimos e também remunerar a maior parte da dívida pública. os títulos públicos, qualquer que seja seu prazo nominal de vencimento, têm liquidez diária garantida pelo governo. além disto, a taxa básica por um dia é maior que as taxas de juros de médio e longo prazo. o resultado é um ativo financeiro que rende juros e nunca fica indisponibilizado. esta anomalia proporciona uma rentabilidade diária alta, segura e sem os embaraços de ter que contratar e pagar salário a trabalhadores, sem as complicações com o Fisco, sem taxas e impostos, sem ter que cumprir regras ambientais, sem obrigações sociais. um capitalismo sem risco e que dispensa a produção. [5]


    [1] Ignácio Rangel, "A inflação brasileira"
    [2] Ignácio Rangel, "A inflação brasileira"
    [3] Nélson Rocha Augusto, Folha de São Paulo , 02/07/2007
    [4] Luis Nassif, "Fundos e investimento", 14/08/2003
    [5] José Carlos de Assis

    02 Julho 2007


    c'est moi
    no vácuo político brasileiro tudo parece se desmanchar no ar. como retomar a construção nacional interrompida? ainda faz sentido existir algum Brasil?

    quem é o Brasil? o que quer o Brasil?

    como Madame Bovary estamos condenados a uma vida medíocre e provinciana de um Estado periférico? nossas aspirações de grandeza e desenvolvimento não passam de sonhos românticos?

    desejamos um destino para o qual nos faltam condições objetivas? o que precisamos para mudar de vida? nos bastam nossos próprios recursos? a mesma realidade que nos oprime também nos mostra o caminho de saída?

    na ânsia de viver nossos sonhos, apenas nos frustramos com o desânimo e a decadência.

    pode ser que tenhamos perdido definitivamente o bonde da história, fadados a um inexorável processo de favelização, com perda da unidade nacional, e mesmo territorial.

    um país a serviço do tráfico. drogas, armas, órgãos, pessoas... um arquipélago desordenado de minúsculos guetos de luxo, protegidos por segurança privada e cercados de imensas áreas populares controladas por milícias.

    a cada vez que o processo histórico desemboca numa crise, impondo a necessidade de mudanças, se restabelece no Brasil um acordo de cúpula, pactuado pelas elites, e a mudança se reduz a um rearranjo que tudo muda para que nada fique diferente.

    desta vez não há mais âncoras institucionais disponíveis. o país vaga ao sabor dos escombros.

    países também se suicidam?

    haverá outro caminho para o Brasil? ou permaneceremos reféns do carisma e popularidade de Lula...

    é possível se captar a silenciosa movimentação social que marca o inicio de novos tempos? qual o exato início da mudança? o momento em que os velhos personagens se debatem ao serem todos tragados pela escuridão...

    quem é o Brasil? o que quer o Brasil?

    o Brasil somos nós. o que nós queremos.

    talvez a época dos lobos e dos chacais esteja chegando ao fim. e nossa exasperante tradição de mudanças lentas, seguras e graduais se aproxime vertiginosamente do ponto de ruptura.

    na década de 80 o futuro era dominar o conhecimento do que seria conhecido posteriormente como Tecnologia da Informação.

    hoje, o futuro está em descobrir como estabelecer relação cooperativa com o meio-ambiente, para gerar desenvolvimento sustentável e includente. quem dominar este conhecimento estará na liderança mundial nas próximas décadas.

    estamos destinados a ser a primeira biocivilização da história?

    22 Maio 2007


    horizonte dos eventos
    sem que tenha havido um conhecimento prévio ou nenhuma visão estratégica por parte do governo, uma nova situação altera a dinâmica da economia brasileira. o acúmulo de dólares em nossa balança de pagamentos, criada pela colossal demanda chinesa por matérias-primas, provoca a mudança de sinal em nossas contas externas. [1]

    analistas com fortes conexões com o mercado financeiro, muito embora acertem no diagnóstico, falham na conclusão sobre os motivos da apreciação da moeda brasileira, colocando-a como reflexo natural da mudança estrutural da balança de pagamentos e da desvalorização mundial do dólar.

    os dados entre 2003 e 2006 indicam que a valorização cambial não pode ser exclusivamente creditada às contas externas. a grande maioria das principais economias emergentes teve um saldo em conta corrente como porcentagem do PIB mais elevado que o Brasil, apresentando uma valorização cambial menor.[2]



    ao se relacionar saldo em conta corrente e os juros reais em várias economias, a curva resultante indica que quanto melhor o resultado nas contas externas do país, menores os juros reais verificados. no gráfico se destaca apenas um ponto muito fora da curva: o Brasil. esta distorção abre excelente oportunidade para o mundo financeiro ganhar dinheiro em cima do contribuinte brasileiro. não é por outra razão que o real não pára de se valorizar, apesar da intervenção febril do BC. [3]

    para conter a tendência de sobrevalorização da taxa de câmbio, além de baixar os juros e controlar fluxo de capitais especulativos de curto prazo, é necessário estabelecer um imposto sobre a exportação de commodities, criando um fundo internacional. apesar da tributação, os setores exportadores não têm perda de receita. o ganho com a estabilidade cambial repõe a despesa do imposto. [4]

    para superar a rendição incondicional ao mercado a que o governo voluntariamente se entregou, há uma infinidade de opções.

    no exemplo, um imposto – o que numa abordagem esquemática é prejudicial ao setor exportador – acaba trazendo vantagens. não apenas para os próprios exportadores, como para toda a economia.

    as forças políticas e econômicas pensam e atuam com foco obtuso, movidas por interesses corporativos e sem abrir horizonte estratégico global.

    o que os exportadores querem? exportar mais e melhor. precisam de uma taxa de câmbio competitiva e com retorno atraente em reais. isto é possível através de um instrumento aparentemente contraditório com seus interesses: uma tributação, que provoca efeito inverso de uma primeira análise apressada e obtusa.

    o que os investidores querem? rentabilidade. podem conseguí-la aplicando em títulos públicos, asfixiando a economia com uma dívida interna crescente que suga recursos da produção através da gigantesca carga tributária necessária para arcar com os juros pagos pelo governo. ou podem financiar produção e consumo, via ativos modelados neste sentido.

    basta uma redução na oferta dos títulos - por conta da queda dos juros e da conseqüente diminuição da dívida pública - para disponibilizar uma dinheirama no mercado, que financiará o desenvolvimento. os gestores terão que buscar ativos com rentabilidade para substituir títulos públicos. é erro pensar que o sistema bancário é quem irá prover recursos para financiar empresas e consumo. o funding será dado pelos fundos de investimento, financiando a produção por meio de debêntures e o consumo por meio de instrumentos como os Fundos de Direitos Creditórios (recebíveis, já regulamentados no Brasil). [5]

    não existe antagonismo excludente entre exportações e mercado interno. assim como também entre mercado de capitais e desenvolvimento. o mesmo vale para pequenas empresas e transnacionais.

    o nó que trava o desenvolvimento e mantém a extrema desigualdade social do país não está nessas oposições simplistas.

    óbvio que o grande empresariado, o agronegócio exportador e o capital financeiro historicamente não construíram uma nação desenvolvida, com um forte mercado interno, socialmente justa e relevante na política internacional. inegável este fato. entretanto, a estratégia desses setores sempre foi dependente e associada – com o ápice de sua glória (e ocaso da nação) com os dois mandatos de FHC – que desde os anos 60 teorizou sobre a impossibilidade de um desenvolvimento autônomo, apresentando como única possibilidade a subordinação internacional e o crescimento com investimentos externos.

    o que nos falta é tanto um governo quanto setores da sociedade civil (desde organizações de classe empresarial quanto sindicatos de trabalhadores - sem falar nos partidos políticos) com um claro e coerente projeto de articulação das forças produtivas brasileiras em torno de uma estratégia de desenvolvimento sustentado e includente.


    [1] Luiz Carlos Mendonça de Barros, “Lula e seu keynesianismo”, 06/04/2007
    [2] Bruno Galvão Santos, “A criminosa política monetária-cambial do Brasil”
    [3] Luiz Carlos Mendonça de Barros, “Por que reduzir os juros”, 10/02/2006
    [4] Luiz Carlos Bresser-Pereira, 16/05/2006
    [5] Luís Nassif, “Fundos e investimento”, 14/08/2003

    20 Maio 2007


    tudo a R$ 1,99
    o Brasil vive o melhor momento de sua história. ainda melhor do que os anos dourados de JK e superior ao “milagre” econômico da década de 70. [1]

    mesmo que estejamos “fracassando miseravelmente há 27 anos e ficando para trás, para trás e para trás”[2], os indicadores macroeconômicos vistos pela ótica do mercado financeiro não mentem: "o Brasil vive hoje um círculo virtuoso de crescimento" [3]

    convidados de honra ao banquete especulativo [4], banqueiros, grandes investidores e empresários festejam o negócio da China: dólar a R$ 1,99. e descendo a ladeira...

    deslizando na onda de euforia provocada pelo colossal apetite chinês por commodities, os mega exportadores brasileiros fazem rugir seu espírito animal. não se acanham em declarar que suportam um dólar bem mais barato. [5]

    os maiores empresários que o Brasil já teve, por maiores que sejam, como empresários eles têm apenas um projeto de empresa - mesmo que seja um enorme conglomerado - e não um projeto de pais. para eles, projeto de pais é coisa de estadista. [6]

    historicamente resignados a um medíocre, porém rentável, modelo de desenvolvimento dependente e associado, o grande empresariado brasileiro sempre privilegiou o comércio exterior. são voltados para as exportações. não necessitam desenvolver um mercado interno forte. por isto não se preocupam com um projeto de país. o país é mera plataforma de seus negócios. um acidente geográfico.

    um projeto de país é para todo e qualquer cidadão do país. e deveria constar dos interesses prioritários dos grandes empresários e do planejamento estratégico de suas empresas. sem projeto de país, toda grande empresa, por maior que seja, sempre será pequena no âmbito internacional. relações comerciais internacionais exigem muito mais do que contratos de compra e venda, são assunto de segurança nacional, envolvendo política de governo e esforço integrado da máquina estatal.

    o câmbio está bom para as commodities. é isto. não se poderia resumir e ilustrar melhor. bom para os negócios particulares. pouco importa se está péssimo para o Brasil.

    o crescimento sustentado só será alcançado com competitividade sistêmica, com inclusão social e industrial e trabalho colaborativo [7], com as grandes empresas entendendo que sua competitividade depende do grau de competitividade sistêmica da economia, substituindo a relação de subordinação entre a grande empresa e seus fornecedores pelo conceito de cadeia produtiva. [8]





    [1] Consultoria Tendências, Folha de São Paulo, 20/05/2007
    [2] Luiz Carlos Bresser-Pereira, Folha de São Paulo, 20/05/2007
    [3] Guido Mantega, Ministro da Fazenda, Folha de São Paulo, 20/05/2007
    [4] Marco Antonio Cintra, “Banquete especulativo”, 20/05/2007
    [5] Antonio Ermírio de Moraes, 19/05/2007
    [6] Blog do Nassif, comentários dos leitores, 19/05/2007
    [7] Luís Nassif, “Cooperação e inovação”, 14/07/2004
    [8] Luís Nassif, “O papel da grande empresa”, 15/07/2004

    15 Maio 2007


    “made in Brazil”
    muito embora tenha sido notável o crescimento da economia brasileira entre 1930 e 1980, nosso modelo de desenvolvimento nunca foi autônomo. desigual e combinado, associado e dependente, o desenvolvimento brasileiro foi “consentido”.

    o avanço histórico no Brasil se processa por um crescimento desigual - mais rápido ou mais lento - das forças produtivas, fazendo com que características de etapas inferiores e superiores de desenvolvimento se combinem em nossa sociedade. [1]

    não fomos constituídos como nação, nem mesmo como sociedade. surgimos como uma empresa territorial voltada para fora e controlada de fora. [2] a implantação portuguesa na América teve como base a empresa agrícola-comercial. o Brasil é o único país das Américas criado, desde o início, pelo capitalismo comercial sob a forma de empresa agrícola. [3]

    organizou-se uma holding multinacional, com administração portuguesa, capitais holandeses e venezianos, mão-de-obra indígena e africana, tecnologia desenvolvida em Chipre e matéria-prima dos Açores e da ilha da Madeira – a cana. em torno do excelente negócio do açúcar, a primeira mercadoria de consumo de massas em escala planetária, se formou o moderno mercado mundial. [4]

    do ponto de vista da história mundial, a escravidão foi um anacronismo, pois já havia desaparecido da Europa Ocidental. entretanto, como solução para superar a carência de mão-de-obra demandada pela empresa agrícola-exportadora, a escravidão colonial cresce como um braço do capitalismo comercial. assim, um modo de produção historicamente já superado, novamente ressurge, em conseqüência das exigências de um sistema mais moderno, e com ele se combina e dele faz parte.

    a expansão do capitalismo no Brasil se dá introduzindo relações modernas no arcaico e reproduzindo relações arcaicas no moderno. [5] o “moderno” agronegócio dos usineiros do álcool não produz comida [6] e submete os “trabalhadores em um regime de escravidão disfarçada” [7], impondo uma rotina aos cortadores de cana que lhes reduz a vida útil de trabalho à cerca de 12 anos, comparável a dos escravos em 1850, antes da proibição do tráfico negreiro. [8]

    o “arcaico” e o “moderno” se entrelaçam e formam o nó que interdita o avanço do país para um desenvolvimento com inclusão social.

    surgida nas entranhas do complexo cafeeiro, a burguesia industrial jamais teve a mais longínqua pretensão de liderar um projeto de soberania nacional.

    associada ao latifúndio, em cujo berço esplêndido foi nascida [9], e dependente dos compromissos externos, para manter sua sustentação interna, a burguesia brasileira sempre preferiu se acomodar na condição de sócio-menor do capitalismo internacional, voltando as costas à aliança com as classes subordinadas e ao compromisso com o desenvolvimento nacional. [10]

    o capital industrial brasileiro não surge num momento de crise do complexo cafeeiro exportador. ao contrário, desponta num instante de auge, em que a taxa de rentabilidade alcançava níveis elevadíssimos. os lucros gerados entre 1889 e 1894 não encontravam plena aplicação na economia cafeeira. a acumulação financeira excedia as possibilidades de acumulação produtiva. bastava, portanto, que os projetos industriais assegurassem uma rentabilidade positiva, garantindo a reprodução global dos lucros, para que se transformassem em decisões de investir. [11]

    o núcleo da nascente burguesia industrial brasileira encontra suas origens na emigração européia. entretanto, ao contrário do mito do self-made man, de origem modesta e que constitui fortuna graças ao trabalho árduo e persistente, o imigrante que vem a se tornar proprietário de empresas no Brasil aqui já chega com alguma forma de capital, pertencia a famílias de classe média, possuía também instrução técnica, e, muitas vezes, havia sido contratado como administrador.[12]

    para a burguesia industrial nascente, a base de apoio para o início da acumulação não é a pequena empresa industrial, mas o grande comércio ligado às atividades de importação e exportação. do mesmo modo que a exportação, a importação é dominada em grande parte por empresas estrangeiras. por sua vez, o comércio interno é controlado pelos importadores. graças a sua origem social, o burguês imigrante encontra facilmente um lugar no grande comércio. [13]

    desse modo, o latifúndio exportador, a importação, o grande comércio e a burguesia imigrante, que vem a ser o núcleo da burguesia industrial nascente, estão todos intimamente conectados.

    dependente de capital externo e associado aos países centrais, o desenvolvimento brasileiro é caracterizado por desigualdades profundas, relacionadas com a superexploração da mão-de-obra, o que possibilita a transferência de lucros para o exterior. a desigualdade interna se torna, desse modo, um elemento estrutural da economia mundial. [14]

    o subdesenvolvimento não se constitui em de etapa obrigatória dentro de uma perspectiva evolucionista em direção ao desenvolvimento. o subdesenvolvimento é a forma pela qual o desenvolvimento capitalista se efetuou nas ex-colônias - as quais tinham a função histórica de serem elementos subordinados na cadeia de acumulação de capital. o subdesenvolvimento é o lugar próprio da periferia na divisão internacional do capitalismo, exprime uma relação de dependência e subordinação em relação aos países centrais do sistema. como resultante se tem a criação de estruturas híbridas, uma parte das quais tende a se comportar como um sistema capitalista, a outra, a manter-se dentro da estrutura preexistente. [15]

    apesar da aparente oposição formal, o “moderno” e o “atrasado” se integram. a combinação de um intenso processo de industrialização com uma estrutura agrária basicamente atrasada produz taxas extraordinárias de acumulação por um lado, e por outro, níveis absurdos de exploração da força de trabalho. [16]

    a partir de 1930, com a mudança da potência hegemônica no plano internacional, as condições para a industrialização do Brasil se ampliam. o capitalismo financeiro europeu mantinha a política de organizar o suprimento de matérias-primas e produtos agro-primários para a metrópole, preservando o mercado periférico para os produtos industriais metropolitanos. outra, porém, seria a atitude do capital financeiro norte-americano, que não era supridor tradicional de produtos industriais no Brasil e contava com uma vasta e diversificada produção metropolitana, condição que o desenvolvimento da técnica só tendia a consolidar, industrializando a agricultura e a produção de matérias-primas. conseqüentemente, esse novo capital financeiro pouco tinha a perder com o desenvolvimento de alguma indústria no Brasil e, ao contrário, muito tinha a ganhar. [17]

    em 1950, Getúlio Vargas contava com uma versão do Plano Marshall para a América Latina. entretanto, a estratégia dos EUA previa o investimento privado das grandes corporações, e não a ajuda oficial. foi Juscelino quem compreendeu o espírito da época. sem Plano Marshall, tivemos a Volkswagen e a Ford... [18]

    as empresas multinacionais e o capital financeiro internacional não impedem, mas condicionam perversamente o desenvolvimento econômico, promovendo a concentração de renda da classe média para cima e estimulando o autoritarismo. a causa do atraso dos países subdesenvolvidos não está apenas na exploração do centro imperial, mas também, senão principalmente, na incapacidade das elites locais, especificamente da burguesia, de serem nacionais, ou seja, de pensarem e agirem em termos dos interesses nacionais. [19]

    os países periféricos passam a produzir certos artigos industriais, primeiro para o mercado interno, depois para exportação, inclusive para os próprios países centrais, quando por eles não podem mais ser produzidos tão lucrativamente. longe de diminuir a dependência, este processo apenas a intensifica e fracassa na resolução do problema central do desenvolvimento do mercado interno. [20]


    [1] Trotsky, "A história da revolução russa"
    [2] Caio Prado Jr, "A formação do Brasil contemporâneo"
    [3] Celso Furtado, "Análise do Modelo Brasileiro"
    [4] César Benjamin, "Uma certa idéia de Brasil"
    [5] Francisco de Oliveira, “Crítica à razão dualista”
    [6] Ariovaldo Umbelino de Oliveira, Correio da Cidadania, 02/05/2007
    [7] Luiz Felipe de Alencastro, sequenciasparisienses.blogspot.com
    [8] Maria Aparecida de Moraes Silva, citada por Mauro Zafalon, Folha de São Paulo, 29/04/2007
    [9] Wladimir Pomar, "Um mundo a ganhar"
    [10] FHC, "Empresariado industrial e desenvolvimento econômico"
    [11] João Manuel Cardoso de Mello, "O capitalismo tardio"
    [12] Warren Dean, "A industrialização de São Paulo"
    [13] Sérgio Silva, "Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil"
    [14] Theotônio dos Santos, “Dependência e mudança social”
    [15] Celso Furtado, “Elementos de uma teoria do desenvolvimento”
    [16] Francisco de Oliveira, “Crítica à razão dualista”
    [17] Ignácio Rangel, “História da dualidade brasileira”
    [18] José Luis Fiori, “O capitalismo e suas vias de desenvolvimento”
    [19] Luiz Carlos Bresser-Pereira, “Do ISEB e da CEPAL à Teoria da Dependência” 

    [20] André Gunder Frank, “Acumulação dependente e subdesenvolvimento”

    05 Maio 2007


    ruptura
    nas eleições presidenciais de 2006, quando parecia que a política se tornara definitivamente irrelevante e os Mercados já festejavam pacificados, não importando quem vencesse, o segundo turno politiza a campanha e a pauta das eleições se altera. [1]

    com a reeleição de Lula, a população brasileira reafirma modo inequívoco a sua escolha. a vontade de mudança, reprimida por décadas, séculos, expressou-se mais uma vez pacificamente, democraticamente. [2]

    as massas populares passam a ser o protagonista de qualquer novo projeto nacional que se pretenda legítimo. a inclusão social se torna o ponto central da política. [3]

    o país entra em um instante particularmente rico de sua história. forma-se um consenso: o Brasil precisa crescer.[4] e, dessa vez, um crescimento que surta efeito includente e de superação das desigualdades. [5]

    mas como crescer? em qual direção? qual o desenvolvimento que precisamos? bastaria apenas tentar reproduzir o padrão de consumo dos países desenvolvidos?

    a hipótese de extensão ao conjunto dos países das formas de consumo que prevalecem nos países centrais não tem cabimento dentro das possibilidades evolutivas aparentes do sistema capitalista. o custo, em termos de depredação do mundo físico é de tal forma elevado, que toda tentativa de generalização levaria inexoravelmente ao colapso de toda uma civilização, pondo em risco a sobrevivência da espécie humana. a idéia de que os povos pobres podem algum dia desfrutar das formas de vida dos atuais povos ricos é simplesmente irrealizável. as economias da periferia nunca serão desenvolvidas no sentido similar às economias que formam o atual centro do sistema capitalista. cabe, portanto, afirmar que a idéia de desenvolvimento econômico é simplesmente um mito. [6]

    qualidade de vida não é uma mercadoria que se possa comprar. tampouco uma posição a ser ocupada na pirâmide social. não importa o quanto de dinheiro e riqueza disponível. taxa de lucro e acumulação de capital não redundam, automaticamente, em qualidade de vida.

    qual então o modelo de desenvolvimento que também proporcione qualidade de vida?

    eleito com o voto das massas trabalhadoras, Lula prefere governar com as elites. [7] sua ampla coalizão política "pensando nos próximos 20 anos” [8], reúne apenas quem nas últimas décadas sempre esteve no poder. [9]

    por mais ampla, porém, que seja a coalizão, não haverá alternativa para um governo de mudanças se sua liderança, o presidente, não introduzir a sociedade brasileira como interlocutora. se uma vez mais – em 2007 repetindo 2003 – , o governo optar pelos entendimentos de gabinete, se uma vez mais apostar na solução dos impasses através as negociações de elite, de cima para baixo, em entendimentos com banqueiros e empresários da grande imprensa, perderá a força do apoio popular e não realizará qualquer das mudanças necessárias, ou pelo menos não as realizará na medida exigida pelo país. [10]

    Lula privilegia os grandes grupos, o grande capital. oferece desonerações tributárias para os setores afetados pelo câmbio, enquanto mantém blindado o cerne da política econômica, atendendo aos setores dominantes, bancos e grandes investidores, com a mais alta taxa de juros reais do mundo.

    o “moderno” agronegócio dos usineiros do álcool, os novos heróis de Lula [11], não produz comida [12] e submete os “trabalhadores em um regime de escravidão disfarçada”[13] o novo ciclo da cana-de-açúcar impõe uma rotina aos cortadores que lhes reduz a vida útil de trabalho à cerca de 12 anos, comparável a dos escravos em 1850, antes da proibição do tráfico negreiro. [14] mesmo assim, o ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues, titular da pasta no primeiro mandato de Lula, afirma que o trabalho dos cortadores de cana é "bruto, pesado, mas bem remunerado"[15]

    do café à cana-de-açúcar, numa viagem imóvel pelos séculos, Ribeirão Preto é a imagem do Brasil e de sua elite. paralisada no tempo, produzindo commodities e combinando a desigualdade do trabalho semi-escravo dos cortadores de cana com o enriquecimento dos senhores das modernas usinas. resiste obstinadamente a todas as transformações fundamentais. haure sua longevidade do veneno, que a alimenta e corrompe o vinho novo, incapaz assim de fermentar. um modelo incapaz de trazer desenvolvimento e muito menos inclusão social. o “arcaico” e o “moderno” se entrelaçam e formam o nó que interdita o avanço do país.
    como reconstruir a sociedade após um século de derrocada das utopias? a esquerda atua e fala como se escondesse um plano que não tem. temerosa da reação econômica a qualquer iniciativa transformadora, esforça-se para parecer confiável aos que manejam o dinheiro. as lições da experiência contemporânea são inequívocas: os países que avançam são os que insistem em fazer diferente, os que inovam [16]

    enquanto Lula desperdiça o auge de seu poder na instauração de um hipotético consenso abrangente e duradouro [17], na desolação do cenário político brasileiro, mesmo que nada se ouça, além do silêncio, ainda assim é possível sentir um grito infinito atravessando a paisagem. [18]

    para romper este silêncio gritante no qual um país inteiro se imobilizou, surge a situação que toma impossível qualquer retrocesso e na qual são as próprias condições que gritam: aqui está o Brasil, salta aqui! [19]

    os velhos odres devem ser abandonados. [20]

    não há mudança sem ruptura. parto sem dor. passamos do tempo das postergações, hesitações, meias-medidas, apaziguamentos, conciliações, recuos e capitulações voluntárias. chegou o momento de tomar a trajetória que exige autotransformação, a via do engrandecimento, pavimentada com as dores da reconstrução de nós mesmos. [21]

    sem atingir o coração das trevas da política econômica, rompendo o pacto maldito entre a Casa Grande e a Senzala, entre os bancos e os grotões, entre as forças do mercado e as favelas, entre o Copom e o Bolsa Família, que para uns distribui juros, enquanto perpetua a miséria dos outros com políticas compensatórias, não haverá desenvolvimento, não haverá inclusão social.

    as soluções existem. elas são mais do que sabidas. estão colocadas sobre as mesas de todas as autoridades. todo mundo sabe como resolver. o que falta é decisão: [22]

    controle de fluxo de capitais; queda dos juros até patamar correspondente a classificação de risco internacional do Brasil; reforma para terminar com a indexação dos títulos federais pela Selic, ou seja, fim da correção diária da dívida pública interna pela mesma taxa de juros que o Banco Central estabelece sobre as reservas bancárias para conduzir a política monetária; desindexação dos preços dos serviços públicos, e, mais amplamente, a proibição terminante de o governo brasileiro aceitar qualquer indexação em seus contratos e preços administrados; BC assumir como missão, além do controle da inflação, a manutenção do nível do emprego e do crescimento econômico.

    para nos livrarmos das armadilhas do fiscalismo - aceitação integral da cartilha dos mercados financeiros - e do mercantilismo – economia voltada para as exportações e o mercado externo - é preciso produzir mais e melhor, dando a dezenas de milhões de brasileiros as condições para participarem do esforço produtivo e para consumir-lhe os produtos. [23]

    a chave para destravar o desenvolvimento está nas massas do trabalho informal. são os marginalizados das cidades e das áreas rurais, os bóias-frias e os favelados, que, ao serem incorporadas à economia formal de modo organizado e estratégico, trarão consigo o crescimento.

    é na inclusão maciça da periferia das grandes metrópoles brasileiras, implicando na construção de bairros inteiros, escolas, centros de saúde e de capacitação profissional, acompanhada da implantação de um modelo agrícola baseado em pequenas unidades camponesas de produção, é desta economia de guerra, com suas inevitáveis imposições de inovações tecnológicas e criatividade de soluções, que virá o desenvolvimento do Brasil.






    [1] arkx, “a terceira via”, 18/10/2006
    [2] Lula, Discurso de posse na Câmara, 2007
    [3] Luis Nassif, “Os cabeças de planilhas”
    [4] Roberto Mangabeira Unger, “Duas ilusões ruinosas“ 

    [5] Roberto Mangabeira Unger, “Crescer“ 
    [6] Roberto Mangabeira Unger, “Duas ilusões ruinosas“
    [7] arkx, “a segunda descida aos infernos de Lula da Silva”, 31/03/2006
    [8] Lula, 23/03/2007
    [9] arkx, “ciclos”, 26/03/2006
    [10] Roberto Amaral, “As eleições de 2006 e as massas: uma emergência frustrada?”
    [11] Lula, 30/03/2007
    [12] Ariovaldo Umbelino de Oliveira, Correio da Cidadania, 02/05/2007
    [13] Luiz Felipe de Alencastro, sequenciasparisienses.blogspot.com
    [14] Maria Aparecida de Moraes Silva, citada por Mauro Zafalon, Folha de São Paulo, 29/04/2007
    [15] Folha de são Paulo, 01/05/2007
    [16] Roberto Mangabeira Unger, “Contra a corrente“
    [17] Roberto Mangabeira Unger, “Crescer sem dogma”, 13/03/2007
    [18] arkx, “entreato”, 15/04/2007
    [19] Karl Marx, "O 18 Brumário"
    [20] Raymundo Faoro, "O estamento burocrático no Brasil: consequências e esperanças"
    [21] Roberto Mangabeira Unger, “Qual futuro?”, 27/03/2007
    [22] Julio Sergio Gomes de Almeida, ex secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, demitido por ter criticado a política monetária do BC e seus efeitos sobre o câmbio, 04/04/2007

    [23] Roberto Mangabeira Unger, “Duas ilusões ruinosas“

    15 Abril 2007


    entreato
    a inabalável popularidade de Lula e de seu governo, confirmada pelas últimas pesquisas de opinião pública, tornou-se o pior dos pesadelos para as oposições conservadoras.


    pode acontecer qualquer coisa que não vai dar em nada, porque o país já não se assusta com mais nada. o governo está protegido, blindado. [1]
    se hoje Lula parece inexpugnável, uma das origens de sua atual blindagem se deve a diversos erros estratégicos das oposições.

    num passado não tão remoto, em dezembro de 2005, Lula descera aos infernos. teve a mais baixa taxa de aprovação a seu governo (28%), com a mais alta reprovação (29%). enquanto a cúpula do PT desmoronava, deputados do partido choravam no plenário e ministros sugeriam a Lula renunciar, PFL e PSDB optaram por fazer o Presidente sangrar até as eleições. [2]


    em janeiro de 2006, Serra tinha o dobro das intenções de votos de Alckmin. apesar disto, o tucanato, sempre tão cheio de pavões, começou a exibir papagaios aos montes, galinhas-d’angola, pardais, periquitos, uma vasta algaravia ornitológica. então, com raro senso de ousadia, o PSDB decidiu abrir mão de quem tem o dobro para escolher quem tem a metade. convenha-se: é preciso bastante “coragem” para fazer tal opção. o que mais impressiona é que o PT não precisou mover uma palha para que o PSDB entrasse em transe. ele fez isso absolutamente sozinho. a política brasileira é mesmo um chuchuzinho. [3]

    no início do primeiro governo Lula, a Esquerda se dedicou a formular explicações para a contradição do PT dar continuidade ao modelo econômico de FHC. em algum momento, conjeturava-se, Lula colocaria em prática um suposto “Plano B”, coerente com seu histórico na oposição e capaz, enfim, de implementar as promessas de campanha. o tempo se encarregou de provar que se o tal “Plano B” estava tão bem escondido é porque nunca chegou sequer a existir. [4]

    mesmo com o fraco desempenho nacional nas eleições de 2006, menos de 7%, Heloísa Helena teve no estado do Rio de Janeiro 17% dos votos, alcançando 20% na capital. numa eleição polarizada, HH e Cristovam dividiram 25% do eleitorado do RJ. sem qualquer prejuízo para Lula, que obteve mais de 49%. infelizmente, a frente de apoio a HH, formada pelo P-SOL, PSTU e PCB, mostrou-se coerente com o insuperável talento da esquerda em sucumbir aos seus próprios conflitos internos. e nem mesmo um programa de governo foram capazes de produzir. [5]

    após o fracasso em duas eleições sucessivas, PSDB e PFL-DEM decididamente não demonstram a menor vocação para o incômodo papel de oposição a que se viram alijados. com sua política sem povo e cúmplices do governo no apoio ao modelo econômico, só lhes resta como arena de batalha o circo da grande mídia.

    o patriarcado da política brasileira ainda acredita que, para virar o jogo a seu favor, basta xingar Lula de “ladrão”. no fundo, o que não aceita é a quebra do monopólio da corrupção, algo que deteve pelos últimos 500 anos. o eleitorado pobre se identifica com Lula e ao olhar para os oligarcas vê a cara do patrão e do desemprego. o raciocínio é simples: ladrão por ladrão, é melhor que seja um da nossa turma que conseguiu chegar lá. [6]

    entretanto, seria um grave erro concluir que a força de Lula vem da fraqueza das oposições, conservadoras ou não. é preciso compreender Lula não pelo que lhe falta e sim pelo que o tornou possível.

    nossa história tem sido uma sucessão de modernizações conservadoras e transições tuteladas, sem jamais incluir no "pacto democrático" as classes trabalhadoras, [7] o que nos mantém aprisionados entre dois mundos: um definitivamente morto e outro que luta por vir à luz. [8]

    a cada vez que o processo histórico desemboca numa crise, impondo a necessidade de mudanças, se restabelece no Brasil um acordo de cúpula, pactuado pelas elites, e a mudança se reduz a um rearranjo que tudo muda para que nada fique diferente. [9]

    em 1980, o PT surge como um partido eminentemente não parlamentar, nascido do movimento social, firmemente apoiado nas bases, com um sólido conceito de democracia interna e voltado para a criação de um socialismo libertário. então, a roda da História se pôs a girar mais decidida do que nunca no Brasil. pela primeira vez neste país, os trabalhadores reivindicavam a condição de protagonistas. [10] começava a se romper nossa exasperante tradição de mudanças lentas, seguras e graduais.

    a eleição de Lula em 2002 marca uma escolha inédita: a opção pela mudança e a rejeição ao continuísmo. [11] Lula foi eleito como um símbolo vivo de oposição a um modelo sócio-econômico. suas características pessoais e sua trajetória política fizeram dele o homem certo para receber as expectativas de 53 milhões de Brasileiros. [12]

    conduzido nos ombros da plebe ao palácio com a missão de mudar o Brasil, o presidente filho do povo operou o maior estelionato eleitoral da história do país. de tanto fingir o que é, o homem acabou por se tornar aquilo que fingia, mas que de fato era. a mais completa impostura na sincera mentira de representar a verdade. [13]

    porém, a primeira eleição de Lula não foi um parêntesis histórico. com a reeleição, a população brasileira reafirma modo inequívoco a sua escolha. a vontade de mudança, reprimida por décadas, séculos, expressou-se mais uma vez pacificamente, democraticamente. [14]

    mais do que no carisma ou na identificação com as camadas mais pobres da população, a força de Lula deve ser buscada em poderosos movimentos históricos, para os quais um simples homem não passa de humilde instrumento, expressão de um projeto coletivo. [15]

    o Lula Presidente se esmera no extenuar do auge de seu poder em postergações, hesitações, meias-medidas, apaziguamentos, conciliações, recuos e capitulações voluntárias.

    como uma metáfora encarnada do processo histórico brasileiro, no qual, muito embora imposta como necessária pelo próprio desenvolvimento da sociedade, a mudança é sempre adiada ao máximo, e, ao se tornar inevitável, é antecipada, para que, no transigir, se possa limitá-la.

    para o desespero das oposições conservadoras, a força de Lula advém de que não há mais retrocesso para o Brasil. as massas populares serão o protagonista de qualquer novo projeto nacional que se pretenda legítimo. a inclusão social passa a ser o ponto central da política. [16]

    o simples fato de Lula ser eleito fez com que tudo mudasse, mesmo que seu Governo não mudasse nada! a política no Brasil jamais será a mesma. [17] a nação não mais será a mesma após o Governo Lula. apesar dele, tudo mudou. tudo mudará. [18]

    após Collor e FHC, Lula marca o fim de um ciclo. a definitiva falência não apenas de um modelo sócio-econômico, como de uma estrutura política que se demonstraram incapazes de desenvolver o Brasil e proporcionar qualidade de vida aos seus habitantes. [19]

    eleito por duas vezes em nome da mudança, Lula se tornou o último bastião do continuísmo. desafiado a fazer História, prefere envelhecer calmamente, orgulhoso e impenitente. ao querer ousar, para fazer mover o destino de um povo e de uma nação, apenas aguarda, em espera paciente, a instauração de um consenso abrangente e duradouro. [20] entretanto, a cada vez que os homens se pretendem mais espertos que a História, acabam logrados como tolos.

    com o Brasil imobilizado na travessia, sem que possa retornar e interditado seu avanço, a desolação do cenário político provoca indignação e desalento. mesmo que nada se ouça, além do silêncio, ainda assim é possível sentir um grito infinito atravessando a paisagem. [21]

    embora possua asas, na maior parte das vezes o Dragão apenas se arrasta pelo fundo lamacento das águas. enquanto ondula seu corpo ao rastejar, fazendo com que a terra afunde sob seu peso, o Dragão supõe que está alçando vôo. volta e meia um vago sentimento lhe aturde. então, como se fosse um sonho, o Dragão entrevê num lapso que acima da lama e da água pairam o ar e o céu. [22]

    1 Marco Antonio Villa, 04/04/2007
    2 arkx, "por bem , ou por mal", 05/11/2006
    3 Reinaldo Azevedo, em 40 textos defendendo a candidatura de Serra à Presidência, 2006
    4 arkx, "o lado B", 24/08/20065
    5 arkx, "à esquerda", 07/10/2006
    6 arkx, "giro no vazio", 28/10/2006
    7 Maria da Conceição Tavares, "Política e economia na formação do Brasil contemporâneo"
    8 Sérgio Buarque de Holanda, "Raízes do Brasil"
    9 Raymundo Faoro, "Existe um pensamento político brasileiro?"
    10 arkx, "a sola dos sapatos de FHC e a roda da História", 13/12/2002
    11 arkx, "a hora da verdade", 14/12/2002
    12 arkx, "tenham uma boa amnésia...", 16/12/2002
    13 arkx, "tudo mudará", 05/09/2005
    14 Lula, Discurso de posse na Câmara, 2007
    15 Lula, Discurso de posse na Câmara, 2007
    16 Luis Nassif, "Os cabeças de planilhas"
    17 arkx, "a mudança de todos nós", 12/01/2003
    18 arkx, "tudo mudará", 05/09/2005
    19 arkx, "bando selvagem", 30/09/2006
    20 Roberto Mangabeira Unger, "Crescer sem dogma", Folha de São Paulo, 13/03/2007
    21 Edvard Munch, sobre "O Grito"
    22 arkx, "o Tigre e o Dragão", 12/12//2002

    11 Abril 2007


    o grito
    nas últimas eleições, Lula enfrentou um poderoso arco de forças, ao qual impôs uma derrota arrasadora. sua reeleição o trouxe a uma situação absolutamente singular. lastreado na própria imagem e popularidade, Lula não se descolou somente do PT, move-se através da estrutura partidária e acima do sistema político com a desenvoltura de um mito.
    [1]

    Lula converteu-se num mito, e o mito é antipolítico por excelência, acima das classes, dos conflitos. 
    [2]

    muito embora a dinâmica do segundo turno das eleições de 2006 tenha obrigado Lula a carimbar seu novo mandato como "desenvolvimentista" 
    [3], o perfil do governo surgido da reforma ministerial é, mais uma vez, afinado com os interesses derrotados nas urnas.

    sem luz própria, a feição do novo ministério é a de um ajuntamento para o desfrute da máquina estatal, posta a serviço do continuísmo do modelo econômico dominante. um ministério apagado e de perfil baixo, que não manda, não pode e não vale nada, é de grande valia para os negócios que estão dominando a política. 
    [4]

    com a área econômica blindada pelo “sucesso” 
    [5], a política econômica se reduz a mero processo de acomodamento de pressões. [6]

    lançado com a pretensão de acelerar a retomada do desenvolvimento, o PAC prossegue empacado. tudo indica que se tornará o “Fome Zero” do segundo mandato: puro marketing de início de governo.

    pela política monetária prevista no PAC, somente em 2010 será alcançada uma taxa de juros de 10% ao ano, o que é incompatível com o objetivo do crescimento. os ativos financeiros permanecem mais atraentes que o investimento produtivo. e não se reduz de forma significativa a despesa do governo Federal com pagamento de juros, inviabilizando os investimentos públicos. 
    [7]

    até mesmo parcelas da Direita mais conservadora parecem já ter desvendado o enigma brasileiro.

    por um lado: os ricos gritam "Enxuguem o Estado!", mas querem continuar nadando na piscina das verbas oficiais. prosternam-se ante a autoridade governamental e depois reclamam que ela os oprime com sobrecarga de impostos e de exigências burocráticas. 
    [8]

    e do outro: a maior fonte de recursos do BNDES é o FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), um fundo gerido pela classe trabalhadora. ou seja, o FAT é o maior financiador de capital de longo prazo no país. entretanto, os trabalhadores que ascendem à função de gestão desses recursos estão focados exclusivamente na rentabilidade do capital. embora sob gestão dos trabalhadores, os recursos do FAT passam, então, a financiar uma reestruturação econômica que só produz desemprego. 
    [9]

    trabalhadores transformados em operadores de fundos públicos se entrelaçam com as tradicionais e novas oligarquias brasileiras, sempre dependuradas nos subsídios governamentais, nas desonerações tributárias, nas renúncias fiscais, na rentabilidade farta e segura dos títulos públicos da dívida interna.

    a identidade dos dois casos reside no controle do acesso aos recursos públicos, no conhecimento do “mapa da mina”.

    a desolação do cenário político brasileiro provoca indignação e desalento. mesmo que nada se ouça, além do silêncio, ainda assim é possível sentir um grito infinito atravessando a paisagem. 
    [10]

    conforme pesquisa da CNT/Sensus [11], o governo tem avaliação positiva de 49% dos entrevistados e o desempenho pessoal de Lula atinge 63% de aprovação. ainda que no auge de seu poder, Lula não tem como eternizar a duração desse momento. a festa da reeleição fica para trás. começa a longa e desgastante travessia do segundo mandato.

    parte majoritária da Esquerda se manteve paralisada no primeiro governo de Lula, tido então como supostamente em disputa. apesar de ter um mundo a ganhar, coube a Esquerda colocar tudo a perder. mesmo que fosse contra as políticas do Governo Lula, ainda assim se manteve a favor dele. mais do que esquizofrenia política, tal postura é um grave problema de ética. não importa que o “nosso” governo tenha uma prática contrária aos “nossos” interesses, ainda assim é o “nosso” governo e cabe a “nós” defendê-lo a todo custo até o último instante. [12]

    para romper o silêncio gritante no qual se imobilizou, a Esquerda não terá opção a não ser criticar constantemente a si própria, interromper continuamente seu curso, voltar ao que parecia resolvido para recomeçá-lo outra vez, escarnecer com impiedosa consciência as deficiências, fraquezas e misérias de seus primeiros esforços, parece derrubar seu adversário apenas para que este possa retirar da terra novas forças e erguer-se novamente, agigantado, diante dela, recuar constantemente ante a magnitude infinita de seus próprios objetivos até que se cria uma situação que toma impossível qualquer retrocesso e na qual as próprias condições gritam:

    aqui está o Brasil, salta aqui! [13]





    [1]
     arkx, "Lula II: o Homem-Presidência", 26/10/2006[2] Francisco de Oliveira, entrevista ao O Globo, 04/02/2007[3] arkx, "a terceira via", 18/10/2006[4] Léo Lince, "Modo lulista de governar", 05/04/2007[5] Lula, 04/03/2007[6] Luis Nassif, "Um país sem sorte", 05/04/2007[7] João Sicsú , "Depois de quatro anos: governo tenta mudar o rumo"
    [8] Olavo de Carvalho, citado no blog do Reinaldo Azevedo, 09/04/2007
    [9] Francisco de Oliveira, "O ornitorrinco"
    [10] Edvard Munch sobre "O Grito"
    [11] 11/04/2007
    [12] arkx, "o nosso governo", 05/10/2003
    [13] Karl Marx, "O 18 Brumário"

    08 Abril 2007


    tragédia e farsa
    mesmo após o fim da escravidão e da proclamação da República, o uso da chibata como medida disciplinar continuou sendo aplicado na Marinha brasileira.

    como nos tempos do pelourinho, os marinheiros, em esmagadora maioria negros, eram açoitados, por determinação da oficialidade branca, ao som de tambores e diante dos companheiros perfilados.

    durante a Revolta da Chibata, deflagrada em 22/11/1910, os marujos negros, liderados por João Cândido, se amotinam pelo fim da chibata, criando um impasse institucional.

    os comandantes da Marinha queriam uma rigorosa punição dos sublevados. governo e políticos avaliavam que, naquele momento, os marinheiros estavam militarmente mais fortes, pois controlavam os principais navios da armada, mantendo os canhões apontados para a capital da República.

    o governo foi pego de surpresa. grande parte da população da cidade se entrega ao pânico. somente em um dia partem 12 trens especiais para Petrópolis, levando 3.000 pessoas.

    o povo comum está feliz. a gente de cor, os escravos de ontem, sorriem com orgulho mostrando a brancura de seus dentes, porque vem nascer para eles uma nova era de liberdades não sonhadas. [1]

    em 1850, na província do Rio de Janeiro, o número de escravos (294.000) ultrapassava o número de livres e libertos (264.000). na cidade do Rio, viviam na mesma data, 266.000 habitantes dos quais 110.000 (41%) eram escravos, formando a maior concentração urbana de cativos das Américas e da época moderna. ricos, remediados e pobres; padres, padeiros e militares; fazendeiros e escreventes; muita gente possuía escravos. [2]

    Rui Barbosa apóia os marinheiros e condena os “abusos com os quais, na gloriosa época do abolicionismo, levantamos a indignação dos nossos compatriotas”.

    a revolta dura cinco dias e acaba vitoriosa. os amotinados são anistiados com a aprovação de um projeto, em cujo artigo 1° constava:

    "Será concedida anistia aos insurretos da Armada Nacional, se estes, dentro do prazo que lhes fora marcado, pelo Governo, se submeterem às autoridades constituídas".

    porém, logo vem a traição. a anistia fora uma farsa para desarmar os amotinados.

    os marinheiros procuram Rui Barbosa, mas sequer são recebidos. civis e militares se unem para restaurar honra e brios da Marinha.

    não podiam admitir que João Cândido, o "Almirante Negro", se tornasse a alma da Marinha brasileira. e que sua sombra fosse o ídolo dos marinheiros de amanhã. e tivesse suas façanhas cantadas pela massa popular, que imortaliza mais que os bronzes oficiais. [3]

    os líderes do movimento são expulsos. cerca de 100 marinheiros são presos e mandados, nos porões do navio "Satélite", para serem abandonados na Floresta Amazônica. alguns são fuzilados e atirados no mar.

    na noite de Natal de 1910, João Cândido é preso e enviado para uma masmorra na Ilha das Cobras, com mais 17 companheiros. são jogados em uma cela recém-lavada com água e cal. na manhã seguinte, sobreviviam apenas dois presos. um deles, João Cândido. o médico da Marinha, no entanto, diagnosticou a causa das mortes como sendo "insolação".

    seria impossível explicar os modestos avanços e os contínuos recuos do processo democrático no Brasil sem incluir aí a colaboração ativa da burguesia brasileira. [4]

    a cada vez que desafiados pelos trabalhadores, os setores dominantes brasileiros nunca hesitaram em reagir com violência brutal. forte com os fracos e submissa aos poderosos, a burguesia brasileira jamais teve o menor prurido em se manter de joelhos frente ao capital internacional.

    fatos e personagens de grande importância na história ocorrem, por assim dizer, duas vezes. a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. [5]

    em acordo firmado com os controladores de vôo, para por fim ao movimento grevista [6], o governo Lula se comprometera a rever transferências e afastamentos e assegurava que não seriam praticadas punições em decorrência da greve. também abria um canal permanente de negociação com representantes da categoria, inclusive dos controladores militares, para o aprimoramento do tráfego aéreo brasileiro, tendo como referência a implantação gradual de uma solução civil.

    os grandes meios de comunicação se unem na exigência de punição aos grevistas, condenam a posição conciliatória do governo e incitam uma rebelião militar.

    um presidente incompetente e leniente [7] cedera à extorsão dos amotinados, desautorizando o comando da Aeronáutica, enquanto deveria ter erradicado a insubordinação e punido os infratores [8], que se valeram até da sublevação e da chantagem para emancipar-se das Forças Armadas. [9]

    após oficiais da Aeronáutica, encarregados da chefia do tráfego aéreo, abandonarem seu posto [10], falta tão grave quanto à dos controladores, e a coação sofrida em reunião convocada unilateralmente pelos comandantes militares [11], algo inadmissível numa democracia consolidada, na qual a sociedade civil tem controle sobre os militares, Lula volta atrás e rasga o acordo assinado com os controladores. [12]

    as raízes da atual crise aérea são contemporâneas ao início do sucateamento dos serviços públicos brasileiros, remontando aos governos Collor e FHC.

    matéria publicada no Jornal da Tarde, em 13/12/2000, com o título "Controle de vôo: profissão perigo", já relatava que o tráfego aéreo estava à beira de um colapso, com a tecnologia cheia de falhas, as normas internacionais de segurança desrespeitadas diariamente e as condições de trabalho prejudicando a saúde dos controladores de vôo, aumentando ainda mais os riscos de acidentes. [13]

    em 12/12/2006 relatório do TCU (Tribunal de Contas da União) apontou o contingenciamento de recursos como a principal causa para o "apagão" aéreo. desde 2004, foram cortados R$ 522 milhões do setor. [14]

    apesar de todas as suas postergações, hesitações, meias-medidas, apaziguamentos e conciliações, o governo Lula sempre sabe como atender com presteza imediata a voz do dono.

    o rendimento da poupança estava incomodando os banqueiros e foi alterado sem delongas. os resseguros privatizados precisavam de regulação para abrigar os interesses das grandes corporações e ela veio com a rapidez de um relâmpago. [15]

    decisão tomada no âmbito da CVM e BC, que são órgãos reguladores, sem poder decisório, permite a fundos multimercados investir no exterior, sancionando, num país que tanto necessita de capitais de investimento, a exportação de capitais. [16]

    ao fazerem sua própria história, os homens não a fazem como querem, sob circunstâncias de sua escolha, e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. a tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. [17]

    todo um povo que pensava ter comunicado a si próprio um forte impulso para diante, se encontra de repente trasladado a uma época morta, e para que não possa haver sombra de dúvida quanto ao retrocesso, surgem novamente as velhas datas, o velho calendário, os velhos nomes, os velhos éditos e os velhos esbirros da lei que há muito pareciam desfeitos na poeira dos tempos. [18]



    [1] Joaquim Edwards Bello, "Tres Meses en Rio de Janeiro"
    [2] Luiz Felipe de Alencastro, "II - O escravismo no Brasil, em Cuba e nos EUA"
    [3] Joaquim Edwards Bello, "Tres Meses en Rio de Janeiro"
    [4] Octávio Ianni, "A revolução brasileira"
    [5] Karl Marx, "O 18 Brumário"
    [6] 31/03/2007
    [7] Eliane Catanhêde, "Incompetência e leniência", 03/04/2007
    [8] Editorial da Folha de São Paulo, 01/04/2007
    [9] Editorial da Folha de São Paulo, 03/04/2007
    [10] 01/04/2007
    [11] 02/04/2007
    [12] arkx, "a lição da chibata", 04/04/2007
    [13] Fernando Silva, "A crise do tráfego aéreo e o movimento dos controladores"
    [14] Juliano Basile, Valor Econômico, 13/12/2006
    [15] Léo Lince, "Modo lulista de governar", 05/04/2007
    [16] Luis Nassif, "Exportando capitais", 02/04/2007
    [17] Karl Marx, "O 18 Brumário"
    [18] Karl Marx, "O 18 Brumário"

    04 Abril 2007


    a lição da chibata
    os indômitos comandantes militares brasileiros, tão corajosos no ressurgir da chibata nas costas dos controladores de vôo, têm em comum o fato de que nunca estiveram em missão de combate.

    é no calor da luta no campo de batalha que enfim se compreende a distinção entre hierarquia e liderança.
    em arriscadas operações de assalto ou na defesa encarniçada de posições nas trincheiras, são os líderes que conduzem a tropa à vitória.
    um bom líder não abre mão da disciplina e respeita a hierarquia, mas sabe que a força de sua liderança não advém nem da disciplina e muito menos da hierarquia.
    o bom líder conquista o respeito de seus comandados por nunca os abandonar a própria sorte. um bom líder está sempre à frente de seus homens. um bom líder não emite ordens irracionais e não submete seus soldados a baixas desnecessárias.
    um bom líder é reverenciado pelos subordinados. sua voz de comando eleva o moral da tropa, que se orgulha de morrer sob suas ordens.
    um bom líder se mantém na linha de frente, ombro a ombro com os soldados, e vê a cada um deles como um irmão, por quem se mata e se morre.
    um bom líder jamais é esquecido pela História, mesmo se a ele caiba por monumento apenas pedras pisadas no cais. [1]
    guerra e política se entrelaçam, sendo uma a continuação da outra, ainda que sob formas distintas.
    desde a queda do Boeing da Gol, em novembro de 2006, até a greve dos controladores em 30/03/2007, nenhum dos bravos brigadeiros, agora tão categóricos em restaurar a cadeia de comando, tomou qualquer iniciativa para resolver a degradação do sistema de controle aéreo.
    preserve-se a qualquer custo a hierarquia. não interessa se os Boeings continuem caindo...
    metam a chibata nos controladores. punam. retaliem. transfiram. expulsem. enterrem os mestres-salas dos ares nos subterrâneos das masmorras.
    mas o que os controladores querem? quais eram a reivindicações dos marujos na Revolta da Chibata? 

    como nos tempos do pelourinho, os marinheiros, em esmagadora maioria negros, eram açoitados, por determinação da oficialidade branca, ao som de tambores e diante dos companheiros perfilados.
    muito embora pela legislação da Marinha fossem 25 as chibatadas regulamentares, para a preservação da hierarquia militar ainda não eram em quantidade suficiente.
    em 22 de novembro de 1910, pela ponta da chibata, rubras cascatas jorraram das costas do marinheiro negro Marcelino Rodrigues Menezes. recebeu 250 chibatadas. desmaiou, mas os açoites continuaram.
    decididos a colocar um basta à chibata e não serem mais escravos dos oficiais, os marinheiros se rebelam e tomam os principais navios da frota. os sublevados hasteiam bandeiras vermelhas e um pavilhão: "Ordem e Liberdade".
    liderados por um filho de escravos, João Cândido Felisberto, os marinheiros emitem um ultimato:
    "O governo tem que acabar com os castigos corporais, melhorar nossa comida e dar anistia a todos os revoltosos. Senão, a gente bombardeia a cidade, dentro de 12 horas." [2]
    e o que os controladores querem?

    abrir um canal de negociação sobre remuneração [3] e uma permanente negociação com seus representantes, inclusive dos controladores militares, para o aprimoramento do tráfego aéreo brasileiro. [4]

    os controladores de vôo estão brigando para trabalhar. lutam por melhores condições de trabalho, cujo maior beneficiado será o usuário dos serviços.

    o caos nos aeroportos e a deterioração do controle aéreo são o resultado de mais um serviço público brasileiro sucateado, como a saúde, a educação, a infraestrutura terrestre, portuária, energética...

    a falta de investimentos é correspondente ao superávit primário e ao pagamento de juros da dívida interna destinados aos bancos e grandes investidores, na mais brutal concentração de renda e riqueza do planeta.

    Lula afirma ter sido "apunhalado pelas costas" e "traído" por um grupo de "irresponsáveis"[5] entretanto, ao assumir o cargo, Lula jogou no lixo tudo o que ele e seu partido haviam dito e escrito durante seus primeiros 23 anos de história. se isso não é traição, rasguem-se os dicionários. [6]

    Lula, de fato, parece ter uma definição muito particular do que seja traição.

    após oficialidade da Aeronáutica, encarregada da chefia do tráfego aéreo, abandonar seu posto, falta tão grave quanto a dos controladores, e a coação sofrida em reunião convocada unilateralmente pelos comandantes militares, algo inadmissível numa democracia consolidada, na qual a sociedade civil tem controle sobre os militares, Lula volta atrás e rasga o acordo assinado com os controladores.

    Lula, o senhor dos consensos, desde que erguidos sob o primado dos poderosos, ex-metalúrgico e líder grevista, prefere compor com quem manda. e a ordem do dia é inequívoca: são sempre os trabalhadores que estão errados.

    em sua ânsia de ser aceito pelas elites, Lula se recusa a aceitar a mais básica das lições, que a cada crise de seu governo lhe é cuspida na face.

    pouco importa seus ternos exclusivos, sua renovada arcada dental, seus charutos e seus vinhos, seu botox e seu aero-Lula, seus 53 milhões de votos e sua reeleição consagradora.

    para as elites, pouca importa Lula ser o Presidente da República, porque sempre será aquilo que nunca deixou de ser: um "baiano", um "paraíba". apedeuta. incompetente. analfabeto. leniente. inapetente. ignorante. vagabundo. um trabalhador brasileiro.

    décadas após a Revolta da Chibata, em plena ditadura militar, os compositores João Bosco e Aldir Blanc tiveram problemas com a censura, por causa de música em homenagem João Cândido, o "Almirante Negro", líder dos marinheiros amotinados. apesar das diversas mudanças feitas, o Departamento de Censura não liberava a letra. até que um censor lhes esclareceu melhor: "Vocês estão trocando as palavras como revolta, sangue... E não é aí que a coisa tá pegando... O problema é essa história de negro, negro, negro..."
    um bom líder jamais abandona seus homens, porque sabe que, acima de qualquer disciplina e hierarquia, é só por eles que vale a pena lutar e morrer.

    glória a todas as lutas inglórias, que através da nossa história não serão esquecidas jamais. 




    [1] João Bosco e Aldir Blanc, "O mestre sala dos mares"
    [2] João Cândido Felisberto
    [3] item 3 do acordo firmado por escrito entre governo e controladores de vôo, 31/03/2007
    [4] item 2 do acordo firmado por escrito entre governo e controladores de vôo, 31/03/2007
    [5] Lula, 03/04/2007
    [6] Clóvis Rossi, "Trair e coçar é só começar", 04/04/2007

    31 Março 2007


    a segunda descida aos infernos de Lula da Silva
    nunca um Presidente se elegeu com tanta autonomia para montar sua equipe de governo. [1]
    houve poucos momentos na história do Brasil em que isto ocorreu. sem pressa e sem cobranças, Lula teve toda a tranqüilidade para fazer a reforma ministerial. [2]
    e qual o resultado?
    a coalizão arquitetada para o segundo mandato leva o caciquismo ao centro do palco e consagra a fisiologia no exercício do poder. [3]
    no auge de seu capital político, Lula II abdicou de formar um ministério técnico, cedendo mais uma vez a uma composição voltada para garantir a governabilidade e aprovação de projetos do Executivo. [4]
    Lula afirma ser "preciso uma cirurgia para curar os males do País" [5], entretanto o BC continua intocável, mesmo após o Copom derrubar o PAC, apenas dois dias após seu lançamento, ao reduzir em somente 0,25% a taxa básica de juros, mantendo-a como a mais alta do mundo, em índice real. [6]

    no momento, Lula se empenha em viabilizar a parceria entre Brasil e EUA na produção de biocombustível. não mede esforços para retomar nossa primeira vocação de colônia e reinaugurar nas terras férteis brasileiras um novo ciclo da cana-de-açúcar.

    para não prejudicar a negociação em curso com o atual companheiro Bush, Lula fez questão de contestar, em artigo publicado no "Washington Post", a tese do ex-companheiro Fidel Castro que a produção de álcool combustível em larga escala aumentaria a fome no mundo: "A cana-de-açúcar não ameaça a produção de comida. " [7]
    contradizendo a declaração de Lula, o Brasil do agronegócio tem que importar arroz, feijão, milho, trigo e leite (alimentos básicos dos trabalhadores brasileiros). e também soja em grãos, farelo e óleo de soja, algodão em pluma, matérias-primas industriais de larga possibilidade de produção no próprio país. [8]
    a grande lavoura açucareira carrega uma tradição de escravismo, de trabalho compulsório, de exploração de assalariados e de ruína do meio ambiente. foi esta atividade que deu lugar às oligarquias mais atrasadas de nosso país. durante séculos, senhores de engenho e usineiros viveram pendurados em subvenções governamentais. [9]
    a expansão do capitalismo no Brasil se dá introduzindo relações modernas no arcaico e reproduzindo relações arcaicas no moderno. [10]
    o “moderno” agronegócio dos usineiros do álcool, os novos heróis de Lula [11], mantém os “trabalhadores em um regime de escravidão disfarçada” e realiza colheitas mediante queimadas. [12]
    eleito com o voto das massas trabalhadoras, Lula prefere governar com as elites. o próprio Lula já admitiu, envaidecido, que banqueiros e grandes empresários jamais ganharam tanto dinheiro quanto no governo do PT. [13] contudo, os investimentos e afagos de Lula não foram retribuídos com a rentabilidade eleitoral esperada. as elites se uniram solidamente em torno do candidato adversário. [14]
    a burguesia brasileira sempre preferiu se acomodar na condição de sócio-menor do capitalismo internacional, voltando as costas à aliança com as classes subordinadas e ao compromisso com o desenvolvimento nacional. [15]
    apesar da consagradora reeleição, Lula só completou seu primeiro mandato em virtude de um erro estratégico da oposição conservadora. no auge da crise do "Mensalão", Lula desceu aos infernos. em dezembro de 2005, teve a mais baixa taxa de aprovação a seu governo (28%), com a mais alta reprovação (29%). enquanto a cúpula do PT desmoronava, deputados do partido choravam no plenário e ministros sugeriam a Lula renunciar, PFL e PSDB optaram por fazer o Presidente sangrar até as eleições. [16]

    Lula continua piamente ouvindo as ladainhas dos que querem a estabilidade a qualquer preço e profetizam desastres se os mercados não forem saciados em sua voracidade ilimitada. o desastre já aconteceu. o país e a nação se atolam na barbárie. e Lula leva a sério a satisfação arrogante e autista dos que aconselham cautela. [17]
    no auge de seu poder, Lula se embriagou com a vã ilusão de ser possível perenizar um momento. desfrutou de chance inédita para sozinho montar seu governo. sem cobranças e sem pressa.
    e qual o resultado?
    Lula desperdiçou sua nova chance. [18] foi incapaz de um grande não, para poder dizer um grande sim. não tomou a trajetória que exige autotransformação, a via do engrandecimento, pavimentada com as dores da reconstrução de nós mesmos. [19] apenas preparou o caminho para iniciar sua segunda descida aos infernos. talvez lá enfim se reencontre com o trabalhador brasileiro...



    1 arkx, “Lula II: o Homem-Presidência”, 26/10/2006
    2 Lula, 13/03/2007
    3 Fernando de Barros e Silva, “Aquarela do Brasil”, 20/03/2007
    4 Lula, 20/03/2007
    5 Lula, 20/03/2007
    6 arkx, “0,25%”, 25/01/2007
    7 Lula, 30/03/2007
    8 Ariovaldo Umbelino de Oliveira, "Os mitos sobre o agronegócio no Brasil "
    9 Luiz Felipe de Alencastro, "Yes, we have sugarcane !!! "
    10 Francisco de Oliveira, “Crítica à razão dualista”
    11 Lula, 30/03/2007
    12 José Serra, "O etanol e o futuro"
    13 Lula, 28/07/2006
    14 arkx, “a era Palocci”, 30/10/2006
    15 FHC, "Empresariado industrial e desenvolvimento econômico"
    16 arkx, “por bem , ou por mal”, 05/11/2006
    17 Francisco de Oliveira, “Carta aberta ao Presidente da República”, 30/06/2004
    18 arkx, “uma nova chance”, 30/10/2006
    19 Roberto Mangabeira Unger, “Qual futuro?”, 27/03/2007

    26 Março 2007


    ciclos
    Lula está no auge do poder político, mas o que Lula faz do auge do seu poder? [1]

    é bem verdade que há um certo regozijo por parte da elite com a possibilidade de o Brasil inaugurar um novo ciclo da cana-de-açúcar. [2]

    proclamados como heróis por Lula, usineiros do álcool não se esquivam em reconhecer a especial atenção que lhes dedica o Presidente: “Ele é muito amigo nosso. Somos muito gratos a ele. Ele nos defende...” [3]

    até o mega-herói internacional George Soros não restringe os elogios: "Lula foi muito precavido ao tornar-se um fiador do mercado financeiro"[4]

    porém, mesmo com o Brasil se transformando num imenso canavial, nenhum país que concentrou na cana-de-açúcar sua fonte de riqueza foi capaz de prosperar. [5]

    Pedro Ramos, pesquisador da Unicamp, afirma que muitos dos cortadores de cana “são trabalhadores em um regime de escravidão disfarçada”. nos anos 80, um trabalhador cortava quatro toneladas e ganhava o equivalente a R$ 9,09 por dia. hoje, corta na média 15 toneladas e ganha cerca de R$ 6,88 por dia. [6]

    o esgotamento dos trabalhadores deve-se ao constante aumento das metas de produção, a novas técnicas de cultivo que buscam mais produtividade e a variedades de cana com mais sacarose, embora menos pesada. se antes 100 metros (quadrados) de cana somavam 10 toneladas, hoje são necessários 300 metros.

    nunca um Presidente se elegeu com tanta autonomia para ditar os rumos de seu governo. o quebra-cabeça político do segundo mandato foi montado por inteiro, e com exclusividade, na mente de Lula. [7]

    mas o que Lula fez no auge do seu poder?

    Lula formou uma ampla coalizão política "pensando nos próximos 20 anos” [8] e reunindo quem nas últimas décadas sempre esteve no poder. contundente exemplo, seu novo Ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, também serviu ao regime militar e aos governos Collor e FHC. [9]

    enquanto desfruta de seu poder para a instauração de um hipotético consenso abrangente e duradouro [10], Lula mantém blindada a política econômica, com juros e câmbio aprofundando o desemprego e a desindustrialização.

    de 2002 a 2006 a produção industrial ostentou índices de crescimento ínfimos , o crescimento do emprego patinou, oscilando pouco acima e pouco abaixo de zero e as importações aumentaram 27,4% em 2004, 17,6% em 2005 e 23.4% em 2006. [11]

    a exuberância dos sucessivos ciclos da história econômica do Brasil nunca foi suficiente para desenvolver o país, sempre caracterizado por desigualdades profundas, relacionadas com a superexploração da mão-de-obra e a transferência de riquezas para o exterior.

    nosso desenvolvimento truncado, além de desigual, é combinado. o “moderno” (a industrialização/urbanização) e o “atrasado” (a estrutura agrária/rural) na economia brasileira não somente se integram, como são condição necessária para o elevado elevado nível
    da taxa de acumulação e da exploração da força de trabalho. [12]

    as últimas eleições presidenciais também foram marcadas por ciclos. tudo indicava uma tranqüila e insossa reeleição de Lula ainda no primeiro turno. o tiro no pé do dossiegate provoca o adiamento de uma vitória anunciada. [13] quando parecia que a política se tornara definitivamente irrelevante e os Mercados já festejavam pacificados, pouco importando quem vencesse, o segundo turno politiza a campanha e a pauta das eleições se altera. [14]

    a própria personalidade do Presidente parece sujeita a ciclos, oscilando conforme a conjuntura política lhe favorece, ou não.

    no auge de seu poder, Lula se esforça na vã tentativa de perenizar um momento. não tem pressa. [15] está no auge de seu poder. porém, ciclos se esgotam e outros se aproximam. o prazo de validade da lua-de-mel de Lula com a opinião pública está perto de vencer...


    [1] Vinicius Torres Freire, "Lula na inércia da história do Brasil", 25/03/2007
    [2] Marcio Pochmann, "O silêncio dos cemitérios"
    [3] Rubens Ometto, dono do grupo Cosan e de uma fortuna de US$ 2 bilhões, oitavo brasileiro mais rico e 488º do mundo, "o primeiro bilionário mundial do álcool", segundo a "Forbes", 26/03/2007
    [4] George Soros (dono da Adeco e investidor de US$ 900 milhões na construção de usinas de cana-de-açúcar no Mato Grosso do Sul e Minas Gerais), em 23/03/2007
    [5] Geraldo Majella, presidente da CNBB, 22/03/2007
    [6] Luiz Felipe de Alencastro, sequenciasparisienses.blogspot.com
    [7] arkx, “Lula II: o Homem-Presidência”
    [8] Lula, 23/03/2007
    [9] Clóvis Rossi, “20 anos não é nada”, 24/03/2007
    [10] Roberto Mangabeira Unger, “Crescer sem dogma”, Folha de São Paulo, 13/03/2007
    [11] Luis Nassif, “A desindustrialização em marcha”, 23/03/2007, luisnassif.blig.ig.com.br
    [12] Francisco de Oliveira, “Crítica à razão dualista”
     

    [13] arkx, “o adiamento de um vitória anunciada”, 14/09/2006
    [14] arkx, “a terceira via”, 18/10/2006
    [15] Lula, 13/03/2007

    21 Março 2007


    heroísmos
    "Os usineiros, que até seis anos atrás eram tidos como se fossem os bandidos do agronegócio neste país, estão virando heróis nacionais e mundiais porque todo mundo está de olho no álcool."
    Lula

    20/03/2007

    durante inauguração de uma fábrica da Perdigão, indústria de criação e abate de aves, Lula não se conteve e explicou porque se ufana dos usineiros do álcool. os empresários do setor seriam verdadeiros heróis nacionais, e até mundiais. graças a eles o biocombustível, produzido da cana-de-açúcar, desponta como modelo de alternativa energética global. [1]
    naquele mesmo dia, fiscais do Ministério Público do Trabalho encontraram numa fazenda no interior de São Paulo ao menos 90 trabalhadores rurais atuando no plantio da cana em condições consideradas "degradantes". os trabalhadores não dispunham de equipamentos de proteção e primeiros socorros, banheiro ou mesmo água potável. além disto, eram obrigados a pagar R$ 38 pela botina e mais R$ 13 pelo facão, equipamento que deve ser fornecido pelo empregador, conforme a legislação. a diária na fazenda é de R$ 14 por dia de trabalho. segundo o Ministério Público do Trabalho, essa condição precária é comum no interior de São Paulo. [2]
    talvez Lula não tenha exagerado, já que o empresariado brasileiro demonstra um inesgotável heroísmo no que tange a erguer um patrimônio privado financiado por recursos públicos.


    no caso da Perdigão, de um total de R$ 510 milhões em investimentos, apenas R$ 70 milhões são de recursos próprios. a maior parte é dinheiro público, sendo R$ 170 milhões financiados pelo BNDES e R$ 270 milhões vindos do FCO (Fundo Constitucional do Centro-Oeste) e do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador. [3]

    ao longo de nossa história não faltam exemplos do heroísmo da elite brasileira:

    fez a independência, mas manteve a escravidão; depois aboliu a escravidão, mas sem reforma agrária, sem escola pública, sem direitos trabalhistas, sem que os ex-escravos sequer tivessem direito à propriedade da terra; proclamou uma República que manteve as oligarquias no comando e o povo sob controle, sujeitado ao clientelismo, transformando o que deveria ser direito em favor; sempre procurou eliminar qualquer contra-elite e, quando alguma teve sucesso, foi capaz de levar ao suicídio o presidente Getúlio Vargas; apoiou, entusiasticamente, o regime autoritário enquanto este lhe serviu, para então passar a ser democrática, por conveniência; sob o rótulo autoritário ou democrata, ou defendendo o slogan do Estado-mínimo, sempre se apropriou dos recursos públicos de forma desbragada e despudorada; aspira a desfrutar de padrão de vida internacional e ter mão-de-obra doméstica ultrabarata; tem como meta continuar a ganhar o máximo possível no Brasil, transferindo para o exterior uma boa parte da riqueza aqui auferida, para manter sempre aberta a possibilidade de se converter em seres internacionais, sem nenhuma responsabilidade pelo que acontece no Brasil. [4] 

    entre seus heroísmos recentes está a criação do mito da "âncora verde" do agronegócio, que seria responsável pela maior parte das divisas internacionais do Brasil, com uma participação significativa no PIB nacional. tal feito heróico é resultado da manipulação de se inserir no denominado PIB do agronegócio a parte correspondente à indústria e também os supermercados, inflando os dados. [5]

    o crescente direcionamento da produção para a exportação ou para a agricultura energética corresponde ao desinteresse na produção de alimentos para abastecer o mercado interno. o volume da produção de arroz, feijão e mandioca, os três principais alimentos da população pobre desse país, não teve nenhum crescimento desde 1992. 
    [6] 


    o tradicional atraso da elite brasileira em produzir sempre esteve acoplado com a sua modernidade no consumir[7] 

    São Paulo produz quase dois terços do álcool e do açúcar do país. a cana ocupa mais da metade das lavouras do Estado. além do risco da monocultura, em pelo menos 2,5 milhões de hectares (10% do território paulista) as colheitas são realizadas mediante queimadas. é uma aberração ecológica e um atentado à saúde das pessoas. [8] 

    enquanto Lula exalta seus novos heróis, verdadeiro heroísmo é conseguir sobreviver nas condições de trabalho dos canaviais. 
    transportado ao campo em ônibus sem freio, retrovisor e autorização para trafegar, o diarista Ezequiel Antônio de Araújo foi obrigado a prosseguir trabalhando sob o sol após ter cortado a mão com o facão. "Disseram que não iriam gastar combustível para me levar ao hospital", afirmou ele. desde 2004, 17 bóias-frias morreram no interior do estado de São Paulo. a suspeita é que as mortes ocorreram por excesso de esforço no corte da cana. [9]
    poderosos movimentos históricos podem forjar heróis. homens nascidos na pobreza são capazes de derrotar o risco crônico da morte prematura na infância; vencer a humilhação e a desesperança na idade adulta; cumprir a longa jornada de um retirante nordestino desde a imigração num pau-de-arara até subir a rampa do Planalto. homens comuns são levados a condição de heróis. ainda assim, entretanto, são apenas um humilde instrumento, expressão de um projeto coletivo. [10]

    entregar-se abertamente a este destino inexorável é o único heroísmo que importa. é o que converte governantes em estadistas. é o que permite um simples homem mover a história de um povo e de uma nação.


    [1] Rubens Valente, Folha de São Paulo, 21/03/2007
    [2] Maurício Simionato, Folha de São Paulo, 21/03/2007
    [3] Rubens Valente, Folha de São Paulo, 21/03/2007
    [4] Carlos Lessa, discurso após ser demitido do BNDES por Lula, 19/11/2004
    [5] Ariovaldo Umbelino, entrevista ao Correio da Cidadania
    [6] Ariovaldo Umbelino, entrevista ao Correio da Cidadania
    [7] Carlos Lessa, "A inferioridade brasileira, uma conveniente convicção da elite"
    [8] José Serra, "O etanol e o futuro"
    [9] Maurício Simionato, Folha de São Paulo, 21/03/2007
    [10] Lula, Discurso de posse na Câmara, 2007

    17 Março 2007


    velhos odres
    o indicado para assumir o Ministério da Agricultura no segundo governo de Lula, deputado Odílio Balbinotti (PMDB-PR), maior produtor de sementes de soja do Brasil, responde a inquérito sigiloso, no Supremo Tribunal Federal, por crime contra a fé pública e falsidade ideológica. além disto, a Procuradoria da Fazenda Nacional iniciou cobrança judicial contra ele e abriu processo para inscrevê-lo na Dívida Ativa da União. também foi multado pela Receita Federal por causa de impostos atrasados e o INSS move contra ele três ações de execução fiscal. [1]
    Balbinotti, que chegou à Câmara em 1995, emprega em seu gabinete um cunhado e uma cunhada. em 12 anos de legislatura, apresentou apenas dois projetos, nenhum deles aprovado. entre as eleições de 2002 e 2006, seu patrimônio registrou um salto de 2.151%. é dono da segunda maior fortuna declarada da Câmara – R$ 123,8 milhões. e tem um dos mais altos índices de faltas as sessões de votação. [2]
    quando Tomé de Sousa aportou no Brasil em 1549, para assumir o cargo de 
    governador-geral, trouxe um Código Regimental de Governo e vieram em sua comitiva o Ouvidor-Mor, o Provedor-Mor, membros do clero e tropas armadas. entretanto, não desembarcaram das caravelas os colonos para povoar nossas imensas terras férteis e verdejantes.

    das populações indígenas, tornadas estrangeiras em sua própria terra, não era possível pilhar riquezas acumuladas, tampouco extorquir tributos, nem com elas estabelecer um comércio desigual.

    o Brasil se formou pelo avesso. teve Coroa antes de ter Povo. teve Estado antes de ser Nação. fomos obra de inversão. 
    [3]


    não fomos constituídos como nação, nem mesmo como sociedade. surgimos como uma empresa territorial voltada para fora e controlada de fora.
     [4] a implantação portuguesa na América teve como base a empresa agrícola-comercial. o Brasil é o único país das Américas criado, desde o início, pelo capitalismo comercial sob a forma de empresa agrícola. [5]
    organizou-se uma holding multinacional, com administração portuguesa, capitais holandeses e venezianos, mão-de-obra indígena e africana, tecnologia desenvolvida em Chipre e matéria-prima dos Açores e da ilha da Madeira – a cana. em torno do excelente negócio do açúcar, a primeira mercadoria de consumo de massas em escala planetária, se formou o moderno mercado mundial. [6]
    a organização da empresa agrária voltada para exportação, buscando o lucro fácil e imediato, resultado do modelo de colonização implantado, fez com que a atividade agrícola se efetuasse de modo quase extrativo, com total desleixo pela terra, buscando exclusivamente a total exploração, sem qualquer planejamento de longo prazo. [7]

    em perspectiva histórica, a organização da agricultura brasileira é marcada por um elemento invariante, que se mantém até os dias de hoje: o sistema de privilégios concedidos à empresa agro-mercantil, instrumento de ocupação econômica da América Portuguesa. [8]

    constituiu-se no Brasil um Estado caracterizado pela apropriação do público para interesses privados, em que um grupo social impera, rege e governa, em nome próprio, num círculo impermeável de comando. [9]

    assim tem sido os nossos eldorados. a procissão dos milagres há de continuar assim através de todo o período colonial, e não a interromperá a Independência, sequer, ou a República. [10]


    nascida 
    no berço esplêndido das velhas classes dominantes, a burguesa brasileira surge das entranhas do complexo cafeeiro, sem nunca escapar da sina de ser caudatária e agregada ao latifúndio. essa origem servil marcará o desenvolvimento capitalista no Brasil. os respectivos interesses, da burguesia e do latifúndio, se entrelaçam e se completam no decorrer de nossa história. [11]
    com a modernização do latifúndio, sob a forma do agronegócio, os antigos latifundiários se transformam numa das frações da burguesia, enquanto os demais setores burgueses se tornam sócios do latifúndio, convertido em sesmarias capitalistas, através do uso de modernos meios de produção. a selvagem industrialização do campo expropria moradores, agregados, rendeiros, foreiros, parceiros, arrendantes e meeiros, criando-se um vasto exército industrial de reserva, miserável e favelado. [12]

    o modelo agrícola do agronegócio é orientado para gerar dólares através de produtos que atendem ao mercado externo, por isso não produz comida, empregos e justiça social. em virtude da concentração da propriedade da terra, apenas 14% da área cultivável brasileira é utilizada. o agronegócio ocupa 75% da área cultivada, as melhores terras, para produzir soja, algodão, cacau, laranja, café, cana-de-açúcar e eucalipto. [13]

    o Brasil do agronegócio tem que importar arroz, feijão, milho, trigo e leite (alimentos básicos dos trabalhadores brasileiros). e também soja em grãos, farelo e óleo de soja, algodão em pluma, matérias-primas industriais de larga possibilidade de produção no próprio país. [14]

    a civilização brasileira chama-se Veleidade, sombra coada entre sombras. é uma "monstruosidade social", engendrada por instituições anacrônicas as quais haurem sua longevidade do veneno, que as alimenta e corrompe o vinho novo, incapaz assim de fermentar. as velhas caldeiras, a fim de que se expanda a pressão, hão de romper-se e fragmentar-se em mil peças disformes. a explosão há de ser total e profunda e os velhos odres devem ser abandonados. [15]


    por causa das denúncias, Lula pediu 48 horas para decidir sobre a confirmação de Balbinotti como Ministro da Agricultura. Balbinotti, por sua vez, declarou estar"triste, chateado e magoado". as entidades, associações e demais empresários ligados ao agronegócio ainda não se manifestaram.
     




    [1] Leonardo Souza, Folha de São Paulo, 17/03/2007
    [2] Ranier Bragon e Fábio Zanini, Folha de São Paulo, 16/03/2007
    [3] Alceu Amoroso Lima, "À margem da História do Brasil – Inquérito por escritores da geração nascida com a República"
    [4] 
    Caio Prado Jr, "A formação do Brasil contemporâneo"
    [5] 
    Celso Furtado, "Análise do Modelo Brasileiro"
    [6] César Benjamin, "Uma certa idéia de Brasil"
    [7] Sérgio Buarque de Holanda, “Raízes do Brasil
    [8] Celso Furtado, "Análise do Modelo Brasileiro"
    [9] Raymundo Faoro, "Os donos do poder"
    [10] Sérgio Buarque de Holanda, "Visão do Paraíso"
    [11] Wladimir Pomar, "Um mundo a ganhar"
    [12] Wladimir Pomar, "A nova estirpe burguesa"
    [13] João Pedro Stedile, "Brasil: A quem interessa o modelo agrícola do agronegócio"
    [14] Ariovaldo Umbelino de Oliveira, "Os mitos sobre o agronegócio no Brasil "
    [15] Raymundo Faoro, "O estamento burocrático no Brasil: consequências e esperanças"

    14 Março 2007


    o que precisamos
    uma criança de apenas um ano e meio foi estuprada, estrangulada e abandonada dentro da pia batismal de uma igreja. na reconstituição do crime, uma agente de trânsito teve uma crise nervosa e, chorando desesperadamente, arrancou a arma de um policial e disparou contra o próprio peito.

    quatro homens desceram de um carro na frente de uma escola e atiraram em direção a um grupo de alunos, matando um deles e ferindo outros oito, sendo três em estado grave. nenhuma das vítimas tem registro de passagem pela polícia.

    após 25 anos de medíocre crescimento econômico, o tecido social do país se deteriora a ponto de se multiplicarem, de forma descontrolada, os casos de violência gratuita.

    os crimes bárbaros têm sua contraparte: o brutal desemprego. são irmãos siameses, nascidos de uma política econômica responsável por interromper a construção do desenvolvimento nacional.

    dos empregos criados a partir de 2000, 64% pagam até um salário mínimo; 85% até um salário mínimo e meio; e nenhum emprego foi gerado a partir de três salários mínimos. [1]

    somos hoje um país de faxineiras, motoboys, vigilantes, balconistas...

    se para classes dominantes brasileiras a explosão da miséria se resolve com a redução da taxa de natalidade dos miseráveis [2], nada mais natural que virar pelo avesso a questão social, tratando-a como caso de polícia, a ser combatida com suplícios e presídios, a fim de “restabelecer no país inteiro o império da lei”.[3]

    desvinculadas dos compromissos com o país e a sociedade [4] e dependentes da rentabilidade dos juros da dívida interna para manterem sua posição de classe[5], as elites só concebem como deboche ser “nos campos da pobreza que os canteiros da violência vicejam com especial intensidade, adubados pela falta de dinheiro, de comida, de trabalho regular, de estudos, de esperança”[6]

    nossos ricos desfrutam de um padrão de vida equivalente aos ricos dos países mais ricos, mesmo que para isto nossos pobres estejam relegados ao padrão dos pobres dos países mais pobres. [7]

    a cada vez que o processo histórico desemboca numa crise, impondo a necessidade de mudanças, se restabelece no Brasil um acordo de cúpula, pactuado pelas elites, e a mudança se reduz a um rearranjo que tudo muda para que nada fique diferente. [8]

    nossa história tem sido uma sucessão de modernizações conservadoras e transições tuteladas, sem jamais incluir no "pacto democrático" as classes trabalhadoras [9], o que nos mantém aprisionados entre dois mundos: um definitivamente morto e outro que luta por vir à luz. [10]

    então, qual a enorme vantagem em se postergar ajustes nos juros e no câmbio, paralisados pelo pânico de uma reação desestabilizadora por parte das forças e interesses dos mercados, e aguardar, em espera paciente, a instauração de um consenso abrangente e duradouro? [11]

    enganam-se os que julgaram ser a primeira eleição de Lula um parêntesis histórico. a população brasileira reafirmou modo inequívoco que não precisa nem admite tutela de nenhuma espécie para fazer a sua escolha. a vontade de mudança - que esteve reprimida por décadas, séculos - expressou-se mais uma vez pacificamente, democraticamente. [12]

    quanto mais se postergar o inevitável, quanto mais se adiar o já exasperante parto daquilo que luta por nascer, então o verbo mudar será conjugado em toda sua ênfase [13] e desencadeará consequências imprevisíveis.
    talvez Deus seja mesmo brasileiro. por isto tem sido tão generoso conosco. mais do que merecemos. mesmo se Dele não recebemos nada do que pedimos, ainda assim nos enviou tudo que precisamos. [14]
    e o que precisamos é reabrir as portas do futuro que merecemos. [15]



    [1] Sonia Rocha
    [2] Olavo Setúbal, 13/08/2006
    [3] Augusto Nunes, “O avesso do avesso”, Jornal do Brasil, 13/03/2007
    [4] Marcio Pochmann, “A secessão dos ricos”.
    [5] Marcelo O. Dantas, “O projeto da recessão perpétua”, Folha de São Paulo, 14/03/2007
    [6] Augusto Nunes, “O avesso do avesso”, Jornal do Brasil, 13/03/2007
    [7] Sérgio Buarque de Holanda
    [8] Raymundo Faoro, “Existe um pensamento político brasileiro?”
    [9] Maria da Conceição Tavares, “Política e economia na formação do Brasil contemporâneo”
    [10] Sérgio Buarque de Holanda, “Raízes do Brasil”
    [11] Roberto Mangabeira Unger, “Crescer sem dogma”, Folha de São Paulo, 13/03/2007
    [12] Lula, Discurso de posse na Câmara, 2007
    [13] Lula, Discurso de posse na Câmara, 2007
    [14] Lula, Discurso de posse na Câmara, 2007
    [15] arkx, o que merecemos

    05 Março 2007


    o que merecemos

    (a partir de entrevista com
     Fabio Giambiagi, publicada em 03/03/2007, na Folha de São Paulo)


    talvez o Brasil não cresça porque não mereça.
    talvez sejamos mesmo um povo de índole corrompida, sem caráter, padecendo no calor dos trópicos de triste sina, irremediavelmente inscrita pela mestiçagem em nossos genes, sem que jamais sejamos capazes de superar nossa preguiça e atraso ancestrais.
    talvez as correntes aprisionando nossa economia sejam mesmo as despesas com a previdência e os gastos sociais, e por causa da Constituição de 1988 nos tornamos cidadãos de mentalidade indolente, espírito acomodado e satisfeitos em depender do Estado.
    talvez... talvez...

    se assim for, como então conseguimos ser, até 1980, a economia mais dinâmica do mundo, dobrando o PIB cinco vezes seguidas em cinqüenta anos ?
    o descontrole do endividamento do Estado veio após o Plano Real (1994), com a dívida interna disparando de 7% do PIB em 1993, para 13% em 1994, até chegar aos 50% em 2006. apesar de sucessivos superávits primários, desde 1994, a taxa de juros reais se manteve a mais alta do mundo.
    somos mesmo merecedores de rastejar pela terceira década perdida ? será que não passamos de mero acidente geográfico e nunca seremos uma nação ?
    nosso maior problema é aceitar os chavões feitos para nos apequenar, nos induzindo a crer que somos inferiores, para que aceitemos docilmente a subordinação, fazendo com que nunca tenha sido tão grande a distância entre o que nos tornamos e o que deveríamos ser.
    já houve época, no inicio do século XX, em que não podíamos crescer por causa do determinismo geográfico e racial. diziam que o desenvolvimento só era possível nos climas frios e por obra de grupos étnicos superiores.
    então, ousamos inaugurar, de forma inédita, o que nunca se fizera nessas latitudes. antecipando-nos a uma teoria econômica que naquele tempo ainda não se formulara, aplicamos inovadoras políticas anticíclicas para superar a crise de 1929. a fortuna acumulada com a monocultura cafeeira é reciclada, redirecionando a poupança para financiar o desenvolvimento industrial. deixamos de ser uma colônia agrária para chegarmos a condição de oitava economia do mundo.
    foi quando descobrimos o vigor de nossa cultura sincrética, que mulatos, cafuzos e mamelucos geraram nas fissuras entre a casa grande e a senzala; foi quando as massas urbanas entraram em cena para fazer com que o homem cordial começasse a se transformar em cidadão; foi quando já não bastava a parceria coadjuvante na empresa colonial e aspiramos a desenvolver um projeto de nação.
    foi quando o país abriu as portas do futuro que merecemos.
    durante o período agrário-exportador (até 1930) e a industrialização (1930/80), as classes dominantes mantinham alguma forma de interação local com os trabalhadores, mesmo se na condição de escravos. após 1980, com a hegemonia do capital financeiro globalizado, nossas elites se desvincularam por completo dos compromissos com o país e a população.
    no circuito integrado e volátil das operações instantâneas em mercados apátridas, nação, trabalho e trabalhador estão obsoletos. o lucro prescinde da produção e do consumo, graças à rentabilidade diária e sem risco de investimentos garantidos pelo Estado. a sociedade inteira foi aprisionada num processo autofágico, uma espécie de buraco negro, em que tudo e todos estão submetidos à voracidade ilimitada do capital financeiro.
    foi quando deixamos de ser um país para nos reduzirmos a mercado emergente... foi quando voltou a ser motivo de orgulho nos envergonharmos de nós mesmos... foi quanto uma cultura ornamental, estéril, vulgar e plagiaria em todos os sentidos passou a nos impor a idéia de que merecemos a humilhação e a miséria...
    foi quando abdicamos de nossa grandeza...
    nós não merecemos isto...

    02 Março 2007


    honra ao mérito

    apesar da projeção do BC ter sido 4%, a economia brasileira cresceu apenas 2,9% em 2006.

    mesmo com a inflação (3,14%) muito abaixo meta (4,5%), o Copom vem mantendo os juros (13%) na maior taxa real do mundo.

    no primeiro mandato de Lula, a expansão média do PIB foi de 2,6% ao ano, se igualando a mediocridade dos quatro primeiros anos de FHC.

    cerca de 40% dos trabalhadores Brasileiros estão sem emprego ou subempregados. 27% da população entre os 15 e 25 anos não trabalha nem estuda.

    poderia haver crime mais hediondo ?

    enquanto Henrique Meirelles prossegue defendendo "parcimônia" na queda dos juros, Lula não se furta a declarar: "a área econômica está blindada pelo sucesso".

    o que eles merecem ?

    dias antes da divulgação do PIB de 2006, um assassinato brutal provoca comoção e deixa o país revoltado.

    João Hélio Fernandes, 6 anos, foi morto após ser arrastado por 7 quilômetros, preso ao cinto de segurança, do lado de fora do carro que os criminosos roubaram de sua mãe. mesmo sendo avisados por motociclistas, os assaltantes prosseguiram dirigindo em ziguezague, tentando se livrar do garoto. a criança quicava no asfalto e teve sua cabeça arrancada.

    a grande mídia dedicou total cobertura ao caso, chegando a ponto de literalmente incitar a vingança, na primeira página e em horário nobre. jamais houve tamanho fervor e determinação nos meios de comunicação para se combater a política econômica.

    os grandes empresários deveriam ser os primeiros a se opor, de forma enérgica e constante, a cada dia, numa luta incessante contra as atuais taxas de juros e de câmbio, que asfixiam a produção, derrubam o faturamento e acabam com a competitividade externa. entretanto, se escondem num silêncio servil de cínica cumplicidade.

    o que eles merecem ?

    01 Março 2007


    pela paz
    as grandes cidades Brasileiras não estão só dominadas pela violência, o subjacente é o tráfico: a droga.

    seja em qual de suas formas, a droga já penetrou em todos os poros e camadas do tecido social, invadiu todos os lares, desestabilizou todos os relacionamentos, violou todos os corpos. contaminou a tudo. e ninguém está imune.

    somos uma população drogada, refém do vício. em cada esquina, um grupo se reúne em torno de algumas garrafas de cerveja. um gole. uma dose. um tapa. um teco. just in time.

    prozac, viagra, calmantes, remédios prá dormir, emagrecer...

    narcóticos. narcotráfico. drogas legais. farmácias. muitas farmácias...

    assim como todos são contra a criminalidade e pela paz, é também incessante o movimento nas bocas-de-fumo.

    dependentes químicos anseiam por comprar saúde, enquanto apenas financiam morbidamente a indústria farmacêutica transnacional.

    o desejo, tal como deseja a vida, também deseja a morte.

    os homens se rendem tão intensa e voluntariamente à servidão, que não lhes basta a querer apenas para si, precisam também a impor para os outros.

    como fazer para se ter paz ?

    quantas vinganças implacáveis ? quantos olhos e quantos dentes arrancados com as próprias mãos ? quantas punições exemplares ? as mais demoradas, as mais sofridas. quantos linchamentos ? quantas execuções ? quantos cadáveres ?

    o que é preciso para se ter paz ?

    quantos policiais ? quantos presídios de segurança máxima ? quantas câmeras de vigilância ? quanta escuta telefônica ? quanta perda de privacidade ?

    como se reencontrar com a paz ? em qual refúgio ? atrás de que grades ? de qual muro ? com que blindagem se protegeu a paz ? quais códigos e leis a regulamentam ? quanto custa a paz ? onde se vende ? como se compra ?

    e já tivemos, por acaso, algum dia a paz ?

    e haverá paz algum dia nesta terra de tanta injustiça ?

    há paz sem justiça ?

    25 Fevereiro 2007


    demasiado humano
    (sobre “Razão e Sensibilidade”, de Roberto Janine Ribeiro, publicado na Folha de São Paulo, em 18/02/2007)
    por vezes, o puro horror cotidiano dos que vivem nas periferias e nas favelas conflagradas atinge o circo da mídia e alimenta a sede de sangue do público.

    casos emblemáticos levam os bem pensantes a questionarem duas ou três coisas em suas más consciências.

    é o momento em que a hipócrita pretensão de virtude se dissolve em rancor e vingança. paladinos da justiça resgatam os mais infames suplícios medievais, a fim de que a morte seja pouco e a paga demorada e sofrida.

    a barbaridade merecedora de incontida indignação e revolta deveria ser o dia a dia do Brasileiro pobre e humilde, entregue a si próprio.


    certos economistas e filósofos precisam conversar com as balconistas, os trabalhadores rurais, as faxineiras, os vendedores ambulantes, a multidão que vaga pelas ruas em busca de trabalho, nem mais de emprego. aqueles que padecem a vida como se fosse uma pena, “uma paga de modo demorado e sofrido”.

    o que nos falta é colocar os pés no solo de nossa pátria. abandonar os gabinetes. ficar ombro a ombro com nossa gente. sair para as ruas. mas esse pessoal tem asco do cheiro do povo...

    não que o “cheiro do povo” seja agradável. nem um pouco... como não é também nada agradável a vida além dos corredores palacianos.

    talvez nosso maior problema esteja, enquanto país e população, em não sabermos o que é de fato “violência”. alguns tiros nas ruas, criminalidade descontrolada e insegurança pública viram “guerra”.

    somos um povo que não teve sua têmpera forjada pela bestialidade sem propósito da guerra.

    não temos, tampouco nossos pais, ou avós, assim como bisavós, qualquer convivência com o fedor nauseante de carne queimada e das poças de sangue. nunca tivemos que empilhar centenas, e milhares, de corpos nas ruas. atear fogo nos cadáveres de nossas mães, de nossos filhos, da mulher que amamos.

    apesar de nosso sofrimento na humilhação do cotidiano, da brutal criminalidade, não passamos ainda, enquanto nação, por uma experiência coletiva de violência real. sofremos sozinhos, cada qual em seu canto com sua dor, mas não em conjunto.

    não tivemos guerras, tampouco catástrofes naturais, para conferir a real dimensão do que é ser “vítima” de violência. por isto somos tão imaturos e levianos e desconhecemos também o sentido pleno do que seja “solidariedade”.

    a imensa parte dos defensores da tortura, da pena de morte e de uma "paga sofrida e demorada" seria capaz de, com as próprias mãos, executar o que propõe ?

    costumam ser daqueles que tem nojo de trocar as fraldas dos filhos; não pisam no barro do chão para não “sujarem” os pés; passam mal ao doar sangue; no parto das crianças; sequer imaginar limpar uma latrina provoca ânsias de vômito; jamais mataram uma galinha, um coelho...

    como reagiriam ao encarar a vítima nos olhos e, sem misericórdia, desfechar o golpe fatal ? ou lentamente arrancarem unhas, esmagarem testículos, vazarem olhos ?

    bem verdade que da primeira vez é tudo muito mais difícil. depois se pega o jeito. e os monstros que habitam nos subterrâneos da alma de cada um de nós estão livres para saciarem sua fúria.

    muito conveniente é concluir que “os nazistas foram culpados do que fizeram” e que “optaram pelo mal”. incomoda, porém, admitir que as massas não foram enganadas. as massas desejaram o fascismo.

    afinal, o que poderia ser mais humano, demasiadamente humano, do que nossa longa história de bípedes implumes, predadores compulsivos, espalhando gratuitamente o terror pela face da Terra, destruindo a natureza, escravizando os animais e nos dilacerando uns aos outros...

    25 Janeiro 2007


    0,25%
    o modo como a mídia em geral se refere ao assim chamado "mercado" dá a entender tratar-se de uma entidade abstrata.

    "mercado" em termos de Brasil tem nome e CNPJ: são os bancos e alguns grandes investidores. cerca de 1/3 dos ativos dos bancos estão aplicados em títulos públicos federais. as grandes assets (fundos de investimentos) são ligadas aos bancos. a maior parte dos recursos administrados são de fundos exclusivos.

    o mercado de capitais brasileiro, como todo o resto de nossa economia, é altamente concentrado. o volume de negócios operado na Bolsa é pouco relevante frente às aplicações em renda fixa.

    as afirmações que todo o "mercado" já esperava um corte de 0,25% na taxa básica dos juros, em nada mais implica do que os negócios efetuados no mercado futuro de contratos de DI trabalharem com esta expectativa. o Copom tem se limitado a atender a preferência dos investidores.

    o tão reverenciado "mercado" é o sistema financeiro vivendo de subsídio governamental - a Selic - enquanto seus porta-vozes defendem corte de gastos com previdência, educação, saúde, infraestrutura.

    não se trata de teoria, ortodoxia, econometrias, monetarismo, Smith ou Friedman. são apenas interesses econômicos. manter girando a máquina da arbitragem de juros às custas da estagnação e do desemprego.

    existe sim uma grande reforma a ser feita: a do sistema financeiro. para que os bancos voltem a sua atividade fim: financiar a produção e o consumo, fomentando o crescimento econômico.

    o Brasil ainda tem a possibilidade de reencontrar seu caminho de forma não traumática. o próprio PAC é um bom exemplo disto.

    acabou-se o tempo de tão somente paciência e persistência. sem renegá-las, chegou o momento de ousadia, coragem e criatividade para abrir novos caminhos. chegou a hora de conjugar, em sua forma mais afirmativa, o verbo mudar.