22 maio 2007

horizonte dos eventos

sem que tenha havido um conhecimento prévio ou nenhuma visão estratégica por parte do governo, uma nova situação altera a dinâmica da economia brasileira. o acúmulo de dólares em nossa balança de pagamentos, criada pela colossal demanda chinesa por matérias-primas, provoca a mudança de sinal em nossas contas externas. [1]

analistas com fortes conexões com o mercado financeiro, muito embora acertem no diagnóstico, falham na conclusão sobre os motivos da apreciação da moeda brasileira, colocando-a como reflexo natural da mudança estrutural da balança de pagamentos e da desvalorização mundial do dólar.

os dados entre 2003 e 2006 indicam que a valorização cambial não pode ser exclusivamente creditada às contas externas. a grande maioria das principais economias emergentes teve um saldo em conta corrente como porcentagem do PIB mais elevado que o Brasil, apresentando uma valorização cambial menor. [2]



ao se relacionar saldo em conta corrente e os juros reais em várias economias, a curva resultante indica que quanto melhor o resultado nas contas externas do país, menores os juros reais verificados. no gráfico se destaca apenas um ponto muito fora da curva: o Brasil. esta distorção abre excelente oportunidade para o mundo financeiro ganhar dinheiro em cima do contribuinte brasileiro. não é por outra razão que o real não pára de se valorizar, apesar da intervenção febril do BC. [3]

para conter a tendência de sobrevalorização da taxa de câmbio, além de baixar os juros e controlar fluxo de capitais especulativos de curto prazo, é necessário estabelecer um imposto sobre a exportação de commodities, criando um fundo internacional. apesar da tributação, os setores exportadores não têm perda de receita. o ganho com a estabilidade cambial repõe a despesa do imposto. [4]

para superar a rendição incondicional ao mercado a que o governo voluntariamente se entregou, há uma infinidade de opções.

no exemplo, um imposto – o que numa abordagem esquemática é prejudicial ao setor exportador – acaba trazendo vantagens. não apenas para os próprios exportadores, como para toda a economia.

as forças políticas e econômicas pensam e atuam com foco obtuso, movidas por interesses corporativos e sem abrir horizonte estratégico global.

o que os exportadores querem? exportar mais e melhor. precisam de uma taxa de câmbio competitiva e com retorno atraente em reais. isto é possível através de um instrumento aparentemente contraditório com seus interesses: uma tributação, que provoca efeito inverso de uma primeira análise apressada e obtusa.

o que os investidores querem? rentabilidade. podem conseguí-la aplicando em títulos públicos, asfixiando a economia com uma dívida interna crescente que suga recursos da produção através da gigantesca carga tributária necessária para arcar com os juros pagos pelo governo. ou podem financiar produção e consumo, via ativos modelados neste sentido.

basta uma redução na oferta dos títulos - por conta da queda dos juros e da conseqüente diminuição da dívida pública - para disponibilizar uma dinheirama no mercado, que financiará o desenvolvimento. os gestores terão que buscar ativos com rentabilidade para substituir títulos públicos. é erro pensar que o sistema bancário é quem irá prover recursos para financiar empresas e consumo. o funding será dado pelos fundos de investimento, financiando a produção por meio de debêntures e o consumo por meio de instrumentos como os Fundos de Direitos Creditórios (recebíveis, já regulamentados no Brasil). [5]

não existe antagonismo excludente entre exportações e mercado interno. assim como também entre mercado de capitais e desenvolvimento. o mesmo vale para pequenas empresas e transnacionais.

o nó que trava o desenvolvimento e mantém a extrema desigualdade social do país não está nessas oposições simplistas.

óbvio que o grande empresariado, o agronegócio exportador e o capital financeiro historicamente não construíram uma nação desenvolvida, com um forte mercado interno, socialmente justa e relevante na política internacional. inegável este fato. entretanto, a estratégia desses setores sempre foi dependente e associada – com o ápice de sua glória (e ocaso da nação) com os dois mandatos de FHC – que desde os anos 60 teorizou sobre a impossibilidade de um desenvolvimento autônomo, apresentando como única possibilidade a subordinação internacional e o crescimento com investimentos externos.

o que nos falta é tanto um governo quanto setores da sociedade civil (desde organizações de classe empresarial quanto sindicatos de trabalhadores - sem falar nos partidos políticos) com um claro e coerente projeto de articulação das forças produtivas brasileiras em torno de uma estratégia de desenvolvimento sustentado e includente.



[1] Luiz Carlos Mendonça de Barros, “Lula e seu keynesianismo”, 06/04/2007
[2] Bruno Galvão Santos, “A criminosa política monetária-cambial do Brasil”
[3] Luiz Carlos Mendonça de Barros, “Por que reduzir os juros”, 10/02/2006
[4] Luiz Carlos Bresser-Pereira, 16/05/2006
[5] Luís Nassif, “Fundos e investimento”, 14/08/2003

20 maio 2007

tudo a R$ 1,99

o Brasil vive o melhor momento de sua história. ainda melhor do que os anos dourados de JK e superior ao “milagre” econômico da década de 70. [1]

mesmo que estejamos “fracassando miseravelmente há 27 anos e ficando para trás, para trás e para trás” [2], os indicadores macroeconômicos vistos pela ótica do mercado financeiro não mentem: "o Brasil vive hoje um círculo virtuoso de crescimento" [3]

convidados de honra ao banquete especulativo [4], banqueiros, grandes investidores e empresários festejam o negócio da China: dólar a R$ 1,99. e descendo a ladeira...

deslizando na onda de euforia provocada pelo colossal apetite chinês por commodities, os mega exportadores brasileiros fazem rugir seu espírito animal. não se acanham em declarar que suportam um dólar bem mais barato. [5]

os maiores empresários que o Brasil já teve, por maiores que sejam, como empresários eles têm apenas um projeto de empresa - mesmo que seja um enorme conglomerado - e não um projeto de pais. para eles, projeto de pais é coisa de estadista. [6]

historicamente resignados a um medíocre, porém rentável, modelo de desenvolvimento dependente e associado, o grande empresariado brasileiro sempre privilegiou o comércio exterior. são voltados para as exportações. não necessitam desenvolver um mercado interno forte. por isto não se preocupam com um projeto de país. o país é mera plataforma de seus negócios. um acidente geográfico.

um projeto de país é para todo e qualquer cidadão do país. e deveria constar dos interesses prioritários dos grandes empresários e do planejamento estratégico de suas empresas. sem projeto de país, toda grande empresa, por maior que seja, sempre será pequena no âmbito internacional. relações comerciais internacionais exigem muito mais do que contratos de compra e venda, são assunto de segurança nacional, envolvendo política de governo e esforço integrado da máquina estatal.

o câmbio está bom para as commodities. é isto. não se poderia resumir e ilustrar melhor. bom para os negócios particulares. pouco importa se está péssimo para o Brasil.

o crescimento sustentado só será alcançado com competitividade sistêmica, com inclusão social e industrial e trabalho colaborativo [7], com as grandes empresas entendendo que sua competitividade depende do grau de competitividade sistêmica da economia, substituindo a relação de subordinação entre a grande empresa e seus fornecedores pelo conceito de cadeia produtiva. [8]





[1] Consultoria Tendências, Folha de São Paulo, 20/05/2007
[2] Luiz Carlos Bresser-Pereira, Folha de São Paulo, 20/05/2007
[3] Guido Mantega, Ministro da Fazenda, Folha de São Paulo, 20/05/2007
[4] Marco Antonio Cintra, “Banquete especulativo”, 20/05/2007
[5] Antonio Ermírio de Moraes, 19/05/2007
[6] Blog do Nassif, comentários dos leitores, 19/05/2007
[7] Luís Nassif, “Cooperação e inovação”, 14/07/2004
[8] Luís Nassif, “O papel da grande empresa”, 15/07/2004

15 maio 2007

“made in Brazil”

muito embora tenha sido notável o crescimento da economia brasileira entre 1930 e 1980, nosso modelo de desenvolvimento nunca foi autônomo. desigual e combinado, associado e dependente, o desenvolvimento brasileiro foi “consentido”.

o avanço histórico no Brasil se processa por um crescimento desigual - mais rápido ou mais lento - das forças produtivas, fazendo com que características de etapas inferiores e superiores de desenvolvimento se combinem em nossa sociedade. [1]

não fomos constituídos como nação, nem mesmo como sociedade. surgimos como uma empresa territorial voltada para fora e controlada de fora. [2] a implantação portuguesa na América teve como base a empresa agrícola-comercial. o Brasil é o único país das Américas criado, desde o início, pelo capitalismo comercial sob a forma de empresa agrícola. [3]

organizou-se uma holding multinacional, com administração portuguesa, capitais holandeses e venezianos, mão-de-obra indígena e africana, tecnologia desenvolvida em Chipre e matéria-prima dos Açores e da ilha da Madeira – a cana. em torno do excelente negócio do açúcar, a primeira mercadoria de consumo de massas em escala planetária, se formou o moderno mercado mundial. [4]

do ponto de vista da história mundial, a escravidão foi um anacronismo, pois já havia desaparecido da Europa Ocidental. entretanto, como solução para superar a carência de mão-de-obra demandada pela empresa agrícola-exportadora, a escravidão colonial cresce como um braço do capitalismo comercial. assim, um modo de produção historicamente já superado, novamente ressurge, em conseqüência das exigências de um sistema mais moderno, e com ele se combina e dele faz parte.

a expansão do capitalismo no Brasil se dá introduzindo relações modernas no arcaico e reproduzindo relações arcaicas no moderno. [5] o “moderno” agronegócio dos usineiros do álcool não produz comida [6] e submete os “trabalhadores em um regime de escravidão disfarçada” [7], impondo uma rotina aos cortadores de cana que lhes reduz a vida útil de trabalho à cerca de 12 anos, comparável a dos escravos em 1850, antes da proibição do tráfico negreiro. [8]

o “arcaico” e o “moderno” se entrelaçam e formam o nó que interdita o avanço do país para um desenvolvimento com inclusão social.

surgida nas entranhas do complexo cafeeiro, a burguesia industrial jamais teve a mais longínqua pretensão de liderar um projeto de soberania nacional.

associada ao latifúndio, em cujo berço esplêndido foi nascida [9], e dependente dos compromissos externos, para manter sua sustentação interna, a burguesia brasileira sempre preferiu se acomodar na condição de sócio-menor do capitalismo internacional, voltando as costas à aliança com as classes subordinadas e ao compromisso com o desenvolvimento nacional. [10]

o capital industrial brasileiro não surge num momento de crise do complexo cafeeiro exportador. ao contrário, desponta num instante de auge, em que a taxa de rentabilidade alcançava níveis elevadíssimos. os lucros gerados entre 1889 e 1894 não encontravam plena aplicação na economia cafeeira. a acumulação financeira excedia as possibilidades de acumulação produtiva. bastava, portanto, que os projetos industriais assegurassem uma rentabilidade positiva, garantindo a reprodução global dos lucros, para que se transformassem em decisões de investir. [11]

o núcleo da nascente burguesia industrial brasileira encontra suas origens na emigração européia. entretanto, ao contrário do mito do self-made man, de origem modesta e que constitui fortuna graças ao trabalho árduo e persistente, o imigrante que vem a se tornar proprietário de empresas no Brasil aqui já chega com alguma forma de capital, pertencia a famílias de classe média, possuía também instrução técnica, e, muitas vezes, havia sido contratado como administrador. [12]

para a burguesia industrial nascente, a base de apoio para o início da acumulação não é a pequena empresa industrial, mas o grande comércio ligado às atividades de importação e exportação. do mesmo modo que a exportação, a importação é dominada em grande parte por empresas estrangeiras. por sua vez, o comércio interno é controlado pelos importadores. graças a sua origem social, o burguês imigrante encontra facilmente um lugar no grande comércio. [13]

desse modo, o latifúndio exportador, a importação, o grande comércio e a burguesia imigrante, que vem a ser o núcleo da burguesia industrial nascente, estão todos intimamente conectados.

dependente de capital externo e associado aos países centrais, o desenvolvimento brasileiro é caracterizado por desigualdades profundas, relacionadas com a superexploração da mão-de-obra, o que possibilita a transferência de lucros para o exterior. a desigualdade interna se torna, desse modo, um elemento estrutural da economia mundial. [14]

o subdesenvolvimento não se constitui em de etapa obrigatória dentro de uma perspectiva evolucionista em direção ao desenvolvimento. o subdesenvolvimento é a forma pela qual o desenvolvimento capitalista se efetuou nas ex-colônias - as quais tinham a função histórica de serem elementos subordinados na cadeia de acumulação de capital. o subdesenvolvimento é o lugar próprio da periferia na divisão internacional do capitalismo, exprime uma relação de dependência e subordinação em relação aos países centrais do sistema. como resultante se tem a criação de estruturas híbridas, uma parte das quais tende a se comportar como um sistema capitalista, a outra, a manter-se dentro da estrutura preexistente. [15]

apesar da aparente oposição formal, o “moderno” e o “atrasado” se integram. a combinação de um intenso processo de industrialização com uma estrutura agrária basicamente atrasada produz taxas extraordinárias de acumulação por um lado, e por outro, níveis absurdos de exploração da força de trabalho. [16]

a partir de 1930, com a mudança da potência hegemônica no plano internacional, as condições para a industrialização do Brasil se ampliam. o capitalismo financeiro europeu mantinha a política de organizar o suprimento de matérias-primas e produtos agro-primários para a metrópole, preservando o mercado periférico para os produtos industriais metropolitanos. outra, porém, seria a atitude do capital financeiro norte-americano, que não era supridor tradicional de produtos industriais no Brasil e contava com uma vasta e diversificada produção metropolitana, condição que o desenvolvimento da técnica só tendia a consolidar, industrializando a agricultura e a produção de matérias-primas. conseqüentemente, esse novo capital financeiro pouco tinha a perder com o desenvolvimento de alguma indústria no Brasil e, ao contrário, muito tinha a ganhar. [17]

em 1950, Getúlio Vargas contava com uma versão do Plano Marshall para a América Latina. entretanto, a estratégia dos EUA previa o investimento privado das grandes corporações, e não a ajuda oficial. foi Juscelino quem compreendeu o espírito da época. sem Plano Marshall, tivemos a Volkswagen e a Ford... [18]

as empresas multinacionais e o capital financeiro internacional não impedem, mas condicionam perversamente o desenvolvimento econômico, promovendo a concentração de renda da classe média para cima e estimulando o autoritarismo. a causa do atraso dos países subdesenvolvidos não está apenas na exploração do centro imperial, mas também, senão principalmente, na incapacidade das elites locais, especificamente da burguesia, de serem nacionais, ou seja, de pensarem e agirem em termos dos interesses nacionais. [19]

os países periféricos passam a produzir certos artigos industriais, primeiro para o mercado interno, depois para exportação, inclusive para os próprios países centrais, quando por eles não podem mais ser produzidos tão lucrativamente. longe de diminuir a dependência, este processo apenas a intensifica e fracassa na resolução do problema central do desenvolvimento do mercado interno. [20]


[1] Trotsky, "A história da revolução russa"
[2] Caio Prado Jr, "A formação do Brasil contemporâneo"
[3] Celso Furtado, "Análise do Modelo Brasileiro"
[4] César Benjamin, "Uma certa idéia de Brasil"
[5] Francisco de Oliveira, “Crítica à razão dualista”
[6] Ariovaldo Umbelino de Oliveira, Correio da Cidadania, 02/05/2007
[7] Luiz Felipe de Alencastro, sequenciasparisienses.blogspot.com
[8] Maria Aparecida de Moraes Silva, citada por Mauro Zafalon, Folha de São Paulo, 29/04/2007
[9] Wladimir Pomar, "Um mundo a ganhar"
[10] FHC, "Empresariado industrial e desenvolvimento econômico"
[11] João Manuel Cardoso de Mello, "O capitalismo tardio"
[12] Warren Dean, "A industrialização de São Paulo"
[13] Sérgio Silva, "Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil"
[14] Theotônio dos Santos, “Dependência e mudança social”
[15] Celso Furtado, “Elementos de uma teoria do desenvolvimento”
[16] Francisco de Oliveira, “Crítica à razão dualista”
[17] Ignácio Rangel, “História da dualidade brasileira”
[18] José Luis Fiori, “O capitalismo e suas vias de desenvolvimento”
[19] Luiz Carlos Bresser-Pereira, “Do ISEB e da CEPAL à Teoria da Dependência”

[20] André Gunder Frank, “Acumulação dependente e subdesenvolvimento”

05 maio 2007

ruptura

nas eleições presidenciais de 2006, quando parecia que a política se tornara definitivamente irrelevante e os Mercados já festejavam pacificados, não importando quem vencesse, o segundo turno politiza a campanha e a pauta das eleições se altera. [1]

com a reeleição de Lula, a população brasileira reafirma modo inequívoco a sua escolha. a vontade de mudança, reprimida por décadas, séculos, expressou-se mais uma vez pacificamente, democraticamente. [2]

as massas populares passam a ser o protagonista de qualquer novo projeto nacional que se pretenda legítimo. a inclusão social se torna o ponto central da política. [3]

o país entra em um instante particularmente rico de sua história. forma-se um consenso: o Brasil precisa crescer. [4] e, dessa vez, um crescimento que surta efeito includente e de superação das desigualdades. [5]

mas como crescer? em qual direção? qual o desenvolvimento que precisamos? bastaria apenas tentar reproduzir o padrão de consumo dos países desenvolvidos?

a hipótese de extensão ao conjunto dos países das formas de consumo que prevalecem nos países centrais não tem cabimento dentro das possibilidades evolutivas aparentes do sistema capitalista. o custo, em termos de depredação do mundo físico é de tal forma elevado, que toda tentativa de generalização levaria inexoravelmente ao colapso de toda uma civilização, pondo em risco a sobrevivência da espécie humana. a idéia de que os povos pobres podem algum dia desfrutar das formas de vida dos atuais povos ricos é simplesmente irrealizável. as economias da periferia nunca serão desenvolvidas no sentido similar às economias que formam o atual centro do sistema capitalista. cabe, portanto, afirmar que a idéia de desenvolvimento econômico é simplesmente um mito. [6]

qualidade de vida não é uma mercadoria que se possa comprar. tampouco uma posição a ser ocupada na pirâmide social. não importa o quanto de dinheiro e riqueza disponível. taxa de lucro e acumulação de capital não redundam, automaticamente, em qualidade de vida.

qual então o modelo de desenvolvimento que também proporcione qualidade de vida?

eleito com o voto das massas trabalhadoras, Lula prefere governar com as elites. [7] sua ampla coalizão política "pensando nos próximos 20 anos” [8], reúne apenas quem nas últimas décadas sempre esteve no poder. [9]

por mais ampla, porém, que seja a coalizão, não haverá alternativa para um governo de mudanças se sua liderança, o presidente, não introduzir a sociedade brasileira como interlocutora. se uma vez mais – em 2007 repetindo 2003 – , o governo optar pelos entendimentos de gabinete, se uma vez mais apostar na solução dos impasses através as negociações de elite, de cima para baixo, em entendimentos com banqueiros e empresários da grande imprensa, perderá a força do apoio popular e não realizará qualquer das mudanças necessárias, ou pelo menos não as realizará na medida exigida pelo país. [10]

Lula privilegia os grandes grupos, o grande capital. oferece desonerações tributárias para os setores afetados pelo câmbio, enquanto mantém blindado o cerne da política econômica, atendendo aos setores dominantes, bancos e grandes investidores, com a mais alta taxa de juros reais do mundo.

o “moderno” agronegócio dos usineiros do álcool, os novos heróis de Lula [11], não produz comida [12] e submete os “trabalhadores em um regime de escravidão disfarçada”. [13] o novo ciclo da cana-de-açúcar impõe uma rotina aos cortadores que lhes reduz a vida útil de trabalho à cerca de 12 anos, comparável a dos escravos em 1850, antes da proibição do tráfico negreiro. [14] mesmo assim, o ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues, titular da pasta no primeiro mandato de Lula, afirma que o trabalho dos cortadores de cana é "bruto, pesado, mas bem remunerado". [15]

do café à cana-de-açúcar, numa viagem imóvel pelos séculos, Ribeirão Preto é a imagem do Brasil e de sua elite. paralisada no tempo, produzindo commodities e combinando a desigualdade do trabalho semi-escravo dos cortadores de cana com o enriquecimento dos senhores das modernas usinas. resiste obstinadamente a todas as transformações fundamentais. haure sua longevidade do veneno, que a alimenta e corrompe o vinho novo, incapaz assim de fermentar. um modelo incapaz de trazer desenvolvimento e muito menos inclusão social. o “arcaico” e o “moderno” se entrelaçam e formam o nó que interdita o avanço do país.

como reconstruir a sociedade após um século de derrocada das utopias? a esquerda atua e fala como se escondesse um plano que não tem. temerosa da reação econômica a qualquer iniciativa transformadora, esforça-se para parecer confiável aos que manejam o dinheiro. as lições da experiência contemporânea são inequívocas: os países que avançam são os que insistem em fazer diferente, os que inovam [16]

enquanto Lula desperdiça o auge de seu poder na instauração de um hipotético consenso abrangente e duradouro [17], na desolação do cenário político brasileiro, mesmo que nada se ouça, além do silêncio, ainda assim é possível sentir um grito infinito atravessando a paisagem. [18]

para romper este silêncio gritante no qual um país inteiro se imobilizou, surge a situação que toma impossível qualquer retrocesso e na qual são as próprias condições que gritam: aqui está o Brasil, salta aqui! [19]

os velhos odres devem ser abandonados. [20]

não há mudança sem ruptura. parto sem dor. passamos do tempo das postergações, hesitações, meias-medidas, apaziguamentos, conciliações, recuos e capitulações voluntárias. chegou o momento de tomar a trajetória que exige autotransformação, a via do engrandecimento, pavimentada com as dores da reconstrução de nós mesmos. [21]

sem atingir o coração das trevas da política econômica, rompendo o pacto maldito entre a Casa Grande e a Senzala, entre os bancos e os grotões, entre as forças do mercado e as favelas, entre o Copom e o Bolsa Família, que para uns distribui juros, enquanto perpetua a miséria dos outros com políticas compensatórias, não haverá desenvolvimento, não haverá inclusão social.

as soluções existem. elas são mais do que sabidas. estão colocadas sobre as mesas de todas as autoridades. todo mundo sabe como resolver. o que falta é decisão: [22]

controle de fluxo de capitais; queda dos juros até patamar correspondente a classificação de risco internacional do Brasil; reforma para terminar com a indexação dos títulos federais pela Selic, ou seja, fim da correção diária da dívida pública interna pela mesma taxa de juros que o Banco Central estabelece sobre as reservas bancárias para conduzir a política monetária; desindexação dos preços dos serviços públicos, e, mais amplamente, a proibição terminante de o governo brasileiro aceitar qualquer indexação em seus contratos e preços administrados; BC assumir como missão, além do controle da inflação, a manutenção do nível do emprego e do crescimento econômico.

para nos livrarmos das armadilhas do fiscalismo - aceitação integral da cartilha dos mercados financeiros - e do mercantilismo – economia voltada para as exportações e o mercado externo - é preciso produzir mais e melhor, dando a dezenas de milhões de brasileiros as condições para participarem do esforço produtivo e para consumir-lhe os produtos. [23]

a chave para destravar o desenvolvimento está nas massas do trabalho informal. são os marginalizados das cidades e das áreas rurais, os bóias-frias e os favelados, que, ao serem incorporadas à economia formal de modo organizado e estratégico, trarão consigo o crescimento.

é na inclusão maciça da periferia das grandes metrópoles brasileiras, implicando na construção de bairros inteiros, escolas, centros de saúde e de capacitação profissional, acompanhada da implantação de um modelo agrícola baseado em pequenas unidades camponesas de produção, é desta economia de guerra, com suas inevitáveis imposições de inovações tecnológicas e criatividade de soluções, que virá o desenvolvimento do Brasil.






[1] arkx, “a terceira via”, 18/10/2006
[2] Lula, Discurso de posse na Câmara, 2007
[3] Luis Nassif, “Os cabeças de planilhas”
[4] Roberto Mangabeira Unger, “Duas ilusões ruinosas“

[5] Roberto Mangabeira Unger, “Crescer“
[6] Roberto Mangabeira Unger, “Duas ilusões ruinosas“
[7] arkx, “a segunda descida aos infernos de Lula da Silva”, 31/03/2006
[8] Lula, 23/03/2007
[9] arkx, “ciclos”, 26/03/2006
[10] Roberto Amaral, “As eleições de 2006 e as massas: uma emergência frustrada?”
[11] Lula, 30/03/2007
[12] Ariovaldo Umbelino de Oliveira, Correio da Cidadania, 02/05/2007
[13] Luiz Felipe de Alencastro, sequenciasparisienses.blogspot.com
[14] Maria Aparecida de Moraes Silva, citada por Mauro Zafalon, Folha de São Paulo, 29/04/2007
[15] Folha de são Paulo, 01/05/2007
[16] Roberto Mangabeira Unger, “Contra a corrente“
[17] Roberto Mangabeira Unger, “Crescer sem dogma”, 13/03/2007
[18] arkx, “entreato”, 15/04/2007
[19] Karl Marx, "O 18 Brumário"
[20] Raymundo Faoro, "O estamento burocrático no Brasil: consequências e esperanças"
[21] Roberto Mangabeira Unger, “Qual futuro?”, 27/03/2007
[22] Julio Sergio Gomes de Almeida, ex secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, demitido por ter criticado a política monetária do BC e seus efeitos sobre o câmbio, 04/04/2007

[23] Roberto Mangabeira Unger, “Duas ilusões ruinosas“