07 julho 2010

05 Novembro 2006



por bem, ou por mal
apesar da consagradora reeleição, Lula só completou seu primeiro mandato em virtude de um erro estratégico da oposição conservadora.

em agosto de 2005, quando o publicitário Duda Mendonça confessou ter recebido de caixa dois no exterior pela campanha presidencial de 2002, a vantagem de Lula sobre seu adversário do PSDB chegou a apenas dez pontos. em dezembro, empataram. então, Lula descera a mais baixa taxa de aprovação a seu governo (28%), com a mais alta reprovação (29%).

enquanto a cúpula do PT desmoronava, deputados do partido choravam descontrolados no plenário e ministros sugeriam a Lula renunciar, PFL e PSDB optaram por fazer o Presidente sangrar até as eleições.

para a oposição conservadora, assumir o processo de impeachment era também enfrentar seus próprios cadáveres no armário. o governo do PT não cairia sozinho, arrastaria junto, em seu abraço de afogado, os “obscuros negócios“ das privatizações de FHC. nem o PT ou o PSDB, e muito menos o PFL, tem o menor interesse numa operação “Mãos Limpas“ no Brasil.

as urnas não concedem a Lula, junto com o segundo mandato, anistia pelos erros de seu Governo. ao contrário, o resultado do primeiro turno foi uma indicação incisiva da necessidade de mudança. mesmo o recorde de avaliação positiva (52%), alcançado ao final das eleições, foi muito mais uma demonstração de apoio político, num contexto de ataque cerrado a sua candidatura pelas elites, que endosso incondicional a um governo de “aloprados“.

Lula terá os cem primeiros dias de seu segundo mandato para promover uma inflexão na política econômica. chegou a um impasse a renovação do acordo entre o Bolsa Família e a Selic Banqueiro.

as medidas compensatórias do primeiro governo são incompatíveis com o ajuste fiscal perpétuo exigido pelo Mercado. muito embora todas as benesses recebidas, as elites deram prova, durante a campanha eleitoral, que, para derrubar Lula, não precisam exatamente de motivos, qualquer pretexto lhes serve.

por outro lado, as camadas populares que passaram a desfrutar de um maior acesso ao consumo e à política já não podem mais ser ignoradas. a classe média sinalizou ter chegado ao limite do asfixiamento e da condescendência com os escândalos. com o medíocre crescimento da economia, está esgotada a margem de ampliação do arrocho tributário.

no início de seu primeiro mandato, a justificativa para postergar a mudança da política econômica foi a “herança maldita“ de FHC. agora Lula se vangloria de estarem dadas todas as condições para o país voltar a crescer.

a continuidade no mesmo rumo econômico produzirá efeitos ainda mais graves do que anteriormente. o alto desemprego crônico deixará em frangalhos a base social do governo. com a manutenção da fórmula política surgirão novos escândalos. o apoio popular a Lula refluirá e a oposição não repetirá seus erros.

no auge da crise do “mensalão“, quando tudo e todos pareciam perdidos, foi de Lula a decisão de resistir. desta vez, contudo, qualquer resistência será vã.

Lula está condenado a entrar para a História. por bem, ou por mal...

31 Outubro 2006


a era Palocci
no Ministério da Fazenda, Palocci teve uma atuação inquestionável, exercendo com absoluto brilhantismo seu profundo desconhecimento de economia.

como líder de "uma equipe de excelência e eficiência técnica, totalmente voltada para o interesse público", conduziu o país a uma memorável façanha, que só não foi completa porque o Haiti defendeu com êxito o posto de último lugar em crescimento econômico na América Latina, no ano de 2005.

seu desempenho como médico no comando da economia só é comparável ao de um economista chefiando uma cirurgia.

Palocci manteve a economia Brasileira paralisada sob a ortodoxia convencional: taxa juros real alta, câmbio valorizado, superávit primário. resultado previsível: o ganho com a inflação sob controle foi anulado por crescimento medíocre, elevado desemprego e aumento da carga tributária.

numa metáfora médica: o medicamento ministrado não deixa o doente morrer, tampouco permite que saia da UTI... os mercados foram pacificados às custas da economia ser mantida com a estabilidade dos necrotérios.

graças à “era Palocci”, Lula pode admitir, com certa dose de orgulho, que jamais banqueiros e grandes empresários ganharam tanto dinheiro quanto em seu governo. já os votos, foram para seu adversário.

se os investimentos de Lula junto à elite não retornaram a rentabilidade eleitoral esperada, as camadas populares, porém, não retribuíram afagos com ingratidão. o custo da cesta básica em queda, o aumento do salário mínimo e um maior acesso ao consumo proporcionaram a Lula uma esmagadora maioria no eleitorado de baixa renda.

a herança de Lula para si próprio é um pacto maldito entre a Casa Grande e a Senzala, entre os bancos e os grotões, entre as forças do mercado e as favelas. para uns distribui juros, enquanto perpetua a miséria dos outros com políticas compensatórias.

excluída da aliança paradoxal dos mais ricos com os mais pobres, a classe média é a principal vítima da “era Palocci”. desde o milagre brasileiro na década de 70, a participação dos salários no PIB caiu de 50% para os atuais 27%.

com sua renda encolhida em 12% nos últimos quatro anos, a classe média foi o pêndulo das eleições de 2006. mandou um incisivo recado a Lula ao forçar o segundo turno, para, então, reafirmar seu repúdio à política econômica da “era Palocci”, legado de FHC.

tanto sob o aspecto político quanto o econômico, o modelo chegou ao seu limite. por fadiga de material, esgotou-se a capacidade de reciclagem do acordo entre o Copom e o Bolsa Família. mesmo o tempero de uma tímida distribuição de renda bancada pelo Estado não é compatível com o ajuste fiscal perene exigido pelo liberalismo sem meias medidas.

já não há como sustentar a manutenção dos programas sociais, ainda mais transferência pontual de renda via aumento de salário mínimo, sem a retomada do desenvolvimento, o que pressupõe mudanças macroeconômicas: queda dos juros e mudança no câmbio.

embora choque de gestão seja necessário para melhorar qualidade do funcionamento da máquina estatal, seu impacto no total de gastos públicos, considerando juros da dívida, é insuficiente. algo como cortar cabelos para perder peso.

inviável expandir ainda mais a carga tributária. novas reformas neoliberais (previdência, trabalho) e privatizações ficam descartadas após a inflexão política do segundo turno.

para arrecadar mais e gastar menos, resta como única opção o Estado alavancar o desenvolvimento com distribuição de renda. a própria lógica interna do modelo levou-o a um beco sem saída: nem viabilidade econômica tampouco apoio político.

seja de um jeito ou de outro (aliás, em Ribeirão Preto está aberta a porta da cela) não resta dúvida: acabou-se a “era Palocci”.

29 Outubro 2006




mensagem
era incerto, derradeiro
estava disperso, não era inteiro
se dissipa o nevoeiro

a hora é agora!

28 Outubro 2006


aniversário
27/10/2006. no dia de seu aniversário, que melhor presente poderia Luiz Inácio desejar?

as pesquisas apontavam que ele abrira uma dianteira de mais de 20 pontos sobre seu adversário. ao soprar as 61 velinhas já poderia comemorar antecipado a realização de seu pedido. a faixa do segundo mandato estava ao alcance da mão.

para aquela noite se esperava, no último debate das eleições, uma exibição de afável bom-humor do vencedor magnânimo. mesmo se Alckmin ressuscitasse alguma vocação de guerreiro, não valia a pena Lula aceitar provocação e chutar uma candidatura morta.

havia mesmo a expectativa que, no melhor estilo “paz e amor”, Lula lançaria, no clímax do debate, um apelo conciliatório à oposição.

entretanto, como nos velhos tempos das greves de metalúrgico, naquele dia Lula não estava bom.

muito embora Alckmin mantivesse todo o tempo sua inofensiva postura leguminosa, Lula o golpeou com tanta agressividade, não dispensando inclusive o contato físico, que faltou muito pouco para uma intervenção do mediador a fim de evitar as vias de fato.

ao invés de sorrisos de um feliz aniversário, uma carrancuda irritação. o Presidente-candidato contrariou todas as boas-maneiras do marketing político. deixando de lado o manual do politicamente correto, extravasa espontaneidade e emoções. não que passasse descontrole, e sim um total desinteresse em reprimir a tensão.

com sua atitude, Lula desdenha por completo as consequências eleitorais. já não é o voto que importa. algo o perturbava, mas nada tinha a ver com a certeza da vitória.

quem poderá dizer o que vai no coração de um homem?

talvez Lula já se sentisse à distância, e que distância, sobrevivendo a si mesmo, sem saber como ter esperança, ao se ver, enfim, com uma nitidez que cega, como foi no tempo em que festejavam o dia dos seus anos.

como parar um coração? para que não pense. como fazer para que não vendam a casa? e que os dias não se somem... e que já não se faça anos...

quem sabe Lula apenas pensasse em quando não mais festejarem os dias dos seus anos. mais nada...

26 Outubro 2006


Lula II: o Homem-Presidência
a reeleição de Lula o colocará numa situação absolutamente singular.

ele não se descolou somente do PT, move-se através da estrutura partidária e acima do sistema político com a desenvoltura de um mito.

lastreado na própria imagem e popularidade, Lula enfrenta, nesta eleição, um poderoso arco de forças, ao qual está impondo uma derrota arrasadora. não terá qualquer obrigação de compartilhar os créditos da vitória com quase ninguém. “quase”, porque sempre é bom prestar alguma satisfação ao eleitor.

o quebra-cabeça político do segundo mandato está sendo montado por inteiro, e com exclusividade, na mente de Lula. nunca um Presidente se elegerá com tanta autonomia para ditar os rumos de seu governo.

caso seja consagrado pelas urnas da reeleição, que outra glória mundana poderia cobiçar aquele antigo retirante nordestino, filho de Dona Lindu? alguma outra fortuna? ainda mais prestígio? envelhecer calmamente, orgulhoso e impenitente?

o surgimento de Lula II será um momento crítico na biografia de Luiz Inácio da Silva. do ponto de vista das ambições pessoais, seu currículo estará completo, mas à sua frente estará se abrindo uma nova perspectiva.

caberá a Lula decidir se aceita o desafio que lhe será lançado: iniciar a contagem regressiva para uma confortável aposentadoria política, ou abraçar sua definitiva oportunidade de entrar para a História.

24 Outubro 2006


uma nova chance
mesmo todo coberto com a lama dos sucessivos escândalos, nada parece deter a marcha triunfal de Lula em direção ao segundo mandato.

a perspectiva de uma votação acachapante conduz ao retorno do contexto da vitória de 2002.

então, havia júbilo no ar. furando o asfalto, o tédio, o nojo, o ódio e o medo, brotava a Rosa do Povo.

antes mesmo de tomar posse, porém, Lula-lá vai a Washington para selar, num aperto de mão com Bush, a nomeação de um banqueiro como presidente do BC. apesar das mil flores nas ruas, mais uma vez se adiava a chegada da primavera...

o temor às “forças do mercado” derrotara a esperança de uma inteira nação. antes de sequer ousar lutar, Lulinha paz e amor preferiu sucumbir voluntariamente, dando continuidade à maldita política econômica herdada de FHC.

agora, a espiral do tempo completa mais uma volta, trazendo Lula de novo ao mesmo ponto em que, da primeira vez, rejeitara o chamado da História.

já não há festa. o voto é desanimado. muito mais contra o PSDB que de aprovação ao Presidente-candidato. o eleitorado associa Alckmin a FHC e se identifica com Lula. entre os dois governos, faz uma óbvia escolha pelo menos ruim.

por outro lado, o modelo do pensamento único caiu estilhaçado. o debate por alternativas se propaga na sociedade. as “forças do mercado” entram em movimento defensivo, sem condição de manter o Governo como refém. com seus “fundamentos” abalados, a macroeconomia se torna suscetível a mudanças.

a remota probabilidade de reversão do jogo eleitoral, leva a oposição ao desespero de cogitar uma virada de mesa institucional. resta o recurso ao terceiro turno. caso haja reeleição, prevêem, o novo governo acabará antes de começar. mesmo Lula reconhece que, confirmado crime eleitoral no dossiegate, será ele quem terá que pagar.

o PT também já não é o mesmo. demorou 23 anos para chegar ao poder, e menos de um mandato para ter seus principais quadros afastados dos postos chaves do governo e do próprio partido. rompido com sua base social e deteriorado seu solo histórico, o PT sobrevive às custas da popularidade de Lula.

na repetição de 2002 em 2006, as respectivas conjunturas trocam sinais entre a farsa e a tragédia. para Lula, contudo, permanece a mesma questão: fazer História ou submeter-se às circunstâncias legadas pelo passado.

22 Outubro 2006


giro no vazio
na passagem para o segundo turno havia a percepção de Alckmin estar em superioridade estratégica.

enquanto os tucanos, acomodados no ninho, cantavam vitória, Lula não perde tempo em reagrupar suas forças e lança a contra-ofensiva. a vertiginosa recuperação da campanha do PT deixa tonta a cúpula alckmista.

ao conduzir com brilhantismo a arte da guerra política, ganhando primeiro para só então iniciar a batalha, Lula reconquista a iniciativa e assume a pauta das eleições.

como um exército derrotado que primeiro luta para depois tentar a vitória, a campanha de Alckmin tarda em se dar conta que, pelos fatos em curso, se inclina ao fracasso.

numa pronta, e inédita, autocrítica, Lula reconhece publicamente o erro de faltar ao último debate, reformula sua relação com os meios de comunicação, afasta os envolvidos com o dossiegate e desnuda as vulnerabilidades do adversário, trazendo a eleição para um terreno em que não pode perder.

Alckmin não tem como exorcizar a maldição que herdou de FHC.

à medida que nas pesquisas se amplia a vantagem do PT, também se intensifica na mídia a campanha contra Lula. as primeiras páginas dos jornais e as capas de revistam rivalizam na disputa pela publicação da matéria com poder para, enfim, fulminar a imagem do Presidente.

muito barulho, pouca repercussão. há muito que o quarto poder sucumbira a si próprio. por reduzir informação e crítica à publicidade, já não forma opinião e atinge apenas audiência cativa.

mesmo que Lula e seu governo de “aloprados” tenham fornecido todos os argumentos para a oposição de grande parte da mídia, na verdade esta precisa de apenas um único motivo: o próprio Lula. caso não houvesse nenhuma das razões de fato existentes, a mídia agiria do mesmo modo. o que incomoda não são os inúmeros defeitos, mas as poucas virtudes do Presidente-candidato.

as oligarquias regionais tentam a todo custo manter acesas as chamas do caso dossiegate. fogo que não se apaga, consome-se por si mesmo. a tática das denúncias gira no vazio.

não que haja ilusão e ingenuidade no eleitorado. voto não é absolvição. pesquisa indica Lula como o mais "corrupto", entretanto Alckmin é visto como o que"mais defenderá os ricos”.

certas armas são instrumentos de má sorte. empregá-las por muito tempo produz calamidades.

18 Outubro 2006


a terceira via
aquela vinha sendo a eleição presidencial mais apática desde a redemocratização do país. parecia que a política se tornara definitivamente irrelevante.

o jogo eleitoral fora armado de tal forma a não haver possibilidade de terceira via. como na época da ditadura militar, a disputa se reduzia a dois partidos, ambos a serviço do mesmo projeto político conservador. pouco importa quem vencesse, os Mercados festejariam pacificados.

entretanto, a cada vez que os homens pretendem ser mais espertos que a História, e a ela dar fim, acabam logrados como tolos.

quando a campanha de Lula já comemorava por antecipação, o "Núcleo de Inteligência" do PT mira no dossiê Vedoin e acerta o próprio pé. o escândalo resultante, somado aos votos não precificados pelo Mercado, dados a HH e Cristovam, provoca o adiamento de uma vitória anunciada.

mais importante: altera-se por completo o perfil das eleições. se Lula já não podia manter-se escondido em cima do salto alto, Alckmin, por sua vez, tinha que deixar para trás o currículo de Governador e mostrar suas propostas como Presidente.

sem compreender que a pauta das eleições já lhes fugira ao controle, as "forças do mercado" tentam monopolizar o debate em torno do lema do pensamento único: ajuste fiscal.

inútil. o curto-circuito viciado se rompera. as duas campanhas precisavam render alguma homenagem à virtude, mesmo que sob o manto da hipocrisia.

as urnas do primeiro turno revelaram um outro país, nunca uma eleição fora tão polarizada, com as diversas camadas sociais votando claramente conforme seus respectivos interesses.

com a inflação sob controle, o custo da cesta básica em queda e o aumento do salário mínimo, silenciosamente uma multidão se incorporara ao consumo e à política e não podia mais ser ignorada.

a classe média, esmagada entre o Bolsa-Família e a Selic-Banqueiro, dá seu basta à estagnação e ao desemprego. o agronegócio se revolta contra o câmbio artificialmente desvalorizado. a indústria recusa-se a morrer de “doença holandesa”. banqueiros e grandes empresários aplaudem e pedem mais do mesmo, se possível, sem Lula...


com o segundo turno, a surpresa: abre-se inesperadamente o caminho da terceira via.

entram em discussão juros e câmbio. cai o tabu do controle de capitais. Alckmin assina carta antiprivatização. Lula carimba o segundo mandato como"desenvolvimentista". economistas de mercado têm faniquito, mas são obrigados pelo patrão a ficar de boca fechada.

mais uma vez, o Brasil se move. o rumo para o futuro começa agora.

14 Outubro 2006



reinventando Alckmin
inebriados com uma vitória que euforicamente alardeavam ter obtido no primeiro debate do segundo turno, os tucanos se prepararam para voar mais alto.

com os resultados das pesquisas, porém, são abatidos em pleno ar.

a brutal reversão de expectativas faz com que o candidato do PSDB procure sua identidade nos reflexos do espelho despedaçado.

Alckmin ou Geraldo? polido ou agressivo? técnico ou passional? PSDB ou PFL? HH ou Cristovam? ricos ou pobres? Sul ou Nordeste? gerente ou estadista? choque de gestão ou Bolsa-Família? privatizar ou resgatar o Estado? desenvolvimentista ou neoliberal? cortar gastos públicos ou controlar fluxo de capitais? soberania nacional ou submissão internacional?

foi como se, de repente, o tucano se tornasse a encarnação das contradições das classes dominantes Brasileiras.

no meio de tanta angústia e desorientação, os alckmistas ainda não descobriram que lhes resta uma chance de vencer. precisam encontrar a pedra filosofal que transforme a eleição. para que deixe de ser uma disputa de projetos de poder e se torne busca de rumos para o Brasil.

a marca de nascença das classes dominantes Brasileiras é jamais terem lutado por um projeto para o país. sempre mantiveram planos exclusivos para si mesmas, resignadas a um papel dependente e submisso à sua contraparte internacional.

neste aspecto, o PT, após sua chegada ao governo, em nada difere. e o mesmo se pode afirmar da candidatura Alckmin. todos têm em comum abdicar espontaneamente a professar idéias próprias, sem qualquer outro horizonte estratégico além de perpetuar o exercício do poder.

apesar da exigüidade de tempo e recursos, Alckmin vive um dilema extremamente rico. precisa se reinventar.

caso seja bem sucedido, com ele estarão sendo reciclados os setores que representa: as elites Brasileiras, que jamais chamaram para si o destino do país, privado do sentido de nação e mantido na condição de empresa constituída para abastecer o mercado externo.

muito embora o próprio candidato-Presidente admita que nunca as elites ganharam tanto dinheiro quanto em seu governo, os banqueiros e grandes empresários, mesmo considerando Lula e Alckmin como iguais, ambos "conservadores", dão seu apoio a Alckmin, maciçamente.

não é sem motivo que pesquisa do Datafolha, na qual Lula aparece como o mais "corrupto", aponta o tucano como o mais "inteligente, moderno e inovador" e também como o mais "autoritário" e o que "mais defenderá os ricos".

como o país que almeja governar, Alckmin está no centro de uma crise de destino. para vence-la, não lhe bastará sua religiosidade conservadora, tampouco seu orgulho interiorano e, muito menos, sua competência de gestor não ideológico.

chegou o momento de Alckmin provar que pode ser algo mais. caso consiga, mesmo que não ganhe as eleições, terá sido vitorioso.

09 Outubro 2006



os olhos de quem vè 

após o primeiro debate do segundo turno, eleitores de Alckmin não conseguiam conter a euforia e entraram em estado de êxtase. para eles, não restava a menor dúvida, o candidato do PSDB massacrara Lula. uma vitória completa e inquestionável, anunciando o nascimento de um Presidente.

o eleitorado do PT, por sua vez, também festejava. sem fogos de artifício, entretanto.

os petistas sonhavam em liquidar as eleições no primeiro turno. estavam agora um tanto inseguros, desacostumados que ficaram do confronto direto de idéias e propostas.

apesar das ironias de Lula durante o debate, tão a gosto de sua turma, a mudança de estilo de Alckmin deixara a cúpula petista desorientada. como se tocado por alguma pedra filosofal, o candidato alckmista transmutou-se de "xuxu" em"pimenta". tão cheio de som e fúria que parecia uma HH calva e engravatada.

como se vê, dependendo de quem olha o debate teve vencedores diferentes.

o tucano entrou em cena decidido a vencer por nocaute logo no início do primeiro round. estratégia correta e surpreendente. porém, tática equivocada e previsível.

escolheu o tema óbvio, para o qual Lula ensaiara exaustivamente. muito embora o petista deixasse suspensa no ar a pergunta que não quer se calar, sua resposta, mesmo insuficiente, não o comprometeu com seu próprio eleitorado.

empolgado com o papel inédito como gladiador, em contradição com a imagem construída ao longo de sua carreira política, o ex Governador de SP acabou exagerando. mostrou o que não devia: a cara nua do conservadorismo à Brasileira. por exemplo, quando Lula o comparou a Bush, só faltou agradecer o elogio.

a partir de então, Alckmin foi aos poucos retornando à sua habitual condição de Geraldo. do ímpeto inicial restou a agressividade ensaiada e uma indignação caricatural.

seja como for, a performance de Alckmin atendeu de forma impecável a expectativa de seus eleitores cativos. uma platéia com sede de sangue que ganhou um momento catártico. mais do que aplaudir Lula apanhando, vibraram mesmo foi com aquilo pelo que tanto ansiaram: os rugidos de seu candidato. 


cruel paradoxo. quanto mais Alckmin agrada a seu eleitorado convicto, mais se afasta daqueles que precisa conquistar para vencer a eleição. como a disputa é pelos votos dados à HH e Cristovam, os alckmistas deveriam adiar a festa. a não ser, é claro, que pretendam comemorar apenas entre eles mesmos.

além disto, Alckmin também deve perder apoio entre os que nele votaram com intenção de forçar um segundo turno. tratou-se muito mais de um protesto contra a arrogância lulista do que um aval à santa aliança entre PSDB e PFL.

assim que vier a ressaca, os alckimistas estarão chegando a uma desesperadora conclusão: Alckmin perdeu o debate.

07 Outubro 2006



à esquerda
mesmo com o fraco desempenho nacional, menos de 7%, HH teve no estado do Rio de Janeiro 17% dos votos, alcançando 20% na capital.

apesar da mediocridade de sua política local, dividida entre Césares e Molequinhos, os cariocas mostraram, mais uma vez, vocação de alcance nacional e uma orientação nitidamente à esquerda.

numa eleição polarizada, HH e Cristovam dividiram 25% do eleitorado do RJ. sem qualquer prejuízo para Lula, que obteve mais de 49%.

Juscelino foi mesmo um visionário ao transferir a capital para os ermos do planalto central do país. isolou a casta política do contato direto com as massas numa cidade sem raízes e povoada por burocratas e lobistas. até hoje Brasília não tem a menor característica de caixa de ressonância, quanto mais de vanguarda. militares ditadores, tecnocratas e economistas neo-liberais devem muito a Kubitschek.

embora tenha cometido erros básicos que minaram sua chance real de tornar-se a terceira via nas eleições de 2006, a campanha de HH conquistou uma grande vitória para todos os Brasileiros. a realização do segundo turno, para o que a candidatura de HH contribuiu como fator decisivo, permitirá ao país se questionar e amadurecer.

infelizmente, a frente de apoio a HH, formada pelo P-SOL, PSTU e PCB, mostrou-se coerente com o insuperável talento da esquerda em sucumbir a seus próprios conflitos internos. nem ao menos um programa de governo foram capazes de produzir.

sempre se critica o aspecto multifacetado da Esquerda como um de seus mais graves problemas. este tipo de análise é um erro monumental. multiplicidade e diversidade são inerentes a Esquerda e uma vacina infalível contra todos os tipos de totalitarismos. como somos grupúsculos todos nós, que os grupos se multipliquem ao infinito, ao invés de se devorarem uns aos outros.

nascido da falência do PT, e tendo como um dos lemas de campanha que PSDB e PT são como irmãos siameses, o P-SOL se vê diante da encruzilhada de um segundo turno, que possivelmente não aconteceria sem a candidatura de HH.

alguns de seus dirigentes declaram ser inaceitável uma "neutralidade insossa". afirmam também que não se faz política com o fígado, não se importando em ser ou não coerentes. exatamente o mesmo rumo que o PT tomou para se converter no que é hoje em dia. só que demorou mais tempo...

não se trata de mera coincidência que os defensores de um apoio a Lula no segundo turno são os mesmos que permaneceram agarrados ao PT até o último instante. enquanto aqueles que foram expulsos por se manterem fiéis ao programa petista traído por Lula, são também os que fundaram o P-SOL e se mantém firmes às posições assumidas pela campanha de HH.

talvez nunca tenha sido tão necessário quanto agora assumir posições claras e conservar princípios inabaláveis. para resgatar a ética na política o país precisa superar um cenário no qual a Direita sempre vence eleições com candidatos de aluguel; e a Esquerda se conforma em seguir a reboque, condenando-se a optar entre o péssimo e o muito ruim.

sob o disfarce desta encruzilhada se esconde um beco sem saída. é sempre melhor seguir o próprio caminho.

06 Outubro 2006


secessão
o grande empresariado Paulista tem uma imagem extremamente peculiar de si próprio. sempre se considerou o portador da modernidade e exemplo de um Brasil que funciona e prescinde do Estado.

curiosa auto-definição para uma classe cuja origem não veio, como nos EUA, de camadas médias lutando pela independência do país, mas, ao contrário, nasceu dos antigos latifundiários e dos traficantes de escravos, contando com a proteção do Império e sempre agregada a sua contraparte internacional.

são os atuais descendentes dos “barões do café“, que produziam para exportar e não para abastecer o mercado interno, dependendo inteiramente do capital estrangeiro, tanto para a colocação internacional do produto quanto para a construção das ferrovias pelas quais escoava a produção.

é a brava gente que hoje prega um corajoso corte dos gastos públicos e defende uma redução generosa na carga tributária.

não se referem, é claro, a reduzir as despesas com os juros da dívida pública. já que, sem esforço, ganham nas aplicações em títulos federais, investimento sem risco garantido pelo Estado, uma rentabilidade maior do que conseguiriam em qualquer atividade produtiva.

como sempre, propõe corte na carne alheia.

as despesas com os serviços públicos que atendem a maior parte da população oscilaram, nos últimos dez anos, em torno de 17% do PIB, sem grande variação.

já a dívida pública segue acima de 50% do PIB, alimentada pela maior taxa real de juros do mundo. os gastos com os juros atingem 8% PIB, com cerca de 80% dos títulos concentrados em apenas 15 mil famílias.

tamanha transferência de riqueza é sustentada por uma carga tributária de 37% do PIB, dos quais apenas 33% são oriundos de receitas, enquanto 67% provêm das contribuições.

ou seja, tanto os rendimentos com os juros da dívida pública, quanto o sistema tributário, são altamente concentradores de renda, beneficiando as camadas mais ricas da população.

apesar disto, nossa brava gente vê, quando examinam o resultado do primeiro turno das eleições de 2006, ao Norte e Nordeste um Brasil vermelho, pobre e dependente do Estado, que seria sustentado pelos impostos arrecadados no Brasil rico do Sul e Centro-Oeste, colorido com o azul da economia de mercado.

FEBRABAN e FIESP ainda não se libertaram do modelo da Abolição da Escravatura. quem tem direito à indenização é o senhor, afinal foi expropriado de seus“meios de produção“, e não o escravo a quem negaram a condição humana.

não é que falte fé no povo para nossas classes dominantes, não têm fé em si mesmas. desconfiam de suas próprias palavras de ordem. divulgam chavões em vez de idéias. intimidadas pela crise do país, mas dela desfrutando. vulgares porque nunca foram originais e originais em sua vulgaridade. sem energia, em nenhum sentido, plagiaria em todos os sentidos.

não avançaram nem avançam para um projeto político alternativo para a sociedade nacional. jogam com as classes subalternas de modo tímido, pouco elaborado. temem a força política dessas classes, principalmente o risco de ter de compartilhar o poder. não construíram nem constroem um projeto de cunho hegemônico, porque não interpretam os interesses das outras classes e muito menos da sociedade como um todo. apenas defendem seus próprios interesses corporativos.

nestas eleições, apóiam um candidato com perfil similar ao que possuem, embora tudo façam para negar esta condição para si próprias. em vez de progressista, Alckmin é católico conservador; em vez de cidadão cosmopolita, ostenta com orgulho a marca do interiorano; em vez de sociólogo ou economista, é um gerente pós-ideológico.

30 Setembro 2006


bando selvagem
num momento caótico, um país dividido é a nossa herança. entretanto, talvez o tempo das armas esteja acabando. e a época dos homens violentos ficando para trás.

como deixar de sermos um bando selvagem, agindo em interesse próprio, para nos tornarmos uma nação?

nenhum processo de amadurecimento se dá sem ruptura e dor. principalmente para as nações.

se não há qualquer futuro possível no ódio e na desilusão, não nos livraremos do passado sem manter princípios claros e inabaláveis. até mesmo os bandidos têm seu código de ética.

sem ação cooperativa e inclusão social não existe competitividade sistêmica, sendo impossível desenvolvimento sustentável. nem os bandos sobrevivem caso não trabalhem em equipe.

na maioria dos países modernos, a idéia da nação foi projeto dos quadros dirigentes e não uma iniciativa das massas. as elites brasileiras, todavia, pouco se identificaram com a nação. aceitaram um papel subalterno de sócias minoritárias, num país constituído como uma empresa sob controle estrangeiro para atender demandas externas.


no Brasil, foram pessoas do povo que abraçaram uma certa idéia de nação. nossa construção nacional, ainda inacabada, sempre foi obra de um bando de Brasileiros selvagemente apaixonados pelo país. por isto, nossa identidade nacional não resulta de raízes gloriosas, tampouco de ambições imperiais. nossa cultura de síntese não se baseia em raça ou em religião. não somos xenófobos, nem guardamos ressentimentos em relação ao colonizador.

só que em nossa história o controle do país tem sido exercido de modo selvagem por bandos sucedendo bandos. sem que, até hoje, o povo tenha conseguido assumir o comando da nação.

após Collor e FHC, Lula é o fim de um ciclo. a definitiva falência não apenas de um modelo sócio-econômico, como de uma estrutura política, que se demonstraram incapazes de desenvolver o Brasil e proporcionar qualidade de vida aos seus habitantes.

apanhados numa encruzilhada do destino, precisamos virar uma página da História: o Brasil de poucos terá de ser o Brasil de todos.

29 Setembro 2006


brava gente brasileira
na reta final da campanha, a candidatura de Lula recebe uma contribuição inesperada.

em coluna publicada pela Folha de São Paulo, em 28/09/2006, Otavio Frias Filho deixa entrever a face selvagem das Elites Brasileiras. goste-se ou não, sentencia triunfante, não existiria vida possível fora do liberalismo. prega um modelo sem meias medidas, no qual o mercado paira, onipotente e onipresente, acima de tudo e de todos. sem nenhuma misericórdia com temperos compensatórios bancados pelo contribuinte.

foi o bastante para provocar uma onda de choque e indignação, arrancando do armário eleitores de Lula, até então um tanto recatados em declarar o voto.

apesar dos sucessivos escândalos envolvendo o PT na compra de apoio político e dossiês sobre seus adversários, tudo indica ser o texto publicado pela Folha de São Paulo um caso espontâneo, sem qualquer contrapartida financeira.

de qualquer forma, é um belo exemplo de que, se o PT tornou-se a Esquerda que a Direita gosta, nossas Elites são a Direita que o PT precisa para legitimar-se com seu eleitorado.

o dono da Folha de São Paulo é um desses notáveis espécimes da classe dominante Brasileira. embora dono de jornal, tem imensa dificuldade em se entender com a linguagem escrita. é uma brava gente que desde o século XIX cultiva café, sem que até hoje sejam capazes de agregar valor à exportação do grão. também se dedicam a produzir celulose, porém continuam importando o papel no qual imprimem seus jornais.

por sua vez, não são poucos os que desejam Lula de novo, por temer o retorno da Direita. na verdade aquela que nunca se foi. apesar de considerá-la como “maldita”, o PT não só deu continuidade, como aprofundou a herança econômica de FHC. o próprio Lula se vangloria que banqueiros e grandes empresários jamais ganharam tanto dinheiro quanto em seu governo.

temos sido um país de transições controladas, em que a mudança se dá de modo a que nada se altere. assim tem sido ao longo de toda a história Brasileira. entretanto, é cada vez mais difícil manter eficaz esse arranjo.

a rigor, o segundo mandato de FHC chegou ao fim logo no primeiro mês de governo. caso seja eleito, Lula II terá tempo de tomar posse?

seja de um jeito ou de outro, nossa exasperante tradição de mudanças lentas, seguras e graduais se aproxima vertiginosamente do ponto de ruptura.

27 Setembro 2006


patético momento
ele não tinha esse rosto de hoje. ainda não perdera sua face na confusão das imagens nos espelhos.

não choraremos o que houve. choraremos esse mistério. a indizível conjunção que ordena vidas e mundos em pólos inexoráveis de ruína e de exaltação.

foi no ano de 1989 que, pelos caminhos do mundo, nosso destino se perdeu. nosso grande sonho de homens esmagado pela força surda dos vermes.

mas algum destino se perde?

o que esperavas? envelhecer calmamente, orgulhoso e impenitente...

eis que agora, a força, o jogo, o acidente, esse esquema sobre-humano, novamente te trazem para aquela mesma encruzilhada, quando foste pusilânime e, como veia de sangue impuro, queimaste a pura primavera.

noite confusa. data sinistra.

que sombrias intrigas houve em tua formação? que negócio fizeste? nenhum remorso te acomete?

mas eis que agora a figueira em teu destino se intromete. voltaste para aquele instante.

se outra vez desmorona, ou se edifica, não sei... se permanece ou se desfaz... se fica ou se passa... não sei, não sei...

só sei que um dia estaremos todos nós mudos. mais nada.

então, de que valem as muitas coisas que pedes? comendas, glórias, privilégios. de que adianta só na morte se estar vivo?

vale a pena sobreviver a mais um patético momento? porque a vida, a vida só é possível reinventada.

ou isto ou aquilo... concha vazia, coral quebrado, mar solitário...

não. pelos caminhos do mundo, entre o sonho dos homens e a força dos vermes, nenhum destino se perde...

24 Setembro 2006


cada povo tem a elite culpada que merece
a Esquerda não se cansa de repetir que toda a culpa é das Elites.

há uma boa dose de razão nesta acusação. afinal, as classes dominantes Brasileiras demonstram ter como inspiração os piratas que vinham ao nosso litoral com o intuito exclusivo de saquear o Pau-Brasil. desde então o espírito empreendedor continua o mesmo: conseguir se apossar do máximo no menor tempo possível.

não se trata apenas de extrativismo selvagem. é bem mais um caso de insuperável falta de visão estratégica. não há sequer a preocupação em preservar o ambiente de negócios.

a pilhagem do Pau-Brasil nunca deixou de ser um fim se esgotando em si próprio, sem jamais se cogitar os rumos do negócio após a derrubada da última árvore.

do mesmo modo, os setores contemporâneos, cuja fortuna resulta das altas taxas de juros que asfixiam a economia nacional, não consideram ser problema deles se, por causa de um modelo econômico que só a eles interessa, o país como um todo entre em colapso.

apesar de ser evidente a parcela de culpa das Elites em nossa História, não é tão fácil admitir que elas têm, no decorrer de todo o processo, um cúmplice inseparável: o Povo.

as análises da Esquerda sempre infantilizaram o Povo, cujas opções equivocadas seriam fruto da imaturidade política e do baixo nível de consciência. contudo, o Povo e as Elites são resultados do mesmo processo histórico e se igualam em seu imediatismo e no desprezo pela questão nacional.

em termos econômicos, nunca fomos uma nação voltada para seus próprios anseios. ao contrário, nos constituímos como uma empresa sob controle estrangeiro para atender demandas externas. enquanto as Elites no fundo se envergonham de terem nascido no Brasil, para o Povo a nação só existe quando a Seleção Brasileira calça as chuteiras.

nossa sociedade ainda não superou o estágio da “Casa Grande e Senzala”. o Povo ao invés de exigir seus direitos, suplica por benefícios. as Elites ainda se comportam, desde a época da Abolição da Escravidão, como se lhe fosse devido o benefício da indenização para que o Povo tenha direito à liberdade.


politicamente, o paradigma Brasileiro continua sendo o das “Capitanias Hereditárias”, no qual as Elites não cometem crimes, porque, em último caso, ordenam que se revise o código penal. além de donas do poder, encarnam em si a lei. o Povo vê a justiça não como algo que se luta para conquistar e manter, tratando-se muito mais de uma caridade a ser recebida, nem que seja pelo maroto expediente da malandragem.

invertidas as posições sociais entre Povo e Elites, nada se alteraria no Brasil, a não ser, talvez, para pior.

trazendo para o exemplo da atual eleição, apesar de até Lula admitir com certo orgulho que banqueiros e grandes empresários jamais ganharam tanto dinheiro quanto no governo do PT, as Elites se unem solidamente em torno de Alckmin. 


no caso, mais que o bolso, importa o berço. as Elites podem até permitir que a gestão seja conduzida por um capataz. não admitem porém, em hipótese alguma, que o Povo não se resigne ao seu lugar.

como antes já fizera com FHC, o Povo está disposto a reeleger Lula, mesmo que também o responsabilize pela corrupção de seu governo. para o Povo o berço não importa, desde que se leve alguma vantagem no bolso.

o mesmo Povo que, por causa do Plano Real, levou FHC duas vezes ao Planalto, agora, motivado pelos programas sociais, quer repetir a dose dupla com Lula. se da primeira vez as Elites aprovaram a sábia escolha do Povo, hoje repudiam sua opção, denominando-o de “massa ignara”.


a Esquerda é crítica com as Elites, porém condescendente com o Povo e indulgente consigo mesma. mais do que as Elites e ao Povo, cabe a Esquerda a obrigação de formular um projeto para o país. até mesmo porque é ela quem defende ser um outro mundo possível.

apesar disto, uma candidatura de Esquerda, como a de HH, é incapaz de, senão da formulação de um projeto, pelo menos apresentar um programa de governo.

mais uma eleição passará. pode ser que continuem nossos eldorados. como já tivemos o do açúcar, o do tabaco, e de tantas outras commodities tiradas de nossas terras férteis, enquanto férteis, como o ouro e os diamantes se extraem, até se esgotarem, do cascalho, sem retribuição de benefícios. nossa procissão dos milagres tem sido assim, desde todo o período colonial, sem que a tenha interrompido a Independência, sequer, ou a República.

desta vez, entretanto, mergulhamos num vôo cego, imersos em uma crise de destino, a maior da nossa existência. a História está nos encarando nos olhos, indagando: “afinal, o que vocês são? o que querem ser? tem sentido existir Brasil? qual Brasil?”

diante da Esfinge, nem as Elites, nem o Povo, tampouco a Esquerda, parecem ser capazes de responder a pergunta. sem que ninguém o decifre, o Brasil devora a si mesmo.

16 Setembro 2006


o Tigre e o Dragão
(em 12/12/2002)



“Aquele que não atingiu a Sabedoria, está cheio de vaidade,
fala e faz um grande ruído de seu vácuo e de sua ignorância.”

inscrição num antigo vaso Chinês

os Imperadores na Antiga China não apenas monopolizaram o direito de usar o Dragão como símbolo, como se declararam filhos do Dragão e alegaram que seu poder de governar era concedido pelo Céu. os Dragões estavam por toda parte nos palácios imperiais. qualquer outra pessoa que se associasse com o Dragão era sentenciada a morte por crime contra o Imperador.

o Tigre, por outro lado, sempre pertenceu ao Povo. as pessoas admiram sua beleza e força, encontrando nele apoio espiritual, e o usam como símbolo protetor e de boa sorte. para muitos, o Tigre tem o poder de afugentar Demônios...

embora possua asas, na maior parte das vezes o Dragão apenas se arrasta pelo fundo lamacento das águas. enquanto ondula seu corpo ao rastejar, fazendo com que a terra afunde sob seu peso, o Dragão supõe que está alçando vôo. volta e meia um vago sentimento lhe aturde. então, como se fosse um sonho, o Dragão entrevê num lapso que acima da lama e da água pairam o ar e o céu.

o Tigre mantém seus recursos ocultos e, nos relatos da mitologia Chinesa, sempre salvou vidas humanas. o caso mais famoso é o de Confúcio. contudo, sempre que o Dragão se alia a Maldade e se volta contra o Povo, o Tigre é enviado para detê-lo.

14 Setembro 2006


o adiamento de uma vitória anunciada
faltavam pouco mais de duas semanas para as eleições. a campanha de Lula mal conseguia disfarçar o eufórico clima de antecipada vitória. o Presidente-candidato estava tão confiante a ponto de anunciar um transubstanciação com os eleitores: cada um deles se tornara gota de seu sangue e célula de seu corpo.

excitados com a proximidade de uma reeleição anunciada, artistas colocavam de lado qualquer preocupação com a ética, assumindo que política se faz com as mãos sujas e com o que se tem.

apesar de alguns deles nem estarem assim supersatisfeitos, alegavam não ter alternativa. afinal, em termos de corrupção não se podia dizer que o governo Lula superasse o anterior.

intelectuais ludibriados, embora confessassem entre risadas como caíram na trapaça da cúpula do PT, não se envergonhavam em se declarar à disposição para serem mais uma vez enganados.

as pesquisas demonstravam claramente o fosso abissal que se escavara no eleitorado. as camadas mais pobres e de menor escolaridade estavam maciçamente com Lula. na mesma proporção, quanto maior a renda e o nível de instrução aumentava o apoio à oposição.

mais que um simples indicador sócio-econômico, a divisão revelava como o avanço da informalidade alterara o país, deteriorando a estrutura social e tornando a maior parte da população refém de políticas compensatórias.

então, tudo começou a mudar.

como sempre ocorre nestas situações, a princípio foi quase imperceptível. entretanto, a sequência dos fatos, quando analisada em retrospectiva, dá a impressão de ter sido orquestrada, como se o destino houvesse se encarregado de conspirar contra os rumos da história.

numa mesma semana se inverteu a sorte de Lula, o que ele só foi entender quando já era tarde demais.

auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) concluíra que o Governo não comprovara despesa de R$ 11 milhões, pretensamente gastos na impressão de cartilhas com propaganda oficial. tampouco há provas da distribuição de dois milhões dos exemplares efetivamente impressos. o Planalto justificou que o material foi entregue a diretórios do PT. alguns destes, contudo, afirmaram nada terem recebido.

no caso, o que incomodava o Governo não era a denúncia em si, mas a possibilidade de se chegar ao fio da meada do uso de superfaturamento com dinheiro público para financiar campanha política privada.

com o indiciamento de Palocci pela PF, voltaria à tona uma pergunta que não podia se calar: quais exatamente eram os negócios tratados pela república de Ribeirão Preto nas reuniões realizadas em Brasília na mansão dos prazeres ?

as peças se encaixavam e remetiam para a exumação de cadáveres de torpes assassinatos...

o fato mais importante, e decisivo, para a inversão do curso das eleições, aconteceria logo a seguir. a reputação pessoal de Lula, até então inexpugnável, estava prestes a ruir. sua arrogância em breve se transmutaria na depressão que, nos momentos de adversidade, lhe é tão característica.

como um mau presságio dos tempos que chegavam, naqueles dias Lula teve que cancelar um compromisso de campanha no Rio de Janeiro. com cerca de 15 minutos de vôo, o avião que o transportava sofreu uma pane e foi obrigado a retornar à Brasília. chegara o momento de sua campanha vir ao chão.

11 Setembro 2006


desconstruindo Lula: o golpe final

eleições de 1989. segundo turno. última semana. Collor e Lula estão tecnicamente empatados. campanha de Lula em alta. Collor declina. eufórica, a militância do PT ocupa as ruas das principais capitais.

na primeira eleição direta para Presidente da República após a ditadura militar, o Brasil se tornara um país urbano e industrializado. com as lutas pela redemocratização e o fim do ciclo militar, as classes dominantes perdem a iniciativa na condução do processo político.

o longo histórico Brasileiro de transições controladas chega a um impasse. pela primeira vez, há possibilidade concreta de um operário se eleger Presidente e a Esquerda assumir o poder. a iminente ruptura com a herança das “revoluções palacianas” coloca o Brasil em transe.

empresários ameaçam deixar o país. classe média tradicional, tributária das oligarquias arcaicas, entra em pânico. rumores circulam em SP: caso Lula seja eleito, haverá confisco de quartos para acomodar imigrantes nordestinos. classe média surgida com o processo de desenvolvimento abraça com entusiasmo a candidatura do PT. população dos grotões rejeita Lula. trabalhadores dos grandes centros urbanos se identificam com o líder sindical.

a sociedade experimenta à flor da pele o sentimento da realidade histórica de se estar vivendo entre dois mundos: um definitivamente morto e outro que luta para vir à luz.

Collor joga sujo. coloca no ar depoimento de ex-namorada de Lula, acusando-o de propor um aborto. na réplica, o constrangimento do pai ao lado da filha emudecida, revela que Lula acusara o golpe a ponto de vergar os joelhos.

ao se dobrar a chantagem, recusando-se a fazer com que o eleitorado encare sua própria hipocrisia em relação à questão do aborto, Lula começa a adiar, por mais uma vez, o já longo e exasperante parto daquilo que luta por nascer.

no debate final, Lula entra em cena num estado de petição de miséria. Collor aterrorizara os bastidores da campanha petista com sua intenção de expor em público a intimidade sexual de Lula.

num dos mais patéticos momentos da história política Brasileira, Lula não sobrevive e sucumbe, ao vivo, diante dos olhos perplexos de seu eleitorado.

o golpe de misericórdia vem com a edição do debate divulgada no dia seguinte pelo Jornal Nacional.

a derrota de Lula em 1989 foi, ao mesmo tempo, um fracasso político e psicológico.

Lula não teve estatura política para aceitar a vitória contra uma elite para a qual seu nome estava vetado. preferiu a rendição voluntária que assumir a Presidência num cenário de confronto.

com sua estrutura psicológica vulnerável, que entra em colapso nos momentos de crise, Lula demonstrou incapacidade de resolver um problema básico de formação de personalidade. as limitações e deficiências que, muito embora ele tenha consciência de possuir também considera impossível de superar, não podem ser publicamente admitidas, ou sequer apontadas, sob pena de sensação de humilhação e desonra.

sob a face vitoriosa do Lula atual, permanece enterrado o fantasma de 1989. Lula é hoje tão somente uma deplorável farsa de si mesmo. apesar da alta popularidade e do elevado percentual de intenção de voto, sua estatura política e sua fragilidade psicológica se degradaram de modo irreversível.

derrotar Lula não é tão impossível quanto evidências imediatas levam a supor. até mesmo porque, tanto da perspectiva do processo histórico quanto do individual, ele já é um acabado fracasso.

10 Setembro 2006


a porta do futuro: "future is the mind"(em 21/11/2004)

conversamos um pouco com um casal, durante um jantar num dos típicos restaurantes de Lisboa. eles estavam na mesa ao lado da nossa e demonstraram estar a fim de um papo.

são Belgas e falam "flamengo". ao saberem que éramos brasileiros, manifestaram muito interesse, principalmente o homem, que já era um senhor.

ele repetiu diversas vezes, em inglês, que o Brasil é o país do futuro. eu manifestei minha discordância. comentei sobre os enormes problemas brasileiros. afirmei que economicamente o Brasil tem, nos últimos anos, retrocedido no tempo.

o Belga balançou a cabeça e disse com ênfase que, sem dúvidas o Brasil era mesmo o país do futuro. e aquela simples conversa confirmava isto.

explicou seu ponto de vista: "future is not ecnomic. future is the mind. it is multicultural. it is diversity".

naquela agradável noite de verão em Lisboa, talvez o belga, inspirado pela visita ao claustro do Mosteiro dos Jerônimos e sob intenso efeito do vinho português, apenas divagasse sobre navegadores a singrar os mares e a criar a civilização transoceânica moderna.

em seu devaneio sonhava com manhãs e cavalos brancos nas margens enevoadas do Tejo, e acabou tomando o Brasil como futura realização do Quinto Império.

sendo assim, aquilo não passou de mera conversa de bar, pronta a ser relegada ao esquecimento pela dura realidade do dia seguinte.

pode ser também que o belga se referisse aos mais valiosos patrimônios Brasileiros: o povo, que tem a maior mistura genética do mundo, a imensa biodiversidade existente no país e o fantástico componente multicultural de nossa sociedade.

neste caso, fica um tanto inusitado testemunhar em Portugal, de quem fomos colônia, um belga a se ufanar pelo Brasil, mesmo que eu me esforçasse para convencê-lo do contrário.

por outro lado, o belga tem toda razão em afirmar que o futuro não é econômico, sob cujo prisma nos tornamos humanos em virtude do trabalho, e que por ser fator hegemônico trouxe a humanidade ao beco sem saída atual, cuja falência de modelos tem uma de suas mais agudas expressões no Brasil contemporâneo.


o futuro é a mente ? pode ser apenas um jeito de se pensar... seja como for, podemos estar certos de que não haverá futuro algum se não começarmos a pensar e discutir um outro caminho aqui e agora no presente.

09 Setembro 2006


tudo mudará
(em 05/09/2005)
“Não haverá mais sonho. Preciso botar o pé no chão.”
“Mas creio que há possibilidade de uma coalizão de centro-esquerda,
capaz de negociar com a direita sem compra-la.”

Fernando Gabeira
( entrevista à “Folha de São Paulo”, 04/06/2005 )

houve certa vez, num passado nem tão distante, embora mais e mais remoto, uma geração capaz de ousar tomar os céus de assalto.

hoje na discreta mansidão do envelhecimento, seus mais típicos representantes tem os pescoços amarrados por gravatas floridas, crendo na obra e graça da sedutora estamparia para se transformarem em algo diverso daquilo a que se deixaram converter: meros senhores engravatados.

alardeiam como prova cabal de suposta sabedoria, vinda de um amadurecimento tardio, a conclusão de não mais haver sonhos, a não ser fincar os pés no que tomam como a realidade.

fazem-se esquecidos de ser o sonho a matriz geradora do real, e se negam a admitir que sua capitulação decorre de não terem aprendido como sonhar o bastante.

foram contemporâneos de uma classe operária desembarcada do “pau-de-arara” em São Paulo já com a intenção de chegar ao paraíso.

de uma longa trajetória de lutas, emergiu o líder sindical que enfim subiu o planalto, alçando pela primeira vez um trabalhador à Presidência da República.

num intrincado jogo de espelhos, virando tudo pelo avesso do avesso do avesso, homem e personagem se confundem no labirinto.

de tanto fingir o que é, o homem acabou por se tornar aquilo que fingia, mas que de fato era.

a mais completa impostura na sincera mentira de representar a verdade.

conduzido nos ombros da plebe ao palácio com a missão de mudar o Brasil, o presidente filho do povo operou o maior estelionato eleitoral da história do país.

entretanto, a força que o elegeu não protagoniza traições e numa cambalhota para o impossível realiza o sonho, cumprindo a promessa de campanha, mesmo que pelo mais torto dos caminhos.

a nação não mais será a mesma após o Governo Lula.

apesar dele, tudo mudou. tudo mudará.

enquanto isto, intelectuais silenciosos, guerrilheiros arrependidos e militantes perplexos teimam em tirar dos fatos apenas as lições que lhes são convenientes.

caído o muro dos paraísos, não enxergam a rota aberta para a utopia. da crítica ao elogio da ignorância se curvam reverentes a uma cultura obscurantista. na formação das raízes profundas de um Brasil de corrupção e miséria, não identificam que nunca fomos propriamente uma nação, e sim uma empresa voltada para fora e controlada de fora.

e apesar do repetido fracasso retumbante da esquerda, insistem na ilusão de uma santa aliança capaz de conciliar interesses antagônicos. a mãe de todos os enganos. negócios sem implicar em compra e venda.especialmente com a direita, que não entrega o que se comprou – apoio – e quer receber o que jamais deveria ser vendido: a alma.

a cada vez que os conformados se rendem aos escombros do velho, deles se ergue um novo ciclo, aprisionando no passado todos aqueles que não aceitarem ainda mais uma vez construir o rumo do futuro.

08 Setembro 2006



isso é o que nós somos, companheiro(em 02/07/2005)
( sobre “Flores, flores para los muertos”
de Fernando Gabeira,
publicado na “Folha de São Paulo” em 18/06/2005 )


frases esparsas num bloco de notas
pétalas caindo numa cova vazia
não falem de flores
deixem que os mortos enterrem seus mortos
não se entrega não
só se entrega prá morte de arma na mão

infâmia maior
que a grande ditadura torturando a carne
é a cotidiana corrupção de cada alma
pelos diminutos minúsculos tiranos

isso é o que nós somos
mais que corações e mentes

isso é o que nos tornamos
anos de chumbo
ditadura de burgueses do capital alheio
pacto entre os bancos e as favelas
aliança da casa grande com as senzalas

cercados pelo deserto do real
sonhos roubados convertidos em pesadelo
esperança em medo
haverá um futuro ?
o futuro precisa de nós ?

maior é Deus
pequeno sou eu
na roda da história
grande e pequeno sou eu
não tivemos a sorte de escapar
dos tempos sem sol
e da onda de lama que agora submerge
os cínicos e os servis

o que somos
dor
insuportável peso tão leve do ser

o que nos falta
como superar a dor
cálice cheio até a boca
transbordando
isso é o que nós somos
isso é a nossa dor
não a afastemos
não nos afastemos dela

carecemos da compreensão que nada nos falta
somos um excesso
uma alucinação extraordinariamente nítida
que vivemos todos em comum com a fúria das almas

isso é o que nós somos
a chance de optar
entre o que eu quero
e o que a vida quer de mim

no fundo do poço
sobrevivendo ao patético momento
triste destino
sindicalistas e investidores unidos
na tragédia histórica de transformar em farsa
o que foi escrito com sangue nas estrelas

tudo o que era sólido derreteu-se no ar
o rei morreu
morram todos os reis
a arte do possível
seja a criação do impossível
como uma das possibilidades

após o fim de tudo
fantasmas rondam o Brasil
anfitriões da utopia
anunciam nada mais a se perder
senão as correntes que aprisionam
um mundo a ganhar

isso é o que nós somos
o fim
e o começo

dos escombros do velho
novamente se ergue o clamor por mudança

o que fazer

tudo é incerto
nada é inteiro
isso é o que nós somos
nevoeiro

a hora é agora
aqui nasce o futuro

precisará o futuro de nós ?

saberemos dissipar a ilusão de uma manhã gloriosa
quando enfim retornará um rei que nunca tivemos ?

saberemos que nossos sonhos são nossas armas
e só sucumbimos quando não sonhamos o bastante ?

saberemos reconhecer a falência de todos os modelos
e que só haverá um futuro
se somos capazes de continuamente reinventá-lo ?

isso é o que nós somos
país do futuro cumprindo a profecia do passado mítico
a encruzilhada do presente nos devorando com o enigma a decifrar :
quem somos ?

isso é o que nós somos, companheiro

06 Setembro 2006


o ponto cego: desconstruindo Lula (3)
mesmo sob ataque cerrado da campanha oposicionista, Lula prossegue desfrutando de índice recorde de aprovação de seu governo. o Presidente-candidato não está nem aí e já avisou: “deixa bater à vontade...”

a verdade é que Alckmin como demolidor de Presidentes saiu-se quase tão bem quanto em sua gestão da segurança pública de SP. nos dois casos mostrou exemplar falta de talento para desempenhar a função proposta.

Heloísa Helena, por sua vez, bem que gostaria de vomitar repetidas vezes em cima do Presidente. afinal, mesmo ainda não sendo tecnicamente rico, ele sempre foi suficientemente ordinário. lamentável a candidata do P-SOL não dispor de tempo bastante para isto.

quando FHC se encarregou, ele próprio, de fazer rufar os tambores da guerra, ordenando incendiar o palheiro, tinha em mente algo mais que o fogo de palha obtido.

a sede de sangue dos patriarcas do PFL não foi saciada. estes acreditaram piamente que, para virar o jogo a seu favor, bastaria xingar Lula de “ladrão”. no fundo, o que não suportam é a quebra do monopólio da corrupção. algo que detinham pelos últimos 500 anos.

o eleitorado pobre se identifica com Lula e ao olhar para Alckmin vê a cara do patrão. o raciocínio é simples: ladrão por ladrão, é melhor que seja um da nossa turma que conseguiu chegar lá.

o ponto cego das oposições é não compreenderem que, apesar do apoio maciço recebido pelas camadas de baixa renda, Lula detesta “pobre”.

Lula é daquele tipo de gente que usa as pessoas quando e como lhe convém, e não tem escrúpulos em se livrar de quem já não lhe é mais útil. Lula sorri pela frente enquanto esfaqueia pelas costas. com uma das mãos concede o Bolsa Família e com a outra mantém o beneficiário num estado de permanente miséria.

seu interesse pelos “pobres” é tão autêntico quanto sua lealdade aos companheiros de partido. seus abraços nos eleitores de baixa-renda são como beijos de Judas.

Lula agora está tomando gosto por apanhar. como baixou a guarda, é o melhor momento para acertá-lo de jeito.

05 Setembro 2006


as peças e o torneiro( a partir dos filmes
“Peões” e “Entreatos”
em 28/11/2004 )


para D. Paulo Evaristo Arns, Lula tercerizou o governo em virtude de não estar preparado para o cargo, algo que seus opositores sempre lhe acusaram e cuja pronta refutação nunca deixou de ser feita por membros das comunidades eclesiais de base.

o pobre Lula, coitado, não passa de vítima, na opinião de Carlos Lessa, de uma insidiosa conspiração universal das elites, que o estão enganando ao se aproveitarem de sua bondosa ingenuidade.

outros juram que Lula é apenas um produto do marketing político de Duda Mendonça, criador de uma impostura tão completa que nela até o próprio Lula acabou por acreditar.

sendo inaceitável para alguns que a peãozada não se resigne ordeira e pacificamente a permanecer em seu lugar, consideram Lula como um deslumbrado penetra se encachaçando com o poder, e estão ansiosos por dele se livrarem logo na primeira chance.

Frei Beto, após iniciar a polêmica sobre a diferença entre estar no governo e estar no poder, chegou a conclusão que já era mais do que hora de encerrar a questão e sair de cena silenciosamente.

enquanto José Dirceu, tendo reservado para si o papel de eminência parda, se vê cada vez mais relegado a um modesto segundo plano, Palocci sabe do status meramente burocrático do poder que parece de fato exercer.

com certeza Brizola estaria às gargalhadas, lembrando ter avisado como o “Sapo Barbudo” é aquele tipo de esquerda tão estimado pela direita.

análises mais complexas explicam o paradoxo do governo Lula realizar o programa de FHC, demonstrando que o país inteiro, com suas combinações esdrúxulas, é como uma espécie de aberração, onde uma nova classe social, formada de um lado por técnicos e intelectuais doublés de banqueiros e do outro por trabalhadores transformados em operadores de fundos de previdência, domina o conhecimento do “mapa da mina” e tem o controle do acesso aos fundos públicos.

no entreato de frustração e perplexidade, a palavra final, como não deixaria de ser, vem do próprio Lula, ao desferir um soco na mesa garantindo que na política econômica não muda nada, e não terá vez para discutir com ele quem ousar contestá-la.

o fato revela não haver despreparo num homem que, por não aceitar posar de vítima, soube mover os peões no tabuleiro político para alcançar o objetivo a que obstinadamente se determinou.

não se procure por trás dos bastidores, pois nada há a não ser Lula, ele mesmo, puxando os cordéis e redigindo o script, o torneiro mecânico que fabrica as peças da engrenagem. Lula é o “chefe”. Lula é quem manda. Lula é o manipulador.

como confessou com empáfia, Lula jamais sentiu orgulho, e muito menos se identificou, com o macacão de operário, sendo aquele tipo de gente capaz de perder os dedos para manter os anéis.

eleito em nome da mudança que agora sequer admite cogitar, Lula realizou sua ambição pessoal de se tornar presidente porém precisou para isto do voto de milhões de anônimos, muitos deles o vendo como uma última esperança antes de nada mais restar no que se acreditar.

a despeito da manipulação das lideranças, são as massas quem movimentam a máquina, e ao outra vez entrarem em ação, como a quebra de confiança terá sido profunda e definitiva, libertarão da desilusão e da apatia o clamor pela mudança, que retornará mais forte do que nunca na história do Brasil.

04 Setembro 2006


desconstruindo Lula (2)
Lula e FHC sofrem do mesmo mal: paixão incontida por si próprio. não toleram concorrência no que tange a hipertrofia do ego. por isto, nada mais insuportável para a suscetibilidade de um do que as críticas do outro.

apesar da aspiração declarada de ambos ser o título augusto de príncipe máximo do Brasil, não conseguem superar o ranço batráquio.

FHC sente saudade dos tempos em que era Presidente da República, porque andava de helicóptero. Lula mandou comprar um avião novinho só prá ele. FHC não resiste a uma “buchada de bode”, desde que servida num restaurante em Paris. Lula, que já confessou sentir verdadeiro horror ao macacão de operário, é alérgico ao suor de seu rosto, quanto mais a ganhar o pão com dito cujo. ao chegar a Presidência FHC renegou tudo o que escrevera. Lula se orgulha de que, para ser Presidente, não foi preciso ler até o final um único livro.

muito embora não sejam iguais, os dois são o complemento indispensável um do outro. desconstruir o sindicalista é também expor a nudez do intelectual.

FHC já admitiu publicamente que queria ser igual ao Lula da época em que este era líder das greves contra a ditadura. o desejo inconfessável de Lula é um dia receber da elite o mesmo tratamento conferido a FHC: ser um igual entre iguais.

a combinação das virtudes de FHC e Lula formariam o estadista capaz de colocar o país nos rumos do desenvolvimento. como em sua relação atormentada preferem privilegiar os defeitos, se tornaram cúmplices em um do mais bem sucedidos fracassos de nossa História: nunca foi tão grande a distância entre o que somos e o que poderíamos ser.

são exemplos de um Brasil que renega suas raízes. homens pretensiosos inspirados por um demônio pérfido que faz com que eles, ao se verem diversos do que são, criem preferências e repugnâncias, sendo raro que sejam das boas.

02 Setembro 2006


Heloísa Helena passada a limpo (2)
entrevistador: vamos à próxima pergunta. a senhora costuma dizer que aprendeu o socialismo na Bíblia. em que trecho, exatamente?

HH: olha, eu tenho que lhe dizer que você me deixa muito satisfeita com esta pergunta. eu estava esperando mesmo que me perguntassem isto. porque você sabe, não é, nem todos os que dizem Senhor, Senhor entrarão no reino dos céus. o que adianta dizer Senhor, Senhor se não se faz o que Jesus pregou? (Lucas 6:46) e o que Jesus pregou? Jesus disse: amarás ao teu próximo como a ti mesmo (Mateus 22:39). e quem não se recorda do Sermão da Montanha. bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque eles serão saciados (Mateus 5:6). bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus (Mateus 5:10). bem-aventurados os pobres, porque deles é o reino de Deus (Lucas 6:20). então, é como eu estou lhe falando, eu acredito na igualdade e na solidariedade entre as pessoas. e quando eu acredito numa coisa, eu defendo. por exemplo, a parábola da multiplicação dos pães(Mateus 14) nos ensina muito sobre a economia. Jesus divide os pães de um cesto entre os famintos que o rodeiam. os pães são insuficientes e os apóstolos ficam preocupados. mas, à medida que os pães são divididos e distribuídos, multiplicam-se. é isto, a riqueza tem que ser distribuída para se multiplicar. é isto que tem que ser mudado no Brasil: distribuição de renda para poder haver crescimento com justiça social.

01 Setembro 2006


Heloísa Helena passada a limpo (1)
na entrevista com Heloísa Helena, no Jornal da Globo em 31/08/2006, algumas das respostas da candidata foram consideradas, por uma parcela de seu eleitorado, como aquém da expectativa.

com o intuito de sanar as dúvidas e resolver a questão, trazemos novamente a candidata aos nossos estúdios.

entrevistador: boa noite, candidata.

HH: boa noite. eu queria agradecer não apenas esta nova oportunidade, como vocês sabem ... eu sempre fui uma crítica ferrenha da Rede Globo. mas desta vez, eu tenho que dar a mão à palmatória. não somente estas entrevistas agora no Jornal da Globo, como as anteriores no Jornal Nacional, foram de um nível excelente, imparciais, trazendo perguntas sobre pontos polêmicos de cada candidato, fazendo com que ele se exponha. vocês estão de parabéns. vocês estão dando uma grande contribuição para a política brasileira e cumprindo o que se espera da mídia.

entrevistador: muito obrigado, candidata. mas vamos as perguntas. qual seria mesmo a sua postura diante de uma greve no setor público a senhora cortaria ou não o ponto dos grevistas?

HH: meu bem, eu vou responder esta pergunta em três pontos. o primeiro deles, como eu já disse anteriormente, toda greve, ela é conseqüência de reivindicações dos trabalhadores que não são atendidas. o trabalhador não faz greve porque quer, meu amor. ele faz greve, como um recurso, um recurso inalienável da classe trabalhadora, para conquistar melhores condições de trabalho e um salário digno e justo. no meu governo eu vou me antecipar à greve. sempre que as reivindicações forem justas, eu vou atender as reivindicações. a rigor, eu não vou sequer esperar as reivindicações. vou permanecer muito atenta às condições de trabalho do setor público, sempre cuidando para que sejam as melhores possíveis. portanto, as greves no meu governo, se acontecerem, serão muito raras. porque o meu governo não vai ser um balcão sujo de negócios como o governo do PSDB e do PT. este é o primeiro ponto. o segundo ponto... veja só, por que vocês não perguntaram ao Lula se ele vai cortar ponto de grevista? por que não perguntaram ao Alckmin? ah! não perguntaram porque é claro que o compromisso de Lula e Alckmin não é com a classe trabalhadora. e o meu é! é por isto que me fazem este tipo de pergunta e não a eles. Lula e Alckmin tem compromissos com o banqueiros, com os grandes empresários, com o capital internacional, com esta farra de juros exorbitantes e lucros astronômicos de bancos que está sabotando o desenvolvimento do país e condenando o trabalhador ao desemprego. mas vamos lá... está é uma pergunta polêmica e muito pertinente eu agradeço que me tenham feito para que eu possa deixar bem claro qual é a minha posição a respeito. a greve é uma questão social. e toda questão social no Brasil é tratada como caso de polícia. por isto que tem este tipo de pergunta. você vai cortar ponto? você vai chamar a polícia para descer o sarrafo no trabalhador? não, não! eu não vou tratar questão social como caso de polícia. vamos conduzir com muito diálogo, muito equilíbrio, buscando sempre a solução justa.

entrevistador: candidata, a resposta...

HH: sim, sim. olha, sei que tenho o defeito de às vezes ser prolixa. e aí chegamos lá. ao terceiro ponto, que é o seguinte. eu sou candidata e pretendo ter a honra de ser a primeira mulher a chegar à Presidência para ajudar a transformar este país na grande nação que ele está destinado a ser. e que é o que o povo Brasileiro deseja e merece. portanto, eu vou dizer a vocês que no meu governo sempre vou nortear toda decisão, por menor que seja, pelo que é justo, pelo que é correto, pelo que é melhor para a nação. então, que fique claro, se num determinado momento, e eu não sou mulher de ter medo de dizer isto aqui e perder voto, se eu tiver que cortar ponto, se esta for a decisão justa do ponto de vista do interesse da nação, então eu vou cortar ponto. assim como eu não vou ter medo de cortar juros, de fazer a reforma agrária, não vou ter medo de enfrentar os banqueiros e não vou ter medo de enfrentar os especuladores que vivem da desgraça do povo Brasileiro.

31 Agosto 2006


desconstruindo Lula (1)
vigia de clínica veterinária no Rio é preso após confessar a morte de uma empresária. a vítima foi golpeada duas vezes na nuca com uma pedra de mármore. em seguida teve seu pescoço esfaqueado, sua coluna vertebral cortada ao meio com um serrote, seu abdômen aberto, o corpo desmembrado e colocado em sacos plásticos. o quadril e as pernas foram localizados nas imediações do crime. a metade superior continua desaparecida.

moradores do local ficaram perplexos com o fato e comentaram que o assassino sempre foi pessoa muito gentil, ajudava os idosos a atravessar a rua e brincava com crianças e cachorros.

o criminoso agiu por vingança. um mês antes, numa discussão com a empresária, foi por ela chamado de “magrinho”.

especialistas afirmam ser um típico caso de psicopata clássico. a plena consciência do que é certo ou errado não o impede de agir conforme seu interesse, sem nenhum remorso.

seja como for, trata-se de perfil psicológico bastante comum entre a população forçada a migrar para os grandes centros urbanos Brasileiros.

há um sentimento de inferioridade ancestral que nenhuma ascensão social tem o poder de superar. a sensação de ser desqualificado em público gera reação emocional incontrolável. rejeição visceral em reconhecer o erro é defesa contra depreciação da auto-estima fragilizada. ofensa pessoal é tomada como afronta à honra e leva a necessidade de vingança exemplar.

a noção de “honra” é definida de modo particular e exacerbado, não depende de valores universais, variando conforme cada caso. no exemplo do crime citado, ser chamado de “gordinho” possivelmente não teria provocado no vigia o mesmo rancor. o ponto de honra é o limite para desencadear a resposta compulsiva.

a percepção de sentir-se inferior, por origem, impede o estabelecimento de relações de igualdade. ou aceita voluntariamente a submissão ou se impõe na constante demonstração de superioridade, mesmo que seja fazendo das limitações motivo de engrandecimento. situações adversas e golpes na auto-imagem causam sucessivas crises depressivas e conduzem ao vício.

tal estrutura de personalidade é extremamente vulnerável, com tendência a explosões quase instintivas e de efeitos imprevisíveis. homens cordiais se revelam psicopatas furiosos. basta serem atingidos no ponto certo.

30 Agosto 2006



  • "Me dói ver agora o próprio presidente da República dizer: 'não, todos são iguais'. Iguais não. Eu não sou igual a ele! Eu não sou igual a ele! Eu não sou igual a ele!"
  • "Eu o acompanhei nas greves quando havia ditadura. Eu queria ter sido igual a ele naquele tempo. Mas ele mudou. Ele hoje prega e faz tudo que combateu.”

    FHC
    29/08/2006
a sola dos sapatos de FHC e a roda da História(em 13/12/2002)
em 1978, Lula e os metalúrgicos do ABC, além de defenderem um sindicalismo desatrelado do Estado, viam com grande desconfiança a participação na política institucional e parlamentar.

apesar disto, Lula acabou apoiando, numa dessas voltas da roda da História, a candidatura de FHC ao Senado pelo MDB.

enquanto se desenrolava uma reunião do comitê de apoio e o vaidoso candidato discorria em seu tom professoral, algo nele chamava mais atenção que suas palavras acadêmicas.

de pernas cruzadas e com o pé sobre o joelho, era impossível não reparar a sola do sapato de FHC. elas não possuíam sequer um arranhão. aqueles sapatos sempre estiveram sobre pisos atapetados. aquele homem jamais pisava na rua. sempre circulava por gabinetes e ambientes climatizados.

naquele momento, ficou patente que pessoas como aquela jamais poderiam fazer com que, furando o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio, brotasse a Rosa do Povo.

ali o PT começou a ser gerado com a certeza que poderiam arrancar mil flores, mas jamais impediriam a chegada da Primavera.

então, a roda da História se pôs a girar mais decidida do que nunca no Brasil. pela primeira vez neste país, os trabalhadores reivindicavam a condição de protagonistas.

em 10/02/1980, o PT nasceu como um partido eminentemente não parlamentar, com foco no movimento social, firmemente apoiado nas bases, com um sólido conceito de democracia interna e voltado para a criação de um socialismo libertário.

muitas reviravoltas depois e ao chegar a Presidência da República, o PT se tornou a antítese daquele que sonhava ser a Primavera. seus dirigentes se converteram em arquétipos de burocratas e políticos profissionais. e se pode dizer que em nada ficam a dever ao solado dos sapatos de FHC...
contudo, a História ainda se move. implacável, não se lembra dos covardes e não suporta erros. muito menos traições. em seu movimento, costuma estraçalhar sem qualquer piedade os que tem a vã pretensão de impedir seu caminho.

29 Agosto 2006



como perder de véspera
divulgação das últimas pesquisas eleitorais gera clima de “já ganhou” para a candidatura de Lula, e alguns de seus maiores críticos são os primeiros a admitir“jogar a toalha”.


perder de véspera não é apenas precipitação: é a pior das burrices. entregar a disputa antes da hora é aceitar o jogo de cartas marcadas de Lula.

infelizmente, tanto Alckmin quanto HH continuam desperdiçando oportunidades...

o cenário político nunca foi tão podre no Brasil e o menor fato é suficiente para fazer com que tudo venha a desabar.

as demissões na VW tem alto potencial para abalar Lula. e a simples menção ao fantasma Okamoto aterroriza o Presidente.

apesar de seu pouco tempo na TV, HH está perdendo o timing da divulgação de seu programa de governo. apesar deste tipo de proposta não sensibilizar a grande massa do eleitorado, a classe média continua órfã nesta eleição, daí a apatia e o desencanto dominando a campanha. programa preparado por César Benjamin pode ser o diferencial que caracterize definitivamente HH como a opção consistente para a classe média politizada: “nem um, nem outro, nem nulo. vote nela.”

aspecto psicológico que pode desequilibrar: Lula não agüenta pressão. tem “queixo de vidro” e não mais que 3 ou 4 dias bastam para levá-lo ao nocaute. o final do segundo turno em 1989 e a recente entrevista ao Jornal Nacional são bons exemplos de como o franco favoritismo se converte em patético fracasso.

para desestabilizar Lula não basta bater. é preciso saber quando e onde bater.

a porrada em Lula surtirá mais efeito se vinda de Alckmin do que de HH. em virtude de sua pouca exposição na mídia, a candidata do P-SOL não tem como encadear ataques em sequência capaz de fazer com que Lula acuse os golpes.

nada mais afastado um do outro que os projetos políticos de Alckmin e HH. talvez seja de se supor menor a distância de HH para Lula. entretanto HH e Alckmin tem, pelo menos, um ponto em comum: ambos lutam por um segundo turno.

saber trabalhar o que aproxima é uma rara competência que prescinde de acordos, alianças, táticas ou estratégias. não é outro o motivo de tanto interesse de César Maia com a candidatura de HH, cujo crescimento continua sendo o fator capaz de levar a eleição ao segundo turno.

28 Agosto 2006


o pensamento interditado
parte da intelectualidade Brasileira já sucumbira com FHC no conveniente esquecimento do que antes haviam escrito.

por decisão espontânea se renderam ao slogan de não existir alternativa possível, exceto o alinhamento incondicional com o pensamento único.

prevista para se estender por 20 anos gloriosos, a era FHC encerrou-se, a rigor, com a crise cambial no primeiro mês do segundo governo. alguns dos principais ideólogos tucanos sequer conseguiram se manter vivos até o final do mandato.

o Presidente intelectual operou no limite da irresponsabilidade para promover uma privataria selvagem que destroçou o patrimônio público nacional, fruto de várias décadas de esforço desenvolvimentista.

já Lula, apesar de eleito com a bandeira da ética, não fez a menor concessão à coerência e sua política de “mãos sujas” arrasou os 23 anos de lutas populares para construir o PT e levá-lo até a Presidência da República.


assim como os intelectuais tucanos se encarregaram de fornecer o suporte teórico que legitimou a transformação do PSDB em linha auxiliar do PFL, sua contraparte petista assistiu a falência do PT entregando-se à omissão e a conivência, enquanto Lula aprofundava o modelo econômico herdado de FHC.

na recente política Brasileira, o partido oposicionista ao chegar ao poder migra inexoravelmente para a Direita e acaba executando o programa derrotado nas urnas.

a cada vez que o processo histórico desemboca numa crise, se restabelece no Brasil um acordo de cúpula, pactuado pelas elites, e a mudança se reduz a um rearranjo que tudo muda para que nada fique diferente.

intelectuais tucanos e petistas satisfazem-se com o papel subalterno de avalistas de políticas partidárias, sem assumir jamais sua função de consciência crítica da sociedade.

como qualquer cidadão, o intelectual pode ser filiado a um partido, desde que isto não implique em abdicar de sua independência, condição fundamental para que o pensamento não seja interditado.

25 Agosto 2006


o “lado B”
no início do governo Lula, proliferavam as explicações para a contradição do PT dar continuidade ao modelo econômico de FHC.

em algum momento, conjeturava-se, Lula colocaria em prática um suposto “Plano B”, coerente com seu histórico na oposição e capaz de, enfim, implementar as promessas de campanha.

a justificativa era ser impossível dar um “cavalo-de-pau” na economia, que seria como um Titanic, cujo rumo em direção ao iceberg havia de ser cuidadosamente corrigido.

o tempo se encarregou de provar que se o tal “Plano B” estava tão bem escondido é porque nunca chegou sequer a existir.

com a sucessão de escândalos, Dirceu, Genoíno, Delúbio, Sílvio Pereira e Palocci foram lançados ao mar. o capitão continua com a mão firme no leme sem qualquer alteração de rota. e o PT tornou-se um cadáver sobrevivendo a si mesmo às custas exclusivamente da popularidade de Lula.

enquanto o Presidente disfarça suas imperfeições faciais com aplicações de botox, o país nos revela uma cara que nenhuma maquiagem da propaganda oficial consegue esconder: a maior taxa de juros reais do mundo, estagnação econômica, crônico desemprego, insegurança pública recorde, pauperização da classe média.

contudo, ao final do mandato mais uma vez se acende a vã esperança dos eternamente crédulos. Lula II será algo distinto e no segundo governo virá a“arrancada desenvolvimentista”.

o maior estelionato eleitoral da história do Brasil não foi suficiente para impedir que no futuro sejam repetidos os erros do passado. as bravatas de Lula continuam a seduzir os que padecem do mórbido prazer de serem enganados.

assim como não existiu nenhum “Plano B”, Lula será sempre Lula. tudo fará para ganhar as eleições e dar seguimento ao seu único projeto: manter-se no poder.

23 Agosto 2006



o transe da transição(em 23/02/2003)
a maior parte daqueles que apoiam o Governo Lula se nega a aceitar a realidade deste início de mandato, em que o único aspecto inquestionável é a continuidade da política econômica neoliberal de FHC.

como se estivessem em transe, recusam-se de todas as formas a reconhecer o óbvio : a esperança mais uma vez está sendo derrotada pelo medo, sendo que desta vez, dentro do próprio Governo.

o estado de negação produz raciocínios complexos para se justificar, numa vã tentativa de manter viva a esperança, mesmo que artificialmente.

assim surge a “teoria da transição”, segundo a qual em algum momento futuro enfim Lula abraçará os objetivos para o qual foi eleito, abandonando de vez a herança maldita de FHC.

“transição” é estabelecer um rumo e se colocar em marcha em direção a ele. e não andar de costas voltado para o passado, sem ousar encarar um futuro que se tem medo e incompetência para enfrentar.

para existir “transição” é necessário dar o primeiro passo, e não repetir uma trajetória que reconhecidamente nos lançará no caos.

o mais repugnante é que esta “transição” tende a se alongar mais e mais, até o absurdo de exigir sua continuidade num hipotético segundo mandato.

o Governo Lula erra.

e erram ainda mais aqueles que procuram defender o indefensável, ao invés de serem os primeiros a exigir que se cumpra a vontade das urnas.

cada dia perdido no patético transe de uma transição que ainda não se iniciou, implica não somente em desgaste futuro para Lula como no fortalecimento da Direita, que poderá retornar com ferocidade nunca antes vista no Brasil.

Lula tem um mundo a ganhar, mas parece determinado a botar tudo a perder ao se esquivar daquilo que se tornou : um símbolo vivo do desejo de mudança do eleitorado Brasileiro.

22 Agosto 2006


o “Plano B”( em 20/12/2002)


“A esquerda atua e fala como se escondesse um plano que não tem.”

Mangabeira Unger
17/12/2002


eleito para mudar o modelo adotado por FHC, Lula montou uma equipe econômica que tem o intuito declarado de manter a política monetária anterior.

ao ser confrontada com esta contradição, a parcela mais consciente de seus eleitores, numa vã tentativa de prolongar o gozo da vitória, se agarra a uma última esperança.

imaginam que, para corrigir o desvio original, em algum momento após a posse será colocado em prática o “Plano B”.

como o sujeito que em queda livre acha que tudo está bem só porque ainda não se esborrachou contra o chão, não compreendem que nada pode ser pior que negar a realidade.

não existe nenhum “Plano B”.

e a verdade é que tanto seu surgimento quanto sua implementação dependem unicamente daqueles que não aceitam que o medo possa vencer a esperança.

18 Agosto 2006


os braços do povo

com o início da propaganda eleitoral na TV, estrategistas do PSDB anunciam ter chegado a hora da virada de Alckmin.

as esperanças tucanas poderiam até ter sua lógica, exceto pelo fato que a eleição não é decidida por telespectadores de programas eleitorais.

José Dirceu identifica corretamente a estúpida pretensão que aflige o PSDB: fazer política sem povo.

mesmo FHC reconhece que se a "mensagem não colar com o sentimento do povo, não se ganha eleição".

de qualquer modo, para a cúpula financeira o recado já está dado. nunca em véspera de eleição o mercado esteve tão confiante e tranquilo. Lula e Alckmin são vistos como iguais e, para os banqueiros, ambos são conservadores.

por causa de seu exíguo tempo na TV, alguns analistas políticos supõe que, a partir de agora, a candidatura de Heloísa Helena comece a perder força.

entretanto, a candidata do P-SOL é a única a apresentar a mensagem que sintoniza com o sentimento do povo e que arrebata o eleitorado. hoje há nojo no Brasil e as pessoas têm asco da podridão do país.

sua força não vem do marketing político e da propaganda impecável e sim das ruas, dos braços do povo.

como Roberto Jefferson já percebeu, algo está vindo aí.

17 Agosto 2006


paradoxos
o Ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan, considera um paradoxo as lideranças empresariais preferirem Alckmin a Lula. afinal, segundo declarou àFolha de São Paulo em 13/08/2006, nunca o setor produtivo ganhou tanto dinheiro.

paradoxo maior é isto ocorrer no governo de um Presidente eleito para mudar um modelo econômico "que, em vez de gerar crescimento, produziu estagnação, desemprego e fome", e cujo discurso de posse se iniciou com a palavra “mudança” .

com um lucro médio de 24,7% no primeiro semestre de 2006, os bancos brasileiros dobraram seu capital nos últimos quatro anos. mesmo assim, o candidato que deveria ser de oposição tem encontro na Febraban (Federação Brasileira de Bancos) e suas palavras para os banqueiros presentes soam como “música para os ouvidos".

enquanto Alckmin inebria a elite financeira, FHC afirma que para se ganhar a eleição é preciso eletrizar o povo, pois “o voto não vai ser dado por cartazes, propaganda apenas”.

mesmo tendo todos os motivos para um impeachment do Presidente, a oposição preferiu, por temer seus próprios cadáveres no armário, sangrá-lo até as eleições. agora, no pior dos paradoxos, Lula segue em dianteira folgada na direção do segundo mandato.

16 Agosto 2006


não interessa
Olavo Setúbal afirmou, em entrevista à Folha de São Paulo em 13/08/2006, que “é claro que os juros podem e devem baixar”. agora, como? isso é problema do governo, não dele.

para o presidente do conselho de administração da Itaúsa, holding que controla o banco Itaú, “nunca o Brasil esteve tão bem como hoje”. exceto por um detalhe: a taxa de natalidade que “ainda cresce de forma absurda no Brasil”.

não resta dúvida que Setúbal tem todos os motivos para estar muito satisfeito com o país. o lucro líquido semestral dos cinco grandes bancos brasileiros (Banco do Brasil, Bradesco, Itaú, Unibanco e Banespa) cresceu 132,5% do início do governo Lula a junho deste ano.

e é óbvio que os juros não são mesmo um problema para ele, já que as receitas de tesouraria (em sua maior parte decorrentes de aplicações em títulos públicos) no Itaú cresceram 335% entre junho de 2003 e junho deste ano.

como se vê, muito mais que a taxa de natalidade, o que cresce de forma absurda no Brasil é o lucro dos bancos. a consequência é baixo desempenho econômico, aumento do desemprego, da miséria e da insegurança pública.

mas Setúbal não está nem aí prá nada disto. e ao se importar com a taxa de natalidade é porque entende que o único modo de acabar com a miséria é impedir os miseráveis de nascerem.

sendo um legítimo membro das classes dominantes Brasileiras, Setúbal considera que não são de sua conta os problemas do país, tampouco os problemas da população.

problema dele são seus negócios particulares. já o bem estar público da sociedade em que vive, outros que tratem disto...

como os corsários que, nos primórdios de nossa história, aqui desembarcavam apenas para saquear o ”Pau-Brasil”, Setúbal pertence a uma classe cujo interesse único é colher os frutos de uma árvore que nunca plantou.

15 Agosto 2006


sem pimenta no chuchu
(ou: porque HH não atacará Alckmin diretamente)


um segundo turno nas eleições para Presidente da República depende do crescimento da candidatura de Heloísa Helena. o candidato do PSDB demonstra não ter força suficiente para impedir a vitória de Lula já no primeiro turno.

se Heloísa Helena avançar nas pesquisas, pode ameaçar Alckmin e com ele disputar lugar num hipotético segundo turno.

disto não decorre, contudo, que a candidata do P-SOL venha a tirar eleitores de Alckmin. o candidato do PSDB tem votos cativos, com forte perfil conservador e que rejeitam HH ainda mais do que a Lula. 


por outro lado, algum percentual dos que votariam em Serra tendem a se transferir para Heloísa Helena. quanto a isto, SP será exceção.

embora as últimas pesquisas mostrem Alckmin e HH mais fortes em faixas semelhantes do eleitorado (aquelas com maior escolaridade e renda familiar), a candidatura do P-SOL só crescerá caso conquiste votos dos indecisos e dos eleitores de Lula.

HH não se caracterizará apenas como a “anti-Lula”, sempre tratando PSDB e PT como sócios de um mesmo modelo responsável pela falta de crescimento econômico e pelo caos social que vive o país. a referência tucana será sempre FHC.

para uma eleição em que a política parecia ter perdido a relevância, a candidatura do P-SOL já prestou um grande serviço à nação, ao fazer com que o Brasil reconsidere os rumos de seu futuro sem a camisa de força do pensamento único.

12 Agosto 2006



a hora da verdade(em 14/12/2002)

pouco importa se na vida de cada um de nós ou se nos processos coletivos, a hora da verdade sempre virá para nos encurralar.

ao ser indicado como futuro Ministro da Casa Civil, Zé Dirceu afirmou que realizava “o sonho de sua geração”. em se tratando de uma geração cujos mais preciosos sonhos viraram pesadelos crônicos, a declaração soa como um péssimo augúrio.

apesar de sua vaidade, tão extensa quanto sua ânsia pelo poder, José Dirceu continua sendo apenas mais um “Zé”. tanto faz se sentado no trono do PT ou em qualquer assento palaciano. um “Zé” saído, como Lula, da lata de lixo da História e membro de uma geração profundamente marcada por um inextinguível desejo de transformar o mundo.

muito mais que resultado de um bem sucedido marketing, a eleição de Lula se deve justo aos motivos pelos quais ele foi por três vezes rejeitado.

após a queda das máscaras, tanto do messiânico “Salvador da Pátria”, cujo único milagre trazido foi seu próprio impeachment, quanto da ilusão de desenvolvimento através da fantasia de estabilidade monetária, evaporada logo no primeiro mês do segundo mandato de FHC, o eleitorado Brasileiro, numa escolha inédita, optou pela mudança ao invés do continuísmo

foi também a primeira vez que o Brasileiro ousou encarar seu rosto no espelho e aceitar-se como é. como nunca deixara de ser. um homem pobre e sofrido, sem raízes e com baixa escolaridade.

então, numa dessas raras e poderosas confluências, o sonho da geração de José Dirceu se tornou o sonho do Brasileiro. circunstâncias especiais como esta tem a peculiaridade de fazerem com que a política deixe de ser meramente a arte do possível e incluem o impossível no rol das possibilidades.

ao reduzir tudo isto ao mero fato de aboletar-se no poder, satisfazendo a uma ambição puramente pessoal, Zé Dirceu nada mais faz que explicitar de forma gritante que é chegada a hora da verdade para Lula e o PT. e não apenas para eles, como também para toda aquela geração da qual eles são parte.

sonhos traídos cobram seu débito rápida e violentamente.

na última vez que isto ocorreu na História recente do Brasil, quando um certo senhor chamava, na frente de milhões de pessoas, por “Diretas Já”, e nas sombras dos bastidores trabalhava por exatamente o contrário, a conta foi paga com a vida, antes mesmo de ser desfrutada uma gota sequer do gosto do poder.

11 Agosto 2006



marca de nascença

não é correto concluir que o problema da candidatura do PSDB é falta de marca. embora este diagnóstico seja equivocado, o raciocínio que a ele conduz não o é.

é difícil não perceber que tem algo de errado com a candidatura do PSDB. aceitar onde está o erro, porém, já se torna bem mais complicado.

o que acaba transparecendo como "falta de marca" não é nada menos que a característica fundamental da candidatura do PSDB: sua marca vem a ser justamente a falta de marca.

não é à toa o candidato ter o carinhoso apelido de "chuchu". ele é só um veículo. entra na receita apenas para realçar o ingrediente principal.

também não é outro o motivo para o candidato se definir, orgulhosamente, como um gerente. não tendo idéias próprias, lhe basta destacar-se na implementação das alheias.

a falta de marca é tão constitutiva da candidatura do PSDB que, em pleno desenrolar da campanha, o candidato ainda não se definiu nem mesmo quanto ao seu nome próprio. não sabe se deve apresentar-se como "Alckmin", como sempre foi conhecido, ou se chegou a hora de assumir o "Geraldo".

isto não quer dizer, de modo algum, que o problema da candidatura do PSDB seja seu candidato. muito pelo contrário, Alckmin se encaixa com perfeição num determinado projeto político.

as classes dominantes Brasileiras jamais tiveram um projeto próprio para o país. é uma marca de nascença. daí não admitirem um estadista na Presidência.

assim como são dependentes e submissas à sua contraparte internacional, preferem um Presidente que se comporte como elas: solícito e obediente. alguém que aceite como virtude a mansa resignação de jamais professar idéias próprias.

10 Agosto 2006


voz do dono
a maior parte dos analistas de mercado costuma apresentar insuperável incapacidade de emitir opinião própria sobre economia.

mesmo quando dotados de inteligência e sensibilidade que não sejam única e exclusivamente voltadas para a gestão de ativos, não conseguem se libertar da monótona repetição de clichês consagrados.

para eles, apresentar como argumentação o que não passa de mera propaganda dos interesses que representam, tornou-se uma espécie de vício.

mesmo quando dão o melhor de si para agregar algo de original em suas declarações, nada produzem além de silêncio ensurdecedor.

estão sempre muito preocupados com a tranqüilidade do mercado, mas não demonstram o menor interesse pelo bem estar geral da população.

tudo o que importa é preservar "as conquistas obtidas na economia nos últimos anos". com efeito, até o próprio Lula confessou recentemente: "Banqueiro não tinha por que estar contra o governo, porque nunca os bancos ganharam tanto dinheiro".

09 Agosto 2006



o Sol no horizonte
após viabilizar sua candidatura e consolidar o patamar de 10% nas intenções de voto, Heloisa Helena inicia, com a bem sucedida entrevista ao Jornal Nacional em 08/08/3006, uma nova fase em sua campanha.

analistas do PSDB tendem a considerar a candidatura do P-SOL como um fator capaz de conduzir as eleições ao 2o turno, e sob este aspecto favorável à estratégia tucana.

entretanto, a leitura das pesquisas indica que PSDB e P-SOL são mais fortes em faixas eleitorais coincidentes: as de maior escolaridade e renda familiar. até o momento, Heloísa Helena tira mais votos de Alckmin do que de Lula.

ao contrário do que supõe a vã sabedoria do PSDB e do PT, a força de Lula nas camadas mais pobres do eleitorado vem muito mais da inércia do que da convicção.

a medida em que se fortalece nos setores formadores de opinião, e a partir do momento que ganha visibilidade para o conjunto da população, Heloísa Helena começará a disputar votos com Lula, fazendo com que a apatia ainda mais uma vez se converta em esperança.

07 Agosto 2006





anti-corvos
numa lúgubre noite de tempestade, quando em seu palácio se desfazia de antigas laudas de uma doutrina abandonada, um homem escuta uma suave batida à sua janela.

ao atender ao chamado do que havia de ser apenas uma visita tardia e nada mais, entram em vôo lento e solene vários corvos, tão feios e escuros como emigrados das trevas infernais.
atônito fica o homem, estremecendo a cada uma das inesperadas palavras, tão exatas e cabidas, proferidas em tom ousado pelas aves agourentas:
“não é este quem confessou fazer na oposição apenas bravatas porque nada mesmo podia então executar ?”
e diz o homem: “nunca mais”.
na alma do homem cravando um olhar implacável, sem pausa nem fadiga, como profetas e demônios exclamam os corvos com horror profundo:
“não é este quem rogou a Deus que, se fosse para repetir seu antecessor, antes lhe fosse tirada a própria vida ?”
e diz o homem: “nunca mais”.
cheio de ânsia e de medo, sente o homem abrindo seu peito as garras tenazes dos corvos a libertarem a mentira e o segredo:
“não é este quem converteu toda a luminosa esperança de uma inteira nação num repugnante acordo entre financistas e famintos, entre os bancos e os grotões ?”
e diz o homem: “nunca mais”.
com medonha frieza de um demônio a sonhar, o bando de corvos se reúne como um vulto em torno do homem, até dele não restar no chão nem mesmo uma sombra, e no regresso à tormenta, onde lá estão ainda à procura de se há bálsamo no mundo, vão repetindo os corvos seus gritos fatais:
“nunca, nunca mais".

06 Agosto 2006




o segredo do Hizbollah
até agora o mais importante êxito do Hizbollah não ocorre exatamente no campo de batalha. sua maior façanha tem sido a capacidade de manter bem guardados seus segredos.

trata-se do primeiro grupo Árabe que Israel ainda não conseguiu infiltrar nenhum agente. a inteligência Israelense depende totalmente de informantes no Líbano.

em julho de 2006, uma rede de espionagem Israelense no Líbano foi desarticulada e cerca de 50 pessoas foram presas.

deficiência de inteligência na preparação das operações no sul do Líbano é um dos motivos reconhecidos pelo IDF para suas dificuldades no confronto. qualidade da camuflagem, alta mobilidade e capacidade de luta do Hizbollah surpreenderam soldados Israelenses. as baixas superam previsões e o moral da tropa declina.

mesmo os blindados Merkava, orgulho da indústria militar Israelense, se mostram surpreendentemente vulneráveis.

seja como for, a capacidade de resistência do Hizbollah se aproxima de seu limite. se isto constitui uma vantagem para Israel, também faz com que o conflito se aproxime de um momento inevitável e de consequências alarmantes.

o aniquilamento do Hizbollah não será testemunhado passivamente pela Síria e muito menos pelo Irã.

05 Agosto 2006



cartas de Palocci
a cada eleição Palocci tira uma carta da manga. muito embora endereçados ao povo, os textos de Ribeirão Preto tem destino certo: a nata do sistema financeiro.

no Ministério da Fazenda, Palocci teve uma atuação inquestionável, exercendo com absoluto brilhantismo seu profundo desconhecimento de economia.

como líder de "uma equipe de excelência e eficiência técnica, totalmente voltada para o interesse público", Palocci levou o país a uma memorável façanha, que só não foi completa porque o Haiti defendeu com êxito o posto de último lugar em crescimento econômico na América Latina, no ano de 2005.

membros da equipe econômica não costumam ter problemas de emprego ao deixar o governo. pelos serviços prestados, logo são recompensados com cargos no alto escalão de bancos e demais empresas do mercado financeiro.

para receberem o prêmio, contudo, mínima capacitação técnica é requerida. no caso de Palocci, para continuar se dedicando à causa dos banqueiros, só lhe resta a via parlamentar.


o espólio de Sharon
fiel a seu estilo truculento e coerente com a estratégia geopolítica de Israel, Sharon tomou de assalto o alto comando do IDF e do Mossad.

a ocupação pelos seguidores de Sharon dos postos chaves nos escalões superiores dos órgãos militares e de segurança Israelenses provocou uma perigosa conseqüência.

a cúpula militar Israelense, reconhecida até pelos mais fanáticos inimigos como de altíssimo nível técnico, adquiriu um perfil monolítico de endosso automático a uma orientação política.

enquanto especialistas militares do Hizbollah e do Irã estudavam meticulosamente as táticas Israelenses, para descobrir como reagir numa provável invasão do sul do Líbano, o exército de Israel não reviu suas doutrinas nos últimos quatro anos.

o resultado é que o Hizbollah, apenas uma milícia sem armamento pesado, tem conseguido um desempenho militar no enfrentamento com Israel superior ao de qualquer exército Árabe no passado.

04 Agosto 2006



coma
a máquina de matar de Israel dá sinais de estar fora de si, como se acometida de um surto psicótico.

analistas militares Israelenses admitem que tanto o Primeiro Ministro quanto o Ministro da Defesa carecem de experiência, e, pior, não dispõe das qualidades necessárias para conduzir uma guerra.

apesar de civil, o Primeiro Ministro Olmert tem especial predileção pela solução militar. talvez isto se explique por ele nunca ter servido numa unidade de combate.

numa demonstração de completa perda de contato com a realidade, parecendo em estado de coma igual a Sharon, Olmert declarou, em 02/08/2006, haver destruído a infra-estrutura do Hizbollah. sua afirmação foi desmentida poucas horas depois por uma barragem de mais de 200 foguetes que caíram sobre o norte de Israel.

03 Agosto 2006



nascido para matar
Haim Ramon, Ministro da Defesa de Israel, declarou na rádio militar do país, em 27/07/2006, que todos no sul do Líbano são terroristas ou estão de algum modo ligados ao Hizbollah. defendeu a punição coletiva da população Libanesa, afirmando que para minimizar as baixas Israelenses nos combates terrestres, a força área tinha que arrasar os povoados antes das tropas avançarem.

o jornal Israelense de maior circulação, o Yedioth Ahronoth, foi ainda mais claro e enfático: “cada cidade de onde foguetes são disparados contra Israel, deve simplesmente ser riscada do mapa."
em 30/07/2006, ocorre o massacre em Qana, dezenas de mortos, a maioria deles mulheres e crianças. Israel alega que o Hizbollah lançara diversos Katyusha das proximidades do prédio, que foi reduzido a escombros.

apesar disto, a edição do Haaretz de 01/08/2006 informa que, segundo fontes da Força Área Israelense, nenhum foguete foi disparado de Qana no dia do massacre.

Israel sempre se justifica com o argumento que os árabes querem destruir o país e que precisa garantir sua sobrevivência. a verdade é que Israel não pode ser destruído por ninguém, com uma única exceção: Israel vai acabar destruindo a si próprio.

cobra na Web
César Maia é uma das cobras a quem Brizola deu asas. como a maioria dos caudilhos, Brizola não foi capaz de fazer um sucessor. os corvos que criou sempre o abandonaram, partindo para longe dele tão logo aprendiam a voar.

o desempenho de César Maia administrador só é comparável a sua prática como motorista. apesar de ser pela terceira vez Prefeito do Rio, há cerca de 15 anos ele não dirige pelas ruas da cidade.

César tem apetite insaciável pelo cargo, mas demonstra escasso interesse no exercício do mesmo.

do mesmo modo que delega a direção do veículo que o transporta, em vez de dirigir a cidade, ocupa o tempo livre para se dedicar a seu passatempo predileto: blogs e ex-blogs na Web.

embora todos reconheçam a influência da Web, políticos tradicionais tendem a utilizá-la de forma convencional, como se ela fosse tão somente uma extensão dos outros meios de comunicação. a Web, porém, tem características próprias que exigem uso inovador. e César Maia é um dos poucos políticos que já compreendeu isto.

02 Agosto 2006



na onda HH
HH atrai não apenas os vários tipos de descontentamentos com o PT. alguns daqueles que teriam em Serra uma alternativa coerente para Lula, tendem para a candidata do P-SOL. esta migração é menos provável em SP que no resto do pais. no Rio será quase um movimento espontâneo, independendo de marketing e estratégias. o PSDB terá todo o longo caminho até 2010 para tentar descobrir se cometeu algum erro...

após se viabilizar na mídia, a candidatura de Heloisa Helena está num estágio de transição. é mais importante consolidar o patamar dos 10% que prosseguir crescendo para logo adiante despencar de vez. de nada valerá ser apenas mais uma onda eleitoral que passou tão rápido quanto subiu.

grave ponto contrário a HH é seu discurso raivoso e ressentido. mesmo dando mostras de já estar consciente que pode acabar tropeçando na própria língua, ainda não encontrou o tom e o momento certo para baixar a macaca e desembainhar a peixeira.

prá chuchu
em janeiro de 2006, as pesquisas apontavam Serra com o dobro das intenções de votos de Alckmin. apesar disto, o PSDB preferiu quem tinha só a metade.

talvez tenha sido uma escolha ousada, olhando do ponto de vista de abrir o rumo para 2010. ou um criativo lance do xadrez político, a fim de projetar nacionalmente um candidato fadado a ser competitivo apenas em SP...

enquanto as delicadezas do xadrez político e as ambições pessoais se sobrepõe aos interesses da nação, o caminho até 2010 tropeça nas exigências inadiáveis do presente: o PCC toma SP de assalto e dispara rajadas de metralhadora nas belas vitrines oferecendo modelos de gestão.

o país precisa de posições políticas claras e definidas e não um candidato a gerente, reconhecido por não professar idéias próprias na área econômica e elogiado por estar mais aberto à influência das maiorias.

os donos do poder no Brasil consideram independência como vulnerabilidade e discurso desenvolvimentista como fator de risco.

PSDB e PT sofrem do mesmo mal: a perda da identidade própria e rendição incondicional aos lances delicados do xadrez político. em sua origem histórica, o eleitorado tucano nunca foi conservador. hoje o PSDB disputa espaço com o PFL.

01 Agosto 2006


a arma secreta
por mais que sobrem motivos
jamais faça aquilo que os falcões e hienas Israelenses querem
aquilo que os Sionistas tão bem sabem insuflar e manipular
jamais lhes dê o que tanto desejam
o alimento sem o qual não sobreviverão
por mais mais difícil que seja

JAMAIS ODEIE UM JUDEU

jamais confunda Israel e os sionista com os Judeus em particular
esta é a arma secreta dos sionistas
é assim que eles mantém e justificam o mito do “anti-semitismo”

por mais paradoxal que seja

JAMAIS ODEIE UM JUDEU

mesmo porque
os que merecem ser odiados
já o fazem por si próprios

Ariel Sharondeclarações após o massacre dos Palestinos no Líbano em 1982
17/12/1982

“Chame Israel por qualquer nome que vocês quiserem, chamem-no um estado Judeu-Nazista, como fez Liebowitz. Por quê não ? Melhor um Judeu-Nazista vivo que um santo morto...”

“A História nos ensina que aquele que não matar será morto pelos demais. Esta é uma lei de ferro...”

“E sabem porque tudo isto vale a pena ? Porque parece que esta guerra nos fez mais impopulares entre o assim chamado mundo civilizado. Nós não mais ouviremos aquele nonsense acerca do caráter único da moralidade Judaica, as lições morais do Holocausto ou que os Judeus deveriam emergir puros e virtuosos da câmaras de gás ...”

“Talvez o mundo então comece a me temer, ao invés de ter pena de mim. Talvez eles comecem a tremer, ao temer minha loucura ao invés de admirar minha nobreza.”

“Obrigado, Senhor por tudo isto. Deixe-os chamar-nos um estado louco. Deixe-os compreender que nós somos uma país selvagem, perigoso para nossos vizinhos, não normal, quer nós podemos enlouquecer se um de nossos filhos é morto – apenas um ! Que nós podemos perder o controle e incendiar todos os campos de petróleo no Oriente Médio !”

“Deixe-os estar cientes em Washington, em Moscou, em Damasco, e China que se um de nossos embaixadores for alvejado, ou mesmo um cônsul ou o menos graduado funcionário de nossas embaixadas, nós podemos iniciar a Terceira Guerra Mundial num estalar de dedos.”


a terra dos filhos de Jacó

“Naquele dia, fez o Senhor aliança com Abraão, dizendo : Eu darei à tua descendência esta terra, desde o rio do Egito [ o rio Wadi El-Arish, não o rio Nilo ], até o grande rio Eufrates.”
Gênesis 13:18

“Não te chamarão mais Jacó, mas teu nome será Israel.”
“Dar-te-ei a ti à tua posteridade depois de ti a terra que dei a Abraão e a Isaac.”
Gênesis 35:10,12

“Eis virão dias, diz o Senhor, em que eu farei nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá; não como a aliança que eu fiz com seus pais no dia em que eu os tomei pela mão, para os tirar da terra do Egito, aliança que eles violaram; e por isso fiz sentir sobre eles o meu poder, diz o Senhor.”
Jeremias 31:31,32

“Que diremos pois ? Que os Gentios, que não seguiam a justiça, abraçaram a justiça, aquela justiça que vem da fé. Mas Israel, que seguia a lei da justiça, não chegou à lei da justiça. Por que causa ? Porque procurou atingi-la não pela fé, mas, como que se lhes fosse possível, pelas obras: porque tropeçaram na pedra de tropeço, conforme está escrito : Eis que eu ponho em Sião uma pedra de tropeço, e uma pedra de escândalo; e todo aquele que crê nela, não será confundido.”
Romanos 9:30,33

a Aliança de “D-us” não foi com a carne e sim com o espírito. 

insistir na primazia dos descendentes de Isaac, é não ter compreendido Moisés. 
o Patriarca de toda a humanidade nos ensinou a nunca mais adorarmos “bezerros de ouro”. 
Moisés, o homem que via Deus face a face, e justo por isto nos mostrou que Deus não tem forma.
o sangue e a terra são matéria, são “bezerros de ouro”.


“A única coisa necessária é encontrar um oficial, mesmo que apenas um major. Nós poderíamos convencê-lo de fato, ou suborná-lo, para faze-lo concordar em se declarar como o salvador da população Maronita [ Líbano ]. Então o exército israelense invadiria o Líbano, ocupando o território necessário, e criando um regime cristão, que se aliará com Israel. O território ao sul de Litani será totalmente anexado a Israel, e tudo ficará certo. “

“Muita ansiedade terá que ser gerada... As vidas de vítimas Judias também tem que ser sacrificadas para criar provocações justificando represálias subsequentes...”

Moshe Dayan
1955

“Israel ou Morte”
em novembro de 1940, o navio “Patria”, com cerca de 3.500 refugiados Judeus vindos da Europa, permanecia ancorado em Haifa enquanto a Inglaterra bloqueava o desembarque dos imigrantes, pretendendo transferi-los para uma ilha no Oceano Índico.


antes que o impasse fosse resolvido, o “Patria” sofreu uma explosão e afundou, no que por muitos anos se acreditou ter sido uma sabotagem inglesa.

pesquisas efetuadas por Sabbattai Beit-Tsvi, Judeu Russo que se dedicou ao estudo dos arquivos da agência Judaica em Tel Aviv, descobriu que o responsável pelo naufrágio do “Patria” foi o Haganah, organização clandestina que deu origem ao exército Israelense.

decidido a impedir a todo custo a transferência dos refugiados, o Haganah colocou uma mina no navio, o que foi proposto por Shaul Avigur, mais tarde comandante do serviço secreto de Israel.

o slogan “Israel ou Morte”, proferido por Ben Gurion, foi levado às últimas conseqüências e o “Patria” afundou às 9:00 h da manhã de 25/11/1940, matando 250 pessoas.

não foi a única vez em que os Sionistas não deixavam outra opção aos Judeus Europeus do que imigrar para a Palestina.


o avesso do avesso do avesso
para a maciça maioria dos Judeus, Israel é visto como uma nação amante da paz e cercada de países Árabes que jamais renunciaram a “empurrar os Judeus para o mar”. a idéia que este minúsculo Estado tenha pretensões expansionistas soa como um ultraje.

entretanto, Moshe Sharett, que foi Ministro de Relações Exteriores Israelense, entre 1948 e 1956, reconheceu em seu diário pessoal que a imagem de vulnerabilidade de Israel era um artifício :

“Não enfrentaremos nenhum perigo de uma superioridade Árabe pelos próximos 8 a 10 anos.“
Ele deixa claro como Israel sempre se valeu da fraude e da manipulação :

“Em direção aos nossos fins, podemos, ou melhor, devemos inventar perigos, e para fazer isto devemos adotar o método de provocação e vingança.”

Sharret explicita a real intenção Sionista:

“Desmembrar o mundo Árabe, derrotar os movimentos nacionalistas Árabes e criar regimes fantoches sob o poder regional Israelense”.
para compreender a base histórica da qual se ergue o país chamado Israel, é necessário virá-la pelo avesso do avesso do avesso.

o Sionismo na Alemanha Nazista
em maio de 1935, Reinhardt Heydrich, chefe da SS, escreveu um artigo no qual ele separava os Judeus em “duas categorias”, declarando seu apoio aos Sionistas: 


“Não está distante o tempo em que a Palestina novamente será capaz de aceitar seus filhos que dela se perderam por milhares de anos. Nossos bons votos junto com nossa oficial boa vontade irão para eles.”

na Alemanha Nazista em 1935, as duas únicas bandeiras políticas permitidas eram a Suástica e o estandarte azul e branco Sionista, cujo movimento era apoiado pelos Nazistas porque nele identificavam uma coincidência de interesses: remover todos os Judeus da Alemanha.



é conversa de anti-Semita
Chaim Weizmann, que foi o primeiro Presidente de Israel, se refere numa carta de 1914 a uma importante conversa que teve com o Lorde Balfour. este confidenciou-lhe que compartilhava com muitas das idéias anti-Semitas. Weizmann lhe fez ver que os Sionistas também estavam de acordo com o anti-Semitismo cultural.

em bom português, foi algo como se Balfour agradecesse a Weizmann por lhe confirmar a correção de seu anti-Semitismo.

analisar o processo da criação do Estado de Israel faz emergir uma verdade que é mais estranha do que qualquer ficção.

caso o objetivo do Movimento Sionista fosse genuinamente estabelecer um país para os Judeus, baseado em princípios de Justiça e Igualdade entre os Povos, é óbvio que a História não teria sido a mesma.

a não ser, é claro, se acreditarmos que, por definição, a Humanidade e o Mundo são anti-Semitas.


um mundo anti-Semita
o sempre polêmico e execrado “Os Protocolos dos Sábios do Sião” é tido como um dos mais sórdidos panfletos anti-Semita já escritos. de fato, foi utilizado com este fim pelo próprio Hitler. uma das autorias admitidas para o texto seria a polícia secreta do Czar Nicolau II, no raiar do séc. XX.

embora muitos sempre se refiram ao livro, poucos foram aqueles que o chegaram a ler. quem o faz se depara com um trecho curioso:

“O anti-semitismo é indispensável para nós a fim de manipularmos os nossos irmãos inferiores.”
desde a infância muitos dos Judeus aprendem que o mundo é anti-Semita. o trauma advindo do sentimento que a sobrevivência está sob permanente ameaça é uma das mais eficazes técnicas de controle mental.

anti-Semitismo entendido como uma pregação contra os Judeus deve ser tão combatido quanto qualquer outro discurso que semeie o ódio e a discriminação.

contudo, a bem fundamentada oposição a política Israelense não implica em nenhuma “ameaça” aos Judeus e não se encaixa neste caso.

o mesmo não se pode dizer do Sionismo, que, desde bem antes do Nazismo e do Holocausto, planejou e promoveu uma migração que tem infligido um enorme sofrimento a uma população que nunca havia feito o menor mal aos Judeus. a partir de então, a Palestina se povoou com o ódio e a discriminação.

talvez a maior prova da sabedoria de determinados anciões do Sião, e alhures, seja fazer crer a muitos que dominar o mundo é o objetivo de uma conspiração de Judeus, enquanto convencem a estes que vivem num mundo definitivamente anti-Semita.


mais brilhante que o céu de Bagdá
nos momentos que antecederam o primeiro teste nuclear, em 19/07/1945, havia grande nervosismo entre os cientistas do Projeto Manhattan. eles não estavam totalmente certos que a reação em cadeia não se propagaria por todo o planeta, destruindo-o. mesmo assim, acharam que valia a pena arriscar...

o arsenal nuclear Israelense é estimado em até 500 artefatos. em junho de 2000, um submarino Israelense efetuou um bem sucedido lançamento de um míssil com alcance de 1.800 km. presume-se que Israel possua 3 destes submarinos, cada um carregando 4 mísseis. em maio de 2002, um dos mais modernos satélites espiões da atualidade, o Ofek-5, foi colocado em órbita por Israel através do foguete Shavit, que, com alcance de 7.200 km, pode ser usado como um ICBM.

Israel é hoje considerado a terceira potência nuclear do mundo, suplantado apenas por EUA e Rússia.

evidente que tão grande e diversificado arsenal é muito maior que o necessário para uma política de “dissuasão”.

apesar disto, Israel alega que tamanho poderio se trata de “um último recurso”, a ser utilizado apenas num caso extremo para evitar sua aniquilação.

o cientista Israel Shahak, sobrevivente do Gueto de Varsóvia e de dois campos de concentração, chega a outra conclusão em seu livro “Open Secrets: Israel's Nuclear and Foreign Policie” :

“O desejo de paz, tão assumido como o objetivo Israelense, não é em minha visão um princípio da política Israelense, enquanto que o desejo de ampliar a dominação e influência Israelense é.”
“Israel claramente se prepara de modo premeditado para buscar uma hegemonia sobre todo o Oriente Médio ... , sem hesitar em se valer para este propósito de todos os meios disponíveis, inclusive os nucleares.”

junto com a primeira arma nuclear, explodiu também qualquer limite para o risco que a classe dirigente internacional está disposta a aceitar para perpetuar sua hegemonia, pouco importando se isto ameace a sobrevivência da própria espécie humana.

04 Abril 2006


hamlet
insurrecto
arkx

Hamlet insurrecto
Ato 1
O Rei e o Espectro


"Em cada época marcante de sua história, a sociedade brasileira tem sido levada a pensar-se novamente. É como ela se debruçasse sobre si mesma: curiosa, inquieta, atônita, imaginosa. Não só se formulam novas interpretações como se renovam as anteriores.

Acontece que o presente problemático, difícil ou inovador, desafia o entendimento da sociedade, as explicações conhecidas.

As forças sociais predominantes em cada época são levadas a pensar os desafios com os quais se defrontam, os objetivos que pretendem alcançar, os aliados e opositores com os quais negociar, os interesses próprios e alheios que precisam interpretar. Ao pensar o presente, são obrigadas a repensar o passado, buscar e rebuscar continuidades, rupturas e inovações. Mesmo quando pretendem o futuro, são postas a pensar outra vez o passado, acomodá-lo ao presente, ou até mesmo transformá-lo em matriz do devir" 
[1]


Rei : “Um fantasma ronda o meu reino.” 
[2]
“Assombra permanentemente o castelo, ameaçando o trono e a coroa. Como um teimoso, sempre volta mais uma vez, resistindo a todos os golpes perpetrados contra ele.” [3]

Espectro : Ouve-me !

Rei : Eu sou o Rei morto. Como mortos deveriam estar todos os reis.

Espectro : Ouve-me !

Rei : Eu sou o Rei posto. Como postos estão todos os reis.

Espectro : Pela terceira vez: ouve-me !

Rei : Escuta, escuta ! Oh, Escuta !
“Assassinato infame, como sempre é; mas este é o mais infame, horrendo e monstruoso.
Oh ! Maldito engenho e pérfidas dádivas que possuem tal poder de sedução !
Disseram que estando dormindo em meu jardim, fui mordido por uma serpente; deste modo todos foram grosseiramente enganados com esta fabulosa história de meu falecimento.
A serpente que me tirou a vida, usa agora a coroa que me pertencia.” 
[4]

Espectro : “Oh ! Infâmia ! Detém-te, detém-te, meu coração.” 
[5]
Qual o maior crime: destronar ou coroar um Rei.
“Nos livros vem o nome dos reis, mas foram os reis que transportaram as pedras ?
Quem ergueu os arcos de triunfo ?
Em cada página uma vitória. E quem pagava as despesas ?
E ninguém mais ?” 
[6]

Rei : Hamlet ! Hamlet ! Algum dia todo esse reino será seu.
“Vinga-me o torpe assassinato !
Não permitas que o leito real seja boda de incesto e luxúria.”
Hamlet ! Hamlet !
“Num só golpe sinistro derruba ferozmente tantos príncipes.
Atos sanguinários, julgamentos precipitados, mortes fortuitas, pela astúcia ou pela violência. Erros e intrigas trazendo desgraças. Vinga-me, Hamlet, o torpe assassinato !” 
[7]
“Um reino por um assassino.” [8]
“Sejam de sangue seus pensamentos, ou só mereçam o esquecimento !” [9]
Hamlet !
Banhe de sangue o castelo.
“Escave o solo uns palmos mais abaixo, fazendo numa mesma estrada chocar-se um ardil contra outro ardil.” 
[10]
Então, mate Polônio. Enlouqueça Ofélia e a arraste ao suicídio. Faça com que a Rainha brinde da taça envenenada. E Laerte caia morto na própria armadilha. Mate o Rei assassino com o veneno que ele mesmo preparou. Então completa sua obra. Morra, Hamlet ! Morra ! Desgraças, infortúnio, tragédia ! Morra,Hamlet !
Fortimbrás herdará o reino e minha vingança será completa !
“Adue, adue, Hamlet. Lembra-te de mim.” 
[11]

Espectro : Reis sucedem reis, perpetuando a dinastia de infâmia e horrores.
“Há algo de podre no reino da Dinamarca” 
[12]
Os Reis se alimentam da vingança e da tragédia.
“O Rei morreu ! Morram todos os Reis!” 
[13]
Eu era o Espectro.
“Atrás de mim, as ruínas da esperança.” 
[14]
Eu não sou o Espectro.
“Eu não interpreto mais nenhum papel.
Eu não sou mais um ator.
A esperança não se cumpriu. Três anos depois...” 
[15]
Eu sou o espírito daquilo que foi traído. E a vingança não me seduz. Tenho sede e fome de justiça.
Eu dormia eternamente deitado em meu berço esplêndido.
“Foi durante o meu sono, pela mão de um irmão, que perdi ao mesmo tempo a vida, a coroa, a rainha.” 
[16]
Sobre o meu caixão se casaram Casa Grande e a Senzala; em meu túmulo copulam os bancos e as favelas.
“Algo está podre nesta época de esperança.” 
[17]
A tragédia histórica de transformar em farsa o que foi escrito com sangue nas estrelas.
“Sonhos roubados convertidos em pesadelo. Esperança em medo. Haverá um futuro ? O futuro precisa de nós ? Isso é o que nós somos, o fim e o começo.” 
[18]
“Tudo é incerto e derradeiro. Tudo é disperso, nada é inteiro. Hamlet, hoje és nevoeiro... A hora é agora.” 
[19]
“Nada a perder, senão os grilhões. E um mundo a ganhar.” [20]

Rei : “Jurai ! Jurai !” 
[21]

Espectro : Jurai ?
“Sabemos o que somos ? Sabemos o que poderemos ser?” 
[22]
“Esta é a mais terrível de nossas heranças. Somos carne da carne de escravos e de senhores de escravos.” [23]
Jurai ?
“Oh ! Vingança ! Que estúpido sou eu !” 
[24]
"Em nenhum momento tão grande foi a distância entre o que somos e o que esperávamos ser." [25]
Jurai ?
“Uma promessa sem fé em si mesma, sem fé no povo, rosnando para os de cima, tremendo diante dos de baixo, egoísta em relação aos dois lados e consciente de seu egoísmo, revolucionária contra os conservadores, conservadora contra os revolucionários; desconfiada de suas próprias palavras de ordem, frases em lugar de idéias, intimidada pela tempestade mundial, mas dela desfrutando – sem energia, em nenhum sentido, plagiaria em todos os sentidos, vulgar porque não era original e original na vulgaridade – traficando com seus próprios desejos...” 
[26]
Eu sou o espírito daquilo que foi traído. E a vingança não me seduz. Tenho sede e fome de justiça.
Eu sou a mais vil traição. Eu sou a esperança de um povo reduzida a mentira e ao segredo.
“O mundo está fora dos eixos. Maldita sorte ! Haverá já nascido algum Hamlet para colocá-lo em ordem ?” 
[27]

[1] “A idéia de Brasil moderno”, Octávio Ianni[2] “Manifesto do Partido Comunista”, Karl Marx e Friedrich Engels[3] “Um mundo a ganhar, Wladimir Pomar[4] “Hamlet”, Shakespeare – fala do Espectro[5] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet[6] “Perguntas de um operário que lê”, Bertold Brecht[7] “Hamlet”, Shakespeare – fala do Espectro[8] “HamletMaschine”, Heiner Müller[9] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet[10] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet[11] “Hamlet”, Shakespeare – fala do Espectro[12] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Marcelo[13] “Isso é o que nós somos, companheiro”, arkx[14] “HamletMaschine”, Heiner Müller[15] “HamletMaschine”, Heiner Müller[16] “Hamlet”, Shakespeare – fala do Espectro[17] “HamletMaschine”, Heiner Müller[18] “Isso é o que nós somos, companheiro”, arkx[19] “Mensagem”, Fernando Pessoa[20] “Manifesto do Partido Comunista”, Karl Marx e Friedrich Engels[21] “Hamlet”, Shakespeare – fala do Espectro[22] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Ofélia[23] “O Povo Brasileiro”, Darcy Ribeiro[24] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet[25] “A Busca de Novo Horizonte Utópico ”, Celso Futado[26] “A Burguesia e a Contra-Revolução, , Karl Marx[27] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet

Hamlet insurrecto

Ato 2
Ser ou não ser Hamlet


“Estamos condenados à civilização.
Ou progredimos, ou desaparecemos.” 
[1]

Hamlet : “A questão de todas as questões: ser ou não ser. Que é mais nobre para a alma: sofrer os dardos de um destino cruel, ou pegar em armas contra um mar de calamidades e contra elas lutar até dar-lhes fim.” [2]

(O Espectro vaga pelo palco, delira a história do Brasil)

Espectro : “Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, a mim mesmo, para defender o povo que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre convosco. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história.” 
[3]

Hamlet : “Morrer... dormir; nada mais ! Morrer... dormir ! ... Talvez sonhar ! Sim, eis a dificuldade !” 
[4]

Espectro : “Esqueçam ! Esqueçam tudo o que escrevi...” 
[5]
“Não me deixem só !” [6]
“Forças terríveis levantam-se contra mim e me intrigam ou infamam, até com a desculpa de colaboração. A mim não falta a coragem da renúncia.” [7] 
“Laços fora ! Independência ou morte !” 
[8]
“Antes que algum aventureiro lance mão.” [9]

Hamlet : “Todos os acontecimentos me acusam, impelindo-me à minha triste vingança! Que papel, então, estou fazendo. Por quê deixo que tudo durma em paz ?” 
[10]

Espectro : “Longe vá... temor servil. Os grilhões que nos forjava da perfídia astuto ardil. Não temais ímpias falanges que apresentam face hostil. Vossos peitos, vossos braços. Já com garbo varonil.” 
[11]

Hamlet : “Algum tímido escrúpulo de pensar nas consequências com excessiva minúcia (reflexão esta que de quatro partes tem uma só de prudência e sempre três de covardia), não compreendo porque vivo ainda para dizer: ‘Isto ainda está por fazer’, visto que tenho motivo, vontade, força e meios para fazê-lo.” 
[12]

Espectro : “Há outro caminho possível.” 
[13]
“Mudei de idéia, sim. E daí ?” [14]
“Para fazer o mesmo que o meu antecessor, eu prefiro antes Deus me tirar a vida.” 
[15]
“Eu não mudei. É a vida que muda.” [16]

Hamlet : “E é assim que a consciência nos transforma em covardes, é assim que a força inicial de nossas resoluções se debilita na pálida sombra do pensamento e é assim que as empreitadas de maior alento e importância deixam de ter o nome de ação.” 
[17]

Espectro : “Como repousar meu coração inquieto, se mais uma vez sucumbimos por não sermos capazes de sonhar o bastante.” 
[18] 
Se não dissipamos a névoa da ilusão de uma manhã gloriosa, quando, enfim, vindo da terceira margem do rio, retornará um Rei que nunca tivemos ?
“Se toda a realidade é um excesso, uma violência, uma alucinação extraordinariamente nítida, que vivemos todos em comum com a fúria das almas.” 
[19]

Hamlet : “Estamos agora exatamente na hora dos feitiços noturnos, quando os cemitérios bocejam e o próprio inferno solta seu sopro pestilento sobre o mundo ! Seria, agora, bem capaz de beber sangue quente e fazer tais horrores que o dia ficaria trêmulo só de contemplá-los !” 
[20]

Espectro : “Não te esqueças.” 
[21]
“Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não escolhem as circunstâncias, que são o legado do passado.” [22]

Hamlet : Questões e mais questões que me esmagam sob o peso da dúvida, da incerteza, da indecisão...
Devo me entregar de corpo e alma ao mar de sangue da vingança ?
Ou aceitar a mansa resignação do pacto palaciano ?
Mais vale se desfazer dos escrúpulos e conservar o reino; ou não abrir mão dos princípios e junto com o reino perder a própria vida ?
Qual o caminho da justiça ?
“Maldita sorte ! Como recolocar em ordem um mundo fora dos eixos ?” 
[23]

Espectro : “Não te esqueças. Não te esqueças.” 
[24]



[1] ”Os Sertões”, Euclides da Cunha[2] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet[3] “Carta Testamento”, Getúlio Vargas[4] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet[5] Fernando Henrique Cardoso[6] Fernando Collor, 22/06/1992[7] Jânio Quadros, 25/08/1961[8] D.Pedro I,07/09/1822[9] D. João VI[10] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet[11] “Hino da Independência”, música: D.Pedro I, letra: Evaristo da Veiga[12] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet[13] “Carta ao povo brasileiro”, Luiz Inácio Lula da Silva, 22/06/2002[14] José Dirceu, 05/2003[15] Luiz Inácio Lula da Silva, 09/2002[16] Luiz Inácio Lula da Silva, 05/2003[17] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet[18] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet; “O Marinheiro”, Fernando Pessoa[19] “Afinal”, Álvaro de Campos[20] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet[21] “Hamlet”, Shakespeare[22] “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, Karl Marx[23] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet[24] “Hamlet”, Shakespeare

Hamlet insurrecto

Ato 3
Polônio e a utopia do possível
 
[1]

“A modernização, pelo seu toque voluntário, senão voluntarista, chega à sociedade por meio de um grupo condutor, que, privilegiando-se, privilegia os setores dominantes.


A modernização, quer se chame industrialização, revolução passiva, via prussiana, revolução do alto – ela é uma só, com um vulto histórico, com muitas máscaras, tantas quantas as das diferentes situações históricas. 

A história que daí resulta será uma crônica de déspotas, de elites, de castas, nunca a história que realiza, aperfeiçoa e desenvolve. A história, assim fossilizada, é um cemitério de projetos, de ilusões e de espectros. O povo, por esse meio, não participa da mudança: ele a padece.


Desta vez, os espectros vagam nas ruas,sem emprego, miseráveis, depois de, perdendo tudo, perderem a esperança.” [2]


Hamlet : “Olha, Polônio. Um fantasma assombra o país. Tremem à presença dele e para conjurá-lo se unem.” [3]

Polônio : “Não vejo nada; todavia estou vendo tudo quanto nos cerca.” 
[4]

Hamlet : “Como ! Olhai para ele ! Vede seu pálido cintilar ! Sua presença e sua causa, juntas, pregando para as pedras, chegariam a comovê-las !” 
[5]

Polônio : “É pura invenção de teu espírito. O delírio é muito hábil nessas quiméricas invenções.” 
[6]

Hamlet : “Delírio ? Se fosse loucura, fugiria aos pulos...
Não derrameis sobre vossa alma a unção lisonjeadora de acreditar que não é vosso delito que fala, mas minha demência.
Nestes tempos, a própria virtude tem de pedir perdão ao vício e ainda deve prostrar-se a seus pés, implorando-lhe permissão para fazer-lhe o bem.” 
[7]

Polônio : “Grande verdade dizes, meu senhor.” 
[8]

Hamlet : “Estais vendo ali aquela nuvem, que tem a forma de um vaidoso pássaro ? Olhai que bico excelso ! ” 
[9]
“De que espécie de bom camarada será membro ?” [10]

Polônio : “Dos Brasis, não é ? Bela plumagem e carne ruim.” 
[11]

Hamlet : “Sim, tão estranho e feioso que parece uma mistura de pato com réptil.” 
[12]

Polônio : “É verdade ! Que combinações esdrúxulas ! Uma espécie de aberração! Uma nova classe ! Truncada e sem remissão...” 
[13]

Hamlet : Não seria um sapo ?

Polônio : “Pelos céus ! E tem barbas ! Como o vamos engolir ?” 
[14]

Hamlet : Não se ocupe disto. É ele quem vai nos deglutir, sugando nossos sonhos pela sua cloaca imunda. Com a voracidade de um buraco negro, arrasta toda esperança para o coração das trevas.

Polônio : “Que estranha borboleta !
No apogeu da juventude,
protagoniza seu ocaso,
voltando ao casulo
para morrer como lagarta...” 
[15]

Hamlet : Mas, por falar em animais, aqui estou vendo um rato ? 
[16]
“Ou é uma criança grande com fraldas ?” [17]

(Hamlet aponta para Polônio)

Polônio : “Será que me conheceis, senhor ?”

Hamlet : “Perfeitamente bem. És quem vende peixes.”

Polônio : “Não eu, meu senhor.”

Hamlet : “Mesmo o Sol que é um deus, se beija cadáver putrefato, gera larva num cão morto...” 
[18]
Não devias estar na ceia ? [19]

Polônio : Na ceia ?! Onde ?

Hamlet : “Sim. Na ceia. Mas não ceando. Estás melhor sendo comido. Um homem pode pescar com o verme que se alimentou de um rei e comer o peixe que se nutriu daquele verme.” 
[20]

Polônio : “Que queres dizer com isto ?”

Hamlet : “Nada; simplesmente mostrar-vos como um rei pode circular pelas tripas de um mendigo.” 
[21]
Posto isto, caro conselheiro, muito cuidado... Não nos deixemos inocular pela mosca azul...

(Hamlet pega um livro e começa a ler)
Polônio : “Que estás lendo, meu senhor ?”

Hamlet : “Palavras, nada mais que palavras...”

Polônio : “Quero dizer: qual o assunto que estais lendo, meu senhor ?” 
[22]

(Hamlet lê em voz alta)

Hamlet : “De repente, dei-me conta de que navegávamos para oeste, quando todos os planos orientavam-nos a leste. Não me restava alternativa: prosseguir no barco ou atirar-me no rio. Livrei-me da roupa e da bagagem e, abraçado a um cacho de valores, mergulhei. Nadei até a terceira margem do rio, esgueirei-me das piranhas e dos jacarés em busca de mim mesmo.” 
[23]

(Hamlet volta-se para Polônio)

Hamlet : Falamos tanto de bichos, que até poderíamos fazer uma revolução...

Polônio : Não me agrada em nada a idéia, meu senhor. Revoluções são muito perigosas. É sempre preferível uma modernização que conserve o acordo das elites. 
[24]

Hamlet : “Então, astuto conselheiro real, cujas intrigas tem a pretensão de enganar até a Deus, estás ou não convencido haver entre o céu e a terra mais coisas do que sonha tua vã filosofia ?” 
[25]

Polônio : “Meu nobre príncipe, dadas as circunstâncias, é meu conselho lidar com o mal menor enquanto o bem maior se mostra inalcançável.” 
[26]

Hamlet : “É terrível que o homem se resigne tão facilmente com o existente, não só com as dores alheias, mas também com as suas próprias.” 
[27]

Polônio : “Fôssemos infinitos, tudo mudaria. Como somos finitos, muito permanece.” 
[28]

Hamlet : Como saber se um rei é justo ?

Polônio : Se doa esmolas aos pobres e distribui juros aos ricos.

Hamlet : “Pelo que vejo, fazeis o possível com vossa arte...” 
[29]

Polônio : “Sem dúvidas, meu senhor. Minhas utopias são todas realistas.” 
[30]

Hamlet : “Que fizeste à Fortuna para que ela vos enviasse para esta prisão ?”

Polônio : “Prisão, meu senhor ?”

Hamlet : “Este país é uma prisão...”

Polônio : “Neste caso, o mundo também é.”

Hamlet : “Uma enorme prisão, na qual existem muitas celas, masmorras e calabouços. E este país é um dos piores.”

Polônio : “Não penso assim, meu senhor.” 
[31]

Hamlet : “Um satírico maledicente diria que os velhos têm a barba grisalha, a pele enrugada, com olhos que purgam espesso âmbar, que são cheios de ausência de espírito, juntamente com fraquíssimas nádegas. Calúnia ! Não o penso assim nestes termos, porque mesmo vós, tão velho quanto eu ficaríeis, caso pudésseis andar para trás como um caranguejo.” 
[32]

(Hamlet muda subitamente de assunto)
Hamlet : “Não tendes uma filha ?” 
[33]




[1] Fernando Henrique Cardoso, 2002[2] ”A questão nacional: a modernização”, Raymundo Faoro[3] “Manifesto do Partido Comunista”, Karl Marx e Friedrich Engels[4] “Hamlet”, Shakespeare – fala da Rainha[5] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet[6] “Hamlet”, Shakespeare – fala da Rainha[7] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet[8] “Hamlet”, Shakespeare[9] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet[10] “O Vigarista”, Herman Melville, acerca do tucano[11] “O Vigarista”, Herman Melville, acerca do tucano[12] “O Ornitorrinco”, Francisco de Oliveira[13] “O Ornitorrinco”, Francisco de Oliveira[14] Leonel Brizola, 1989[15] “PT viveu como borboleta, mas morre como lagarta”, Josias de Souza[16] “Hamlet”, Shakespeare – morte de Polônio[17] “Hamlet”, Shakespeare[18] “Hamlet”, Shakespeare[19] “Hamlet”, Shakespeare – sobre Polônio[20] “Hamlet”, Shakespeare[21] “Hamlet”, Shakespeare[22] “Hamlet”, Shakespeare[23] “A moca azul”, Frei Betto[24] ”A questão nacional: a modernização”, Raymundo Faoro[25] “Hamlet”, Shakespeare[26] “Hamlet. Eis a questão”, Reinaldo Azevedo[27] “A esperança do mundo”, Brecht[28] “Se fôssemos infinitos”, Brecht[29] “A política é a arte do possível”, Bismarck[30] “A idéia da revolução democrática”, Tarso Genro[31] “Hamlet”, Shakespeare[32] “Hamlet”, Shakespeare[33] “Hamlet”, Shakespeare

Hamlet insurrecto

Ato 4
Ofélia assassina


“Como se pode acreditar em reconstrução da sociedade após um século de derrocada das utopias? O mundo assiste à vitória do conformismo, travestido de realismo.


A esquerda atua e fala como se escondesse um plano que não tem. Temerosa da reação econômica a qualquer iniciativa transformadora, esforça-se para parecer confiável aos que manejam o dinheiro.

É também por falta de confiança e de clareza a respeito de outro rumo que os progressistas se entregam.

A obra do pensamento é compreender o mundo e mudá-lo. A primeira tarefa de um homem, porém, é não morrer aos poucos: viver de tal maneira que possa morrer de uma vez só. O preço da vitalidade é a renúncia às defesas com que nos protegemos contra a desilusão e a derrota. Quem pagar esse preço pagará pouco por muito.” [1]


(Hamlet sentado com um crânio nas mãos)
Hamlet : “Eu quero ser uma mulher.” 
[2]
Não para ter uma buceta. Eu não quero deixar de ser homem para ser uma mulher. Eu quero ter um útero. Com o órgão que as mulheres geram pessoas, serei capaz de parir sonhos.

Ofélia : “Eu sou Ofélia.” 
[3]
Aquela que é cortejada e igualmente desprezada pelos homens, conforme seus desejos e seus interesses. Meu destino é deixar-me conduzir pela mão traiçoeira de um Rei assassino para me tornar a Rainha incestuosa.
“Ao voltar meus olhos para o fundo de minha alma, somente enxergarei manchas, tão negras e tão profundas que nunca poderão ser apagadas.” 
[4]

(Hamlet caminha em direção a Ofélia)

Hamlet : “Ah ! Abjeção ! Ela ! Ela mesma ! Antes mesmo que o sal das lágrimas hipócritas abandonasse o fluxo de seus olhos inflamados... Olhos sem tato, tato sem vista, ouvidos sem mãos ou olhos, olfato sem nada, a mais insignificante parte de um único e saudável sentido teria bastado para impedir semelhante estupidez. Estoura meu coração, pois devo refrear minha língua !” 
[5]

Ofélia : Eu sou Ofélia.
Aquela que os homens querem que enlouqueça e que se suicide.
“Adornada com estranhas grinaldas de botões de ouro, urtigas, margaridas e flores púrpuras, atiro-me no soluçante riacho. Enquanto canto estrofes de antigas árias, inconsciente de minha própria desgraça, afundo lentamente para a morte lamacenta, em meio às melodias de minha loucura.” 
[6]

Hamlet : “Entra para um convento ! Por que desejas ser mãe de pecadores ? Sou muito orgulhoso, vingativo, ambicioso, com mais pecados na cabeça do que pensamentos para concebê-los, imaginação para executá-los. Por que hão de existir pessoas como eu arrastando-se entre o céu e a terra ? Todos nós somos consumados canalhas; não acredites em nenhum de nós. Segue teu caminho para o convento.”

Ofélia : Eu sou Ofélia. Mas eu não vou mais representar Ofélia.
Eu não vou mais enlouquecer. Eu não vou mais me matar.
Eu não quero mais ser Rainha. Eu não quero mais ser esposa. Não quero me casar. Não quero mais ser mãe. Não quero mais ser virgem e casta. Não quero mais ser devassa. Não quero mais servir aos homens.
Todo homem que um dia caminhou sobre a face da terra, começou a viver dentro do meu ventre; veio ao mundo pelo meio de minhas coxas; ganhou a luz pelo buraco de minha vagina.
Todo homem é resultado do sêmen depositado em meu útero.
“E hoje eu devolvo ao mundo todo o esperma que recebi, porque ele se transformou num veneno mortal.” 
[7]
Eu não quero mais ser fecundada pelos homens. Eu não quero mais ser uma máquina de parir gente.
Eu não quero ser homem. Eu quero ser uma mulher. Mas eu não quero ser uma mulher num mundo de homens. Eu quero ser Ofélia.
Meu coração é o pêndulo do mundo.
“Eu arranquei o relógio que era meu coração para fora do meu peito. E fui para as ruas, vestida com meu sangue.” 
[8]

(Hamlet novamente com o crânio nas mãos)

Hamlet : “Ser ou não ser... Eis a questão.” 
[9]

Ofélia : Eis o Príncipe indeciso. Incapaz de transformar suas dúvidas em ação. Incapaz de agir sem provocar tragédias.
Eis o Príncipe acorrentado aos fantasmas de um passado que exige vingança. Incapaz de atender a um presente que clama por justiça. Incapaz de construir um futuro que não seja vil e iníquo.
Eis o Príncipe, o herdeiro do trono. Incapaz de romper com a sucessão de donos do poder. Incapaz de olhar para além das muralhas do palácio.
“Há algo de podre no reino da Dinamarca.” 
[10]
Onde estarão os Dinamarqueses ? Por que estão sempre fora de cena os Dinamarqueses ?
Que tumulto é este fora do palco ?
“Um fantasma ronda esta peça.” 
[11]
Todos se unem para exorcizá-lo. Em vão !
Eu já não sou Ofélia. Sou a nação traída.
“O país inteiro transformado num puteiro.
O futuro repetindo o passado.
Um museu de grandes novidades.” 
[12]
“Toda a luminosa esperança de uma inteira nação convertida num repugnante acordo entre financistas e famintos, entre os bancos e os grotões.” [13]
Eu já não sou Ofélia. Sou a multidão de humilhados.
Sou o exército de miseráveis.
Sou a privação de humanidade. Os sem-teto. Os vagabundos. Os mendigos.
Sou a privação de atividade. Os velhos, os loucos, os doentes, os delinqüentes.
Sou a privação de trabalho. Os imigrantes clandestinos, os refugiados políticos, os desempregados.
Sou a privação de liberdade. Os proletários e as prostitutas. Os adolescentes e os subempregados. 
[14]
Sou a rebelião, a insubmissão, a resistência, a insurreição.
Sou a fúria e a paixão.

Hamlet : “Que é mais nobre para a alma: sofrer os dardos de um destino cruel, ou pegar em armas contra um mar de calamidades e contra elas lutar até dar-lhes fim.” 
[15]

(Ofélia aponta para Hamlet)

Ofélia : Eis a questão.
“Eis o homem.” 
[16]
Aquele que destronou Deus e ocupou o seu lugar.
“Reis sucedem reis, perpetuando a dinastia de infâmia e horrores. 
[17]
Disseram que ao adormecer em seu jardim, Deus foi mordido por uma serpente. A serpente que lhe tirou a vida, agora usa a coroa que a ele pertencia. 
[18]
“Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? — também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, nós assassinos entre os assassinos?” [19]
Eis o homem.
“Que obra-prima é o homem ! Para mim, entretanto, o homem não passa da quintessência do pó.” 
[20]
"O homem nada mais é que uma corda estendida entre o animal e o super-homem: uma corda sobre um abismo; travessia perigosa, temerário caminhar, perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar.
A grandeza do homem é ser ele uma ponte, e não uma meta; o que se pode amar no homem é ser ele uma transição e um ocaso." 
[21]
Deus está morto e também o homem deve morrer.
“Hamlet desaparecerá, como na orla do mar um rosto de areia.” 
[22]

(Ofélia mata Hamlet)

Ofélia : O homem está morto.
“O mundo está fora dos eixos. Bendita sorte ! Eu quero parir o ser capaz de colocá-lo em ordem !” 
[23]



[1] “Contra a corrente”, Roberto Mangabeira Unger[2] “HamletMaschine”, Heiner Müller[3] “HamletMaschine”, Heiner Müller[4] “Hamlet”, Shakespeare – fala da Rainha[5] “Hamlet”, Shakespeare[6] “Hamlet”, Shakespeare – fala da Rainha[7] “HamletMaschine”, Heiner Müller[8] “HamletMaschine”, Heiner Müller[9] “Hamlet”, Shakespeare[10] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Marcelo[11] “Manifesto do Partido Comunista”, Karl Marx e Friedrich Engels[12] “Brasil”, Cazuza[13] “Anti-corvos”, arkx[14] “A política do rebelde”, Michel Onfray[15] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet[16] João: 19,5[17] “Hamlet insurrecto”, arkx[18] “Hamlet”, Shakespeare – fala do Espectro[19] “A Gaia Ciência”, Nietzsche[20] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet[21] “Assim falou Zaratustra”, Nietzsche[22] “As palavras e as coisas”, Michel Foucault[23] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet

Hamlet insurrecto

Ato 5
Insurrecto

“O Brasil mudou muito ao longo de seus 500 anos. E a grande alteração foi a formação do povo brasileiro. Na origem, éramos contingentes de desenraizados: índios destribalizados, negros desafricanizados, brancos deseuropeizados. E o processo histórico brasileiro constituiu um povo novo, com uma clara identidade nacional, que fala a mesma língua, que desenvolveu uma cultura de síntese, que tem características muito positivas. Ele nasceu na modernidade e olha para o futuro.


Formar o povo brasileiro foi nosso maior êxito, mas temos um imenso fracasso: esse povo nunca comandou sua nação. Durante nossa história convivemos com essa contradição. Só que não está sendo mais possível, porque o povo já é forte e grande demais. Agora, o passo histórico é assumir o controle da sua nação, para refundá-la.

O Brasil foi fundado há 500 anos como uma empresa comercial controlada e voltada para fora. O Brasil tem de ser refundado como uma nação para si. Quem pode fazer isso é o povo e só agora ele tem condições para isso.

Então, a crise atual é muito mais profunda e dramática do que as outras, porque ela exige uma solução radical que nunca tivemos. Por isso ela é tão demorada, prolongada e mais difícil.” [1]


Hamlet : Deus e o homem estão mortos.
Hamlet está morto.
Os reis estão mortos.
“Eu não sou mais um ator.” 
[2]
Eu me tornei o Espectro.
Estou morto. Apesar disto nunca estive tão vivo quanto agora.
Sou o fantasma que assombra esta peça. Inútil tentar conjurar-me. Tremam ao ouvir o meu nome. 
[3]
À cegueira da vingança, eu respondo com implacável justiça.
Desmascaro os reis assassinos.
Abdico ao trono.
Renego a coroa.
Abro os portões do castelo.
Que enfim os Dinamarqueses invadam a cena para varrer a podridão do reino da Dinamarca.
Agora, todo este reino será deles.
Já não tenho dúvidas, mas todas as questões continuam em aberto.

Hamlet : Hoje eu venho para o alto deste palco. E meu único motivo é descobrir o que se pode ver daqui de cima. 
[4]
Garantiram não haver alternativa. [5]
Afirmaram se tratar de uma era de prosperidade sem igual na história do Homem, um novo renascimento. [6]
Em vez disto, à minha frente contemplo as ruínas da nação.
Uma paisagem desolada pela exclusão e da usurpação.
Fantasmas vagam pela escuridão do caos enquanto reis festejam seus torpes crimes.
“O sonho desmoronou.” 
[7]
A esperança não se cumpriu. [8]

Hamlet : Hoje eu me volto para dentro de mim mesmo. E meu único motivo é ver o que posso descobrir neste mergulho interior.
“Eu sou meu filho, meu pai, minha mãe, e eu mesmo. Eu represento o ator ! Estou sempre morto. Mas um vivo morto, um morto vivo. Sou um morto sempre vivo. A tragédia em cena já não me basta. Quero transportá-la para minha vida. Eu represento totalmente a minha vida. Onde as pessoas procuram criar obras de arte, eu pretendo mostrar o meu espírito. Não concebo uma obra de arte dissociada da vida.” 
[9]
Eu não represento mais ninguém.
Eu não represento mais nada.
A representação está morta.
“Para mim é tão odioso seguir quanto guiar.” 
[10]

Hamlet : “Após o fim de tudo, fantasmas rondam o país.
Anfitriões da utopia, anunciam nada mais a se perder.
Senão as correntes que aprisionam um mundo a ganhar.
Isso é o que nós somos: o fim e o começo.
Dos escombros do velho novamente se ergue o clamor por mudança.
O que fazer ?
Tudo é incerto.
Nada é inteiro.
Isso é o que nós somos : nevoeiro.
A hora é agora !
Aqui nasce o futuro !” 
[11]

Hamlet : O mundo está fora dos eixos. 
[12]
Onde estarão aqueles nascidos para colocá-lo em ordem ?
Por que não sobem ao palco aqueles nascidos para colocar ordem no mundo ?

(Hamlet aponta para a platéia)

Hamlet : “Ser ou não ser... Eis a questão.
Adue, adue. Lembrem-se de mim.
Não se esqueçam. Não se esqueçam.” 
[13]



[1] César Benjamin, 07/01/2006[2] “HamletMaschine”, Heiner Müller[3] “Manifesto do Partido Comunista”, Karl Marx e Friedrich Engels[4] “A subida ao Monte Ventoux”, Petrarca - 26/04/1336[5] TINA (There Is No Alternative), Margaret Thatcher, 1979[6] Fernando Henrique Cardoso, 20/02/2002[7] Francisco Whitaker, 02/01/2006[8] “HamletMaschine”, Heiner Müller[9] Antonin Artaud[10] “A Gaia Ciência”, Nietzsche[11] “Isso é o que nós somos, companheiro”, arkx
[12] “Hamlet”, Shakespeare
[13] “Hamlet”, Shakespeare

03 Março 2006




Um Outro Édipo

arkx

Prefácio

O texto "Um outro Édipo” chegou a mim através da Internet, escrito por um amigo virtual. arkx .
Sendo uma pessoa com um processo de criação em sua forma e conteúdo peculiar, fã de Fernando Pessoa ( não seria eu a desdize-lo pois é também paixão minha mesmo antes de ter dirigido “O Marinheiro” em 1999) quando leu a cena da Esfinge do texto “À Grega” de Berkoff, a qual lhe enviei como resposta a um e-mail seu, escreveu e enviou a mim um texto que chamou minha atenção.
Tanto no conteúdo transcendente como na forma de faze-lo ou seja criando o texto durante seu cotidiano. Interessante também é que o restante do texto foi escrito na integra numa viagem que ele fez à Grécia. Um texto escrito mesclando : a viagem, o cotidiano e passando pelos locais onde a tragédia Édipo ocorreu. As citações apropriadas que ele inclui no texto como Heinner Müller e outros torna o texto de uma grande atualidade.

Precisamos de dramaturgia brasileira. Escrita por brasileiros. Muito.
arkx é uma pessoa que pode e deve desenvolver uma dramaturgia interessante .
Eu gostaria muito que fosse assim.
Nesse momento porém o que importa é que chegue a mão de vocês "Um outro Édipo" Chance e escolha . é o que fazemos o tempo todo mesmo que não tenhamos consciência disso. Eu escolhi editá-lo, por sua forma de ver a tragédia . Meu amigo arkx tem sua forma particular e sagaz de ver nosso mundo. Constrói um texto baseado nas tragédias de Sófocles, mas ao final as desconstrói por completo.
Dando uma solução transcendente para humanidade. Uma proposta de paz. De luz. Uma proposta que o mundo inteiro deveria ouvir!
E isso atraiu minha a atenção e me leva nesse momento a editá-lo. Oferecer as pessoas uma oportunidade de lê-lo e ou fazer uma montagem se assim desejarem! Boa viagem a quem quiser e tiver a chance e escolher ler “Um Outro Édipo”


Sandra Zugman

Um Outro Édipo
“Vocês, que vão emergir das ondas,
em que nós perecemos,
pensem quando falarem das nossas fraquezas
nos tempos sem sol
de que vocês tiveram a sorte de escapar.”
 [1]



PRÓLOGO
Foi durante uma viagem à Grécia que aconteceu. Eu estava num daqueles ferrys indo para Santorini e sentia grande expectativa de conhecer a ilha, formada pela explosão de um vulcão em 1.450 AC.

Era um lindo dia de sol e o azul intenso do Mar Egeu chegava a resplandecer.
Apesar da paisagem, a viagem me causava um certo desconforto. Eu estava no deck do navio e soprava um vento frio e irritante que se infiltrava corpo adentro.
Além disto, grupos de turistas ocupavam todos os espaços disponíveis, acotovelando-se e disputando cada palmo de lugar ao sol.
Decidi descer e procurar um lugar no salão principal do barco.
Velhos jogavam gamão. Casais discutiam. Jovens se beijavam. Muita gente fumava sem parar. Várias pessoas dormiam jogadas em cima das poltronas. Pilhas de mochilas e bagagem se amontoavam pelos cantos.
Sinceramente, a cena me sugeria exatamente uma excursão de interioranos para alguma praia famosa numa cidade grande.
Demorei a encontrar alguma poltrona vaga. Percorri os corredores observando aquela mistura de nacionalidades.
Tão diferentes e tão iguais.

Quando enfim consegui me acomodar, logo reparei num jornal dobrado ao meio, bem embaixo do lugar onde me sentei. Peguei-o e vi que não conseguiria ler coisa alguma. Era grego. Mal dava para identificar algumas letras. Para mim, aquilo era tão indecifrável quanto os mistérios do mundo.
Entretanto algo me chamou a atenção. Folheei o jornal e caíram no meu colo algumas folhas manuscritas. Haviam outras no meio do jornal.

Examinei-as. Era papel comum, branco. Pareciam anotações. A caligrafia era clara e definida e no idioma inglês.

Comecei a ler e rapidamente descobri tratar-se de um rascunho de um texto para teatro.
Surpreendi-me com a complexidade do tema. E fiquei intrigado em como as idéias de quem escrevera se assemelhavam por demais com as minhas próprias.

Durante o restante de minha viagem à Grécia reli várias vezes aquelas folhas. Indaguei-me quem teria sido o autor. Embora tenha examinado detalhadamente o texto, nada pude descobrir que fornecesse a menor pista quanto a isto.

Imaginei inúmeras hipóteses para que alguém perdesse um trabalho que tivera tanta dedicação em elaborar. Quem sabe até não teria sido um esquecimento intencional...

Para quem ler o texto que encontrei ficará claro que não se trata de um trabalho acabado. O autor parecia reunir idéias e apenas esboçara o que de fato pretendia realizar.

Cheguei a considerar a possibilidade de eu mesmo completar a tarefa. Infelizmente, creio que minha habilidade literária jamais terá sido menos apropriada.

Talvez o texto acabe encontrando as mãos de quem enfim o possa finalizar. Ou mesmo, numa dessas irônicas reviravoltas do destino, venha a reencontrar aquele que foi o seu autor.


[1] “Aos que virão depois de nós”, Brecht

ABERTURA
O palco está vazio. Surge um homem com uma longa túnica antiga. Usa um bastão para se orientar enquanto caminha. Seus passos são lentos e medidos. Age como um cego. Está de óculos escuros. É o adivinho Tirésias. 


Enquanto atravessa a extensão da cena de ponta a ponta, sem se deter, ele anuncia para a platéia, em voz alta e clara :

“Onde a platéia é levada a conhecer
que tanto Deus quanto o Diabo
habitam a Terra dos Homens.”

No fundo do palco se destacam iluminadas as ruínas de um antigo templo grego. Possivelmente o templo de Apolo, em Delfi, onde funcionava o Oráculo. No pórtico se lê a inscrição : “Conhece-te a ti mesmo”.

Um foco de luz acompanha dois atores vindos cada qual de um dos lados do templo. Uma música muito suave começa a se ouvir. A princípio bem baixo, o som progressivamente aumenta de volume.
Os dois atores, um homem e uma mulher, começam a dançar. A coreografia assemelha-se a balé, quase clássico. Os movimentos são harmoniosos e delicados e sua execução é marcada e rígida.
Após algum tempo, a dança se transforma. A evolução se torna mais espontânea e é realizada com força e paixão. A movimentação se torna quase atlética.

A música é vibrante e sugere transe e êxtase.

Em momentos, outros atores entram em cena. Uns descem do teto do palco, deslizando em fitas coloridas. Outros entram pelas laterais. E os demais saem do fundo do palco.

Todos se reúnem, formando um grupo que executa uma complexa e diversificada performance misturando dança, acrobacia, mágica e pirotecnia.

É difícil não se contagiar com a exibição e vibrar com o sublime da arte e o divino da criação.

Saltimbancos pré bárbaros e pós civilizados celebrando o milagre da existência.

Uma outra concepção do tradicional coro grego. Uma multiplicidade que jamais se reduz a qualquer unidade. Somos todos grupúsculos. Minorias dentro de nós mesmos. Um rio que nunca é o mesmo rio. Um fluxo que não cessa de se transformar. Um rio embaixo do rio.

Identidade, totalidade, unidade : a malha de poderes que tornam os corpos úteis e dóceis.

Coro :

“Ao lado do fascismo do campo de concentração desenvolvem-se novas formas de fascismo molecular : um banho-maria no familialismo, na escola, no racismo, nos guetos de toda natureza, supre com vantagens os fornos crematórios.”
“Em última análise, tudo depende do talento dos grupúsculos humanos em se tornarem sujeitos da História, isto é, em agenciar, em todos os níveis, as forças materiais e sociais que se abrem para um desejo de viver e mudar o mundo.”[1]

Ao final, o grupo faz uma mesura para a platéia, que aplaude calorosamente.

Dirigindo-se sempre aos espectadores, os integrantes do grupo alternam-se nas falas.

“Vocês: a raça humana. O apogeu da criação. Quem são vocês ? Quem serão ? Essa criatura feita daquela mesma matéria dos sonhos, frágil e preciosa.”

“Vocês: o ser humano. Os donos do planeta. Geraram filhos e povoaram a terra. Espalharam-se nas quatro direções. Ergueram cidades majestosas. Construíram impérios. Dominaram as alturas e as profundezas.”

“Vocês: os novos deuses. Desvendaram o segredo da árvore da vida. Manipularam o código genético. Decifraram a Tábua das Esmeraldas. Fabricaram outros seres e outras formas de se estar vivo. Tanto poder... Tanta sabedoria...”

“Vocês: saberão ao menos quem são ? Quem se importa com isso ? O que se é... O que se deve ser... Todos apenas querem ser. Eu quero. E quero mais. E sempre mais e mais e mais.”

O próximo integrante do grupo a falar aponta apara a inscrição no templo : “Conhece-te a ti mesmo.”

“Então é isso ? Apenas esse infatigável desejo, jamais saciado. Esse desejo que surge do vazio, de uma ausência anterior a tudo ? Uma irresistível saudade do gênesis ? Uma ânsia em retornar ao útero materno para novamente se perder na escuridão do inconsciente ?”

“Conhece-te a ti mesmo. Mas o que poderiam eles dizer a respeito disto ? Almejam a ser deuses... Ou apenas nos deixem quietos em nosso canto. Apenas humanos. Quero sentir mais prazer. Quero amar e ser amado. Ah ! A felicidade...”

“Conhece-te a ti mesmo. Essa tola criatura, escravizada por um desejo que sempre conduz ao mesmo velho e conhecido ponto. Aquela fatídica encruzilhada onde nada mais restará do que assassinar o próprio pai e engravidar a própria mãe.”

“Um desejo que produz tão somente a escuridão e a morte.”

“Conhece-te a ti mesmo. O que vocês tem feito, senão transformar este lindo planeta num vale de lágrimas. Deuses ? Ou apenas humanos ? Demasiadamente humanos... Não... Dentro de cada um de vocês também moram demônios sedentos de tortura e infâmias. “

“Que criatura é esta que traz misturado dentro de si Deus e o Diabo em igual proporção ? Que ser é este que parece desfrutar de um mórbida satisfação em ser odiado ? Como consegue a humanidade extrair tanto prazer da morte e da destruição ?”

“Conhece-te a ti mesmo. 06/08/1945. O dia em que a humanidade definitivamente se olhou no espelho. O dia em que o ser humano mostrou a cara. 06/08/1945 ou 09/08/1945. O que sabem vocês sobre estas datas ? Quem se lembraria ? Por que não sabemos ? Por que estas datas foram metodicamente esquecidas ?”

A partir deste ponto, o grupo de atores parece tomado por um tipo de surto. Uma agitação febril e doentia se apossa de todos.

Uma hipnótica música techno acompanha todo o restante da cena. Um tipo de som atualmente utilizado como diversão neurótica nos grandes centros urbanos, mas que talvez tenha sua principal utilidade como controle mental de multidões.

Progressivamente um frenesi cada vez mais histérico se instala. Entre gritos e exclamações, as falas se sucedem rapidamente, num ritmo de afirmação e réplica.

“A história ! Essa sucessão de genocídios e atrocidades. “

“Caim matando Abel.”
“E Abraão sacrificando o próprio filho a Deus.”

“Cristãos atirados aos leões.”
“E os crime da Santa Inquisição.”

“A Diáspora dos judeus.”
“E os guetos palestinos.”

“Tiro ao alvo em crianças muçulmanas em Sarajevo.”
“E mulheres afegans cobertas dos pés a cabeça e apodrecendo prisioneiras em suas próprias casas.”

“Escravos morrendo nos porões dos navios negreiros.”
“E etnias tribais se trucidando em Ruanda.”

Um clima de possessão domina o palco. Demonstrando estarem completamente fora de si, os atores agem como se dominados por alguma força diabólica.

A batida obsessiva da música techo contribui para acentuar ainda mais o clima de furor e descontrole.

Os integrantes do grupo avançam em direção a platéia. Circulam pelos corredores quase correndo. É como se um bando de loucos enraivecidos houvesse invadido o teatro trazendo medo e paranóia.

“O esquizofrênico delira a história e não o sujo segredinho familiar.”

Os atores falam sem parar e ao mesmo tempo, movendo-se nervosamente em todas as direções.
Delírio. Transe.

“Era por volta da hora sexta, e houve trevas em toda a Terra até a hora nona. O Sol se escureceu e rasgou-se pelo meio o véu do Templo.”
“Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o Universo e os deuses.”
“O conhecimento é amor.”
“por impaciência, o Homem perdeu o Paraíso”
“por preguiça, não volta a ele.”
“criado à imagem de Deus.”
“Estás no mundo, mas não sois do mundo.”
“Eu sou a porta.”
“Darás a luz no sofrimento.”
“E como Moisés elevou a serpente no deserto, é preciso igualmente que o Filho do Homem seja elevado...”
“Ó tempo, suspende teu vôo...”
“Cada instante pode ser salvo, restituído à sua dimensão eterna”
“Comerás pó todos os dias da tua vida...”
“pois és pó, e ao pós retornarás.”
“Deus se fez homem para que o homem se torne Deus.”
“O verbo se fez carne para que a carne se torne Verbo.”
“Demole tua casa, constrói um barco...”
“A sabedoria divina é loucura para os homens.”
“Destruirei a sabedoria dos sábios ...”
“que se torne louco, afim de tornar-se sábio..”
“a sabedoria do mundo é loucura diante de Deus...”

De repente, um dos atores para diante de um espectador. O ator balbucia e esbraveja como um demente, perdido num delírio psicótico.

“Por que me perguntas o teu nome ?”
“Eis que a realização de toda carne chega.”
“Vós sois o sal da terra.”
“Vós sois a luz do mundo.”

Em seguida, todos os demais atores cercam o espectador escolhido. Trata-se de mais um ator misturado à platéia.

O grupo age com agressividade e converge toda sua fúria para o ator/espectador. Agarram-no pelo braço, o forçam a ficar de pé e o retiram da poltrona.

“Todo homem será salgado com fogo.”
“Pai, pai por que me abandonaste.”
“os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres recebem as boa-nova.”

Enquanto o mantém cercado, empurram-no seguidamente. Ele tenta reagir, mas é dominado pela superioridade e violência do grupo.

“saí do Pai e vim ao mundo.”
“uma inimizade estabelecerei entre tua semente e a semente dela.”
“Eu estava em paz, Deus me quebrantou”
“Ele me agarrou pela nuca e me fez em pedaços.”
“Ele abre em mim brecha sobre brecha...”
“que esse cálice seja afastado”
“brotam chamas, faíscas ardentes...”

Um dos membros do grupo pega um capuz e cobre com ele a cabeça do ator/espectador. Ele é levado para o palco. O grupo o carrega pelos braços e pés como um animal arrastado para o local do sacrifício.

No palco, o ator/espectador é atirado ao chão e totalmente coberto com um grosso pano. Os atores o agridem com chutes e alguns o acertam seguidas vezes com pedaços de madeira.

“Bem aventurados os puros de coração, pois eles verão a Deus.”
“O abismo me cercou...”
“aqueles cujo nome é Legião.”
“Eu disse: vós sois deuses.”
“Não toques em mim, pois eu ainda não subi ao Pai.”
“Não vos chamarei mais servos, mas amigos.”
[2] 

O desenvolvimento é tão realista e grotesco que provoca perplexidade e indignação na platéia. Os atores prosseguem com as falas durante todo o tempo. A música techo em alto volume faz com que a cena se assemelhe a um ritual macabro.

Um dos atores traz um galão com algum líquido inflamável. Despeja seu conteúdo sobre o corpo coberto no chão e ateia fogo. O corpo se debate. Suas pernas tremem, numa convulsão causada pelas chamas.

Enquanto o corpo é consumido pelo fogo, todos os atores declamam em coro :

“Quem crê em mim, ainda que morra, viverá.”
“Todo aquele que vive, e crê em mim, não morrerá.”

“Quem crê em mim, ainda que morra, viverá.”
“Todo aquele que vive, e crê em mim, não morrerá.”

“Quem crê em mim, ainda que morra, viverá.”
“Todo aquele que vive, e crê em mim, não morrerá.”
 [3]
O grupo grita, chora e gargalha diante da imolação. Uma oferenda aos deuses. Um tributo aos Demônios. O ritual está consumado.

Sacrifício humano. Humano sacrifício. O indivíduo e o grupo. Deuses e Demônios. Criação e destruição. Arte e vida.

A platéia assiste horrorizada a cena. E um nauseabundo odor adocicado de carne humana queimada toma conta do teatro.

As luzes se apagam por completo.

Num enorme tela no centro do palco é projetada uma explosão nuclear. Hiroshima e Nagasaki. 06/08/1945 e 09/08/1945. O trovão da bomba reverbera por toda a parte, fazendo as poltronas tremerem e todos experimentarem uma desconfortável vibração em seus plexos solares.

Da mesma forma que a performance inicial provocou encantamento e identificação na platéia, o final causa asco e rejeição. Representa o lado demoníaco do ser humano.

Ao da cada cena, o coro interpreta uma citação :

Coro :

"Se o homem se encontra consigo mesmo no mais profundo do mais baixo, do pior e, encontrando face a face com o Dragão que existe no fundo dele mesmo, é capaz de abraçar esse Dragão, de unir-se a ele, então surge o divino e é a ressurreição !" [4]



[1] “Revolução Molecular”, Felix Guattari
[2] citações extraídas de “O Simbolismo do Corpo Humano”, Annick de Souzenelle
[3] Lucas: 25,11
[4] “O Simbolismo do Corpo Humano”, Annick de Souzenelle

A PESTE GLOBAL
Usando uma máscara contra gases, Tirésias anuncia uma nova cena :

“A Peste Global :
onde a moléstia escapa da alma dos homens
e contamina o planeta inteiro.”


O cenário é totalmente branco. Iluminação forte e chapada. Não há sombras. Manequins pendem do teto, bonecos de corpo inteiro também totalmente pintados de branco. Estão suspensos de cabeça para baixo por cordas de um vermelho intenso, florescente.

A Peste global é asséptica. É a doença que realizou a aspiração definitiva da enfermidade e tornou-se hegemônica. Apresenta-se como a única forma possível de saúde e é o modo de vida da sociedade contemporânea.

Os atores se vestem com malhas colantes de cor branca. Têm os rostos, braços, pernas e pés maquiados de branco. As falas são pronunciadas de forma intercalada enquanto os atores movem-se entre os manequins.

“A Peste ! Ela voltou !”
“Como voltou ? Alguma vez teria ela se ido ?”
“A Peste ? Ela está por toda a parte !”
“Contaminou a todos ...”
“Mas ela sempre esteve aqui !”
“A Peste surgiu com o mundo ?”
“Não ! Não ! Ela veio com o homem.”
“Então é o homem a própria Peste ?”
“Não ! Mas a Peste está dentro do homem.”
“Mas como ? Se vemos a Peste no mundo...”
“Não no mundo todo. Apenas no mundo dos homens.”
“Foi o homem quem criou a Peste ?”
“Não ! Ela foi criada junto com o homem.”
“A Peste estava no barro de Adão ?”
“Não ! A Peste veio com o sopro de Deus.”
“Como é possível ?”
“Como o Criador inoculou sua amada criatura ?”
“Não teria o homem contraído a Peste ao ser expulso do Paraíso ?”
“Não ! Naquele momento a Peste foi apenas ativada.”
“E a humanidade começou então a padecer os efeitos da Peste. Mas a Peste já estava nos genes desde a criação.”
“ó céus ! ó deuses ! Como pode ser assim ?”
“Uma criatura amaldiçoada desde o surgimento. Um ser já nascido perverso e infame.”
“Isto não é justo ! Isto não é certo !”
“Adão, Jó e Cristo. Foi esse o caminho previsto desde a Criação. E isto não é apenas justo e certo. É o percurso definido em direção à transcendência.”
“Como ! Se por onde passo apenas vejo a Peste. O demônio tomou conta do mundo. Os homens venderam suas almas.”
“Ah ! O dinheiro ! Essa diabólica invenção que reduz tudo a um nada que pode ser trocado por tudo.”
“Foi o homem quem fez as opções. Foi o homem quem escolheu os caminhos.”
“Foi o homem quem elevou a Peste ao estado da arte.”
“Os homens batizaram a Peste com muitos nomes.”
“Clã e Patriarcado.”
“Império.”
“Coroa e Conquista.”
“Família e Estado.”
“Colonialismo.”
“Economia de Mercado”
“Globalização.”
“O homem fez da Peste a sua civilização. Edificou templos e escreveu enciclopédias em homenagem a ela.”
“O homem fez com que a Peste se irradiasse de dentro dele e se disseminasse por tudo o que ele toca.”
“A Peste se tornou maior e mais forte do que o próprio homem.”
“Globalização.”
“O futuro não precisa de nós !”
 [1]

“Não teriam sido a competição e o mercado os impulsionadores do progresso ?”
“A civilização humana não tem se aperfeiçoado ao longo do tempo ?’
“Não está se tornando menos injusta ?”
“Não temos hoje a ONU, a Declaração dos Direitos do Homem, o direito de voto ?”
“E a democracia. E a liberdade de escolha. E os direitos das mulheres.”
“E a penicilina.“
“E a robótica, a nanotecnologia, a engenharia genética”
“A Peste torna cegos os que, na verdade, sempre quiseram permanecer na escuridão.”
“A Peste se alimenta da ignorância. E a ignorância é a mãe da ingenuidade e da má-fé.”
“Nunca os ricos foram tão ricos e os pobres foram tão pobres. Nunca a concentração de riqueza e a desigualdade foram tão cruéis e profundas.”
“O que chamam de progresso nada mais tem sido que o acirramento da injustiça e a exaltação da ganância.”
“O homem desenvolveu o poder de levar à extinção não apenas a si próprio como a todas as demais formas de vida no planeta.”
“Um grupo de consultores dos governos e transnacionais mais poderosos do planeta planeja eliminar 100 milhões de habitantes ao ano, para ampliar a racionalidade da economia global.”
[2]
“Tudo será feito sem escândalo: através de fome, desmonte dos serviços públicos, guerras tribais, ajustes fiscais.”
“Ah ! Essa estúpida teimosia dos pobres em reproduzir-se.”
“Ah ! Essa incurável incapacidade genética dos subdesenvolvidos.”
“Ah ! Essa repugnante proliferação e reprodução de pessoas analfabetas, incapazes de ganhar a vida, supérfluas, degeneradas.”
“A prostituição.”
“A transmissão da AIDS.”
“A redução dos gastos sociais.”
“A reincidência de doenças.”
“A malária. A tuberculose. A cólera. As epidemias.”
“Os baixos salários.”
“As privatizações dos serviços públicos.”
“A negação da noção de cidadania”.
“As esterilizações em massa.”
“A contracepção forçada.”
“O mercado mundial é que deve permanecer como o grande princípio organizador da sociedade”.
“A seleção das "vítimas" não deve ser responsabilidade de ninguém, senão das próprias "vítimas".”
“Elas selecionarão a si mesmas a partir de critérios de incompetência, de inaptidão, de pobreza, de ignorância, de preguiça.”
“Numa palavra, elas estarão no grupo dos perdedores".
“Os flagelos dos quatro cavaleiros do Apocalipse: a Conquista, a Guerra, a Fome e a Peste.”

Coro :
“Auschwitz não foi um desvio ou exceção, e sim um altar do capitalismo, último estágio das Luzes e modelo de base da sociedade tecnológica. Auschwitz seria o altar do capitalismo porque ali o homem é sacrificado em nome do progresso tecnológico, porque o critério da máxima racionalidade reduz o homem ao seu valor de matéria-prima, de material; seria o último estágio das Luzes ao realizar plenamente o cálculo, por elas inaugurado; e, finalmente, seria o modelo de base da sociedade tecnológica porque o extermínio em escala industrial consagra até mesmo na morte a busca de funcionalidade e eficiência, princípios fundamentais do sistema técnico moderno.” [3] 





[1] “The future doesn’t need us”, Bill Joy
[2] “O Relatório Lugano”, Susan George
[3] Heiner Müller , poeta e dramaturgo alemão

A MULHER DESAFIA O TIRANO
Tirésias, de pé num dos cantos do palco, segura displicentemente um revólver. As luzes estão apagadas, apenas um tênue foco luminoso cai sobre Tirésias.

“O caminho do homem justo é cercado por todos os lados pela iniquidade dos egoístas e pela tirania dos homens maus. Abençoado seja aquele que, em nome da boa vontade e da solidariedade, conduz os fracos através do vale das trevas, pois ele encontrará as ovelhas desgarradas e se tornará verdadeiramente o guardião de seus irmãos. Agirei com grande vingança e raiva contra aqueles que tentarem envenenar e destruir meus irmãos. E eles saberão que eu sou o Senhor quando minha fúria se abater sobre eles”. [1]

Após sua fala, Tirésias aponta o revólver para o fundo do palco e dispara várias vezes.

As luzes se acendem. O palco está repleto de aparelhos de TV. Empilhadas umas em cima das outras, as TV formam grandes painéis. Os programas exibidos são noticiários sobre economia e mercado financeiro.


Uma Mulher contracena com o Tirano, que é apresentado apenas como uma voz e imagens nas TV.
Quando a Mulher se dirige ao Tirano, em alguns monitores aparece uma boca dizendo as falas dele.

Por vezes, um único olho é exibido na tela de todas as televisões. Um olhar frio e sinistro. Jamais se verá qualquer imagem com o rosto do Tirano. A voz do Tirano é rouca e metálica. Não mais humana. Uma voz mutante.

O sol nunca se põe no mercado financeiro. Trilhões de dólares circulam vertiginosamente dando a volta ao mundo diversas vezes. Nunca como antes, não há qualquer pátria para o capital. Os Estados caem de joelhos frente ao poder de transações instantâneas, medidas em mili segundos de silício na rede mundial de computadores. Reproduzindo-se cada vez mais rápido. Girando cada vez mais veloz. Expandir. Crescer. Além de qualquer limite.
Coro : 

“O capitalismo contemporâneo é mundial e integrado porque potencialmente colonizou o conjunto do planeta, porque vive em simbiose com países que historicamente pareciam ter escapado dele e porque tende a fazer com que nenhuma atividade humana, nenhum setor da produção fique fora de seu controle.”[2]

Mulher :

“Eu não tenho medo de você. Não me importo de morrer. Se mil vidas eu tivesse, mil vidas eu daria. Mostra a sua cara. Você tem um rosto. Você não me engana. Você se disfarça como se fosse uma esfinge, mas você é uma farsa. Seu apetite não se contenta em apenas devorar homens. Você quer destruir o mundo inteiro. Assim como meu pai degolou a esfinge, vou arrancar todas as suas cabeças e decepar todos os seus tentáculos cravados pelo mundo afora.”

Tirano :
“Quem é você para me desafiar, ser pequenino e desprezível. Você é apenas um rosto anônimo na multidão, de quem sou o reverenciado e temido senhor. Você é um nada. O que você pode contra mim ? Eu possuo exércitos e controlo os meios de comunicação. A uma palavra minha, um pretexto se forja. E você é preso, humilhado, torturado, exterminado. As massas me admiram e me invejam. Você apenas sonha. Sonhos inúteis. Sonhos em vão. Seu heroísmo é patético e juvenil. Você não passa de um eterno perdedor.”

Mulher :
“Eu já disse. Pode me matar. Assim sairei da vida, mas entrarei na história. E o sonho de que fui escravo se tornará o sonho comum daqueles que não mais serão escravos de ninguém. Você pode matar o meu corpo, mas meu espírito sempre permanecerá livre. E meu exemplo fecundará os povos.”

Tirano :

“Ah ! Mas só agora é que reparei. É uma mulher... Você deve se imaginar uma espécie de Antígona, que sozinha derrotou o tirano. E morrendo heroicamente foi imortalizada pelo teatro grego. Por acaso você acha que farei como Creonte e sucumbirei vítima de problemas de consciência ? Pois saiba que minha consciência é a dança frenética das cotações no mercado financeiro. E meu único problema é constantemente reavaliar minha estratégia de auto perpetuação.”

“Mulher insolente e audaciosa. O que é mesmo que as mulheres querem ? Até onde vocês mulheres pensam que podem chegar ? Sua única conquista é o direito de se masculinizarem e tornarem-se tão gananciosas e competitivas quanto os machos, que vocês tanto desejam.”

“Pensando melhor, talvez eu não lhe mate. Você se acha esperta e muito forte. Eu pesquisei como funciona seu cérebro. Eu posso lhe controlar tornando-a louca. Dispor de seus pensamentos e de seus desejos. Mantê-la morta entre os vivos. E viva entre os mortos. Deixá-la definhar lentamente num limbo químico. Lavagem cerebral e neuro-programação. Eletrochoques. Posso fazê-la vagar num torpor até que sua mente se esvazie por completo. Posso até fazer com que você se esqueça de si mesma.”


Mulher :

“É verdade. Você tem poder. Mais poder do que qualquer poder humano que até hoje existiu. Você concretizou o sonho de todo império. Você transformou o planeta inteiro em nada mais que matéria-prima para a sua insaciável ambição. Você é a peste. A Peste Global.”

“Mas o meu poder vem daquilo que você não entende. E nunca entenderá. O meu poder vem daquilo que você pensa controlar. E que jamais conseguirá. Meu coração é o pêndulo do mundo. E bate no ritmo do mistério da vida.”

“O que você sabe sobre a tempestades de fogo que iluminam minha alma ? E sobre o canto de amor dos golfinhos que embala meu sono ? Por acaso lágrimas lhe escorrem na face ao lembrar da dor e do êxtase que é parir ? Um arrepio de angústia lhe corre na espinha por causa de noites insones passadas na paixão de criar ? Sua garganta se aperta e sua respiração se perturba ao fitar o céu e se deparar com a insignificância de tudo e de todos ?”

“Enquanto você se obceca com sua auto perpetuação, eu fiz da morte minha companheira. Você se julga imortal. Mas eu sei que tudo sempre passará. Meu poder vem da consciência de minha morte iminente, que faz com que seja eterna a duração de cada instante de minha vida.”

Tirano :
“Tive uma idéia ainda melhor. Quem não gosta de poder e dinheiro ? Não almeja você ao reconhecimento ? Não é isto que você quer ? Tornar-se um exemplo... Uma lenda... Pois eu lhe concedo tudo isto sem nenhum sacrifício. Sem dor. Apenas prazer. Por acaso você rasga dinheiro ? Dinheiro é bom. Dinheiro é liberdade. Dinheiro é poder.”

Mulher :
“O que o dinheiro pode comprar ? A felicidade ? Pouco me importa a felicidade. O que é ser feliz ? O que vale a felicidade frente a abraçar meu destino e me integrar com o núcleo do meu ser ? Pouco me importa se o dinheiro compra ou não a felicidade...“

“E o dinheiro ? Existe mesmo o dinheiro ? Ou não passa de um pesadelo maligno implantado na mente da humanidade pelos déspotas e tiranos ? Que utilidade tem o dinheiro para aquilo só habita o interior dos homens ? O dinheiro me enoja. Se tudo tem um preço, o preço do próprio dinheiro é abrir mão dos sonhos. É tornar o sonho nada mais do que mera ambição.“

“Reconhecimento ?! A grandeza, talvez a mais profunda, é a de permanecer numa grandeza anônima. Que ninguém me conheça e que todos apenas saibam do resultado dos atos que fiz. Não sou eu quem falo. Não sou eu quem ajo. São todos eles que falam e agem através de mim.”

Tirano :

“Você fala bonito, mulher. Mas suas belas palavras e sua vã poesia nada mais são do que a profecia de sua desgraça. Você irá morrer.”

Coro :

“Ele foi levado nu até uma praça. Pedaços de carne foram arrancados de seu corpo com tenazes de aço. As chagas formadas nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas foram queimadas com chamas de enxofre. Em seguida foram aplicadas sobre as feridas chumbo derretido, óleo fervente e piche em fogo, seguidamente. A seguir seu corpo foi puxado e desmembrado por quatro cavalos. Ele foi decapitado. Seus membros, seu tronco e sua cabeça consumidos ao fogo, reduzidos a cinza. E suas cinzas lançadas ao vento.” [3]



[1] “Pulp Fiction”, Quentin Tarantino[2] “Revolução Molecular”, Felix Guattari
[3] “Vigiar e Punir”, Michel Foucault

ÉDIPO E O ORÁCULO

Surge Tirésias. Ele para no centro do palco. Retira o óculos escuros, levanta-o e o examina, verificando se está sujo. Enquanto limpa com cuidado as lentes, introduz um novo ato :

“Édipo e o Oráculo :
onde cada pergunta já traz em si sua resposta
e o mais importante é saber o que perguntar.”


Um homem sentado numa pedra sobre uma extensão de areia. No lugar dos olhos apenas buracos com marcas de sangue escurecido escorrendo rosto abaixo. Do seu lado direito há uma coluna grega, semi enterrada e bastante inclinada, com uma esfinge em seu topo.


Édipo, atormentado pela culpa e remorso, luta inutilmente para afugentar seus fantasmas.

“Ah! Nuvem de trevas ! Nuvem abominável que te estendes sobre mim, imensa, irresistível, esmagadora ! Ah ! Como sinto penetrar em mim o aguilhão de minhas feridas e a lembrança de meus males !”

”Se existe uma infelicidade maior que toda infelicidade, esse é o quinhão de Édipo !”

“É tão doce a alma viver fora de seus males!”

“Depressa, em nome dos deuses, ocultai-me em alguma parte, longe daqui, matai-me, ou lançai-me no mar, num lugar onde nunca mais me vejais...”

“Olhai. Vede Édipo, esse famoso decifrador de enigmas, que se tornou o primeiro dos humanos. Ninguém em sua cidade podia contemplar seu destino sem inveja. Hoje, em que terrível mar de miséria ele se precipitou ! É portanto esse último dia que um mortal deve sempre considerar. Guardemo-nos de chamar um homem feliz, antes que ele tenha transposto o termo de sua vida sem ter conhecido a tristeza.”
 
[1]

Após o monólogo de Édipo, entram em cena duas mulheres. Toca uma música oriental. Talvez uma antiga melodia persa. As mulheres executam uma dança na qual rodopiam vertiginosamente.

Quando as mulheres cessam de girar, posicionam-se de cada lado de Édipo e de frente para a platéia.
Começam a mover-se lentamente, sem saírem do lugar. Seus corpos ondulam suavemente como reagindo a uma vibração transmitida a partir de seus umbigos. Quadris, braços, mãos e cabeça balançam harmoniosamente.

São movimentos sutis mas ao mesmo tempo intensos e de muita energia.
Enquanto dançam, pronunciam suas falas.

“O que mais poderia ser dito ? Sua velha e repetida pergunta só obterá a conhecida resposta. Seu destino é o mesmo. Sempre aquele mesmo, profetizado há milênios. Matarás seu pai e casarás com sua mãe. “


“Mas o que é o destino ? O que é o destino senão procurar um caminho. Um caminho entre os milhares de caminhos que não levam a parte alguma. Mas o que será o destino senão encontrar os milhares de caminhos que nos levam e que somos nós.”

“Os oráculos estão em toda a parte. Consulte o relógio. 14:14 28O C. READ THE CODE. Atenção ! Aqui e Agora ! Atenção ! Sintonia. Sincronia. Contato. Nós somos o oráculo. Somos a notícia no jornal. A cena do filme e a música no shopping. O mendigo na rua e o vendedor de picolé. Estamos nesse algo que fala. Atenção ! Aqui e Agora ! Atenção ! Sintonia. Sincronia. Contato. Existe uma voz que fala. Nós somos o oráculo.”

“Abraça teu destino. Conhece-te a ti mesmo.”

“ Você é que você é. O que sempre tem sido. O que todos foram antes de você. Pais e filhos. Assassino incestuoso. Busque a luz e não a escuridão. Aceite quem você é. Integre a sua origem. É inútil tentar escapar. Você é o que você é. Apenas proclame : Sou eu, mas não é meu !”

“Há sempre tantas perguntas a fazer... Por quê sempre indagar o que já se sabe ? Enquanto você fugir do destino, ele lhe perseguirá implacável. Os caminhos sempre se encontrarão. Sempre aquela encruzilhada maldita. Sempre Deus e o Demônio. Você é o que você é. Apenas proclame : Sou eu, mas não é meu !”

“É de dentro prá fora. É de baixo prá cima. O que está em cima está embaixo. O que está embaixo está em cima. Segurei a mão de um demônio e falei com a língua dos anjos, apenas para estar com vocês.”
Coro :
“De início a dança é a imagem do jogo rítmico, fonte de todo o movimento do ser; em seguida, libera o homem ilimitado da ilusão de ser um indivíduo aprisionado nas fronteiras de sua pele: seu corpo e seu ser são o universo inteiro; finalmente o ‘lugar’ da dança, o centro do universo, está no coração de todos os homens.”
“Dançar a vida não seria, antes de tudo, tomar consciência de que não apenas a vida, mas o universo é uma dança, e sentir-se penetrado e fecundado por esse fluxo do movimento, do ritmo, do todo ?” [2] 


[1] “Édipo Rei”, Sófocles[2] "Dançar a Vida", Roger Garaudy

TIRÉSIAS QUESTIONA O HERÓI
Trevas dominam o palco. Apenas uma luz mortiça numa das extremidades. De costas contra uma parede de metal frio e negro, há um homem agachado. Está sujo e ferido, bastante ensaguentado, e com as roupas em farrapos. Ele esconde sua cara entre os braços.

O homem puxa seus cabelos com violência, diversas vezes. Levanta o rosto e com as mãos na cabeça, solta gritos lancinantes.
A solidão e o desespero do herói abandonado nas masmorras e calabouços. A coragem e a ousadia frente a frente com a tortura e a morte.

Herói :
“Eis-me a trilhar o derradeiro caminho, a contemplar os últimos raios de sol. Este é o fim. A acolhedora morte me leva viva às margens de um rio de águas amargas, sem desfrutar de meu sonho. Sou, desventurada, arrastada por este franqueado caminho. O brilho desta flama sagrada já não me é dado, infeliz, contemplar. Minha morte não-chorada amigo nenhum lamentará. Estou só. Não me choram amigos. Vede que leis me golpeiam. Parto, a hora chegou. Vede os males que aqui padeço dos homens por ser piamente piedosa.” [1]
O foco de luz se extingue. Surge Tirésias. Está sem óculos escuros e não usa a bengala. Muito agitado e nervoso, mas sem qualquer dificuldade para andar, se move de um lado para o outro, rodopiando sem direção.

Tirésias :
“Eis o herói. Mais uma vez doando sua vida para alimentar a história. Mais uma vez enfrentando o supremo sacrifício. Eis a tragédia. Mais uma vez morremos no final... “


“Navegar é preciso. Viver não é preciso.”

“Meus cegos olhos se cansaram de presenciar tanta desgraça e infortúnio. Estou farto de heróis mortos. Pobre do povo que precisa de heróis... “

“Os heróis querem salvar o mundo ? Mas o que há para se salvar nesse mundo agonizante ? E querem os homens serem salvos ? Ou é o homem o próprio mal que deve ser exterminado ?”

“Chega de renúncias... “

“Isto tudo já me encheu.”

“Jocasta se suicida. Édipo arranca os olhos. Antígona morre. Creonte é consumido pela culpa. O coro faz coro. A platéia aplaude. Os nobres Patrícios sorriem satisfeitos. E os deuses prosseguem com suas orgias olímpicas.”

“Chega ! Tirésias está farto !”

“A tragédia grega já me encheu. Estou cansado desta balela. Isto é um blefe. Uma mera diversão para os deuses. Um incessante martírio para os humanos.”

“Para cada déspota destronado milhares de diminutos pequenos tiranos se proliferam no cotidiano. Minúsculos tiranos, parasitas dos nossos mais recônditos desejos. Microscópicos tiranos, inseridos em cada gesto, em cada pensamento, em cada palavra. São eles a fonte inexaurível de todo o sofrimento e de toda a opressão."

“Estou farto de tragédias ! ”

“Quero ver ! Quero a luz ! Ah ! O tempo é chegado. Basta de mortes !”

“Ora, a morte...”

“Onde está o homem que é maior do que a morte ? A morte ... “

“Por quê é mesmo que se morre ? Talvez por não se sonhar bastante... “ [2]

“Paro à beira de mim e me debruço... Abismo...E nesse abismo o Universo. Com seu tempo e seu espaço, é um astro, e nesse alguns há, outros universos, outras formas de Ser com outros tempos, espaços e outras vidas diversas desta vida.” [3]

“Não se trata de tornar os sonhos reais. Quando é a própria realidade que deve ser tornar um sonho. O sonho é mais intenso e mais real do que a realidade.”

Tirésias em transe. Delira. Já não é mais o vidente que anuncia e decifra os mistérios e segredos do futuro, do dia que virá, do retorno ao Paraíso perdido. Tirésias se torna a testemunha da Utopia oculta no presente. Daquilo que surpreenderá a todos, não por ser exótico, mas pelo fato de poder por tanto tempo ter estado oculto quando terá sido o óbvio.

“O homem novo vive entre nós ! Ele está aqui ! Isto basta-lhe ? Vou-lhe dizer um segredo : eu vi o homem novo. É intrépido e cruel ! Tive medo diante dele !”[4]

“Agora eu sei, eu adivinho. O reino dos homens terminou. Chegou Aquele que o terror dos povos receava. Aquele que os padres inquietos exorcizavam; que os feiticeiros evocavam nas noites sombrias, sem o ver ainda; a quem os pressentimentos dos mestres passageiros do mundo emprestaram todas as formas monstruosas ou graciosas dos gnomos, dos espíritos, dos gênios, das fadas, dos duendes. Após as grosseiras concepções dos primitivos pavores, os homens mais perspicazes pressentiram-no com maior clareza. E descobriram a natureza do seu poder antes que ele próprio o tenha exercido. Desgraçados de nós ! Desgraçado do homem ! Ele chegou, o.., o.. Como se chama ele ? ... o.. parece-me que ele grita o seu nome, e eu não o ouço... sim... ele grita... o.. escuto... não posso... repete ... o.. ouvi... é ele... ele chegou !” [5]


Coro :
“Estamos agora num ponto excepcional da história. Dentro de muito pouco tempo, chegaremos a um momento em que vai haver no mundo um número de pessoas vivas superior ao número de todas quantas viveram e morreram em todas as épocas precedentes. Os mortos serão minoria.”
“Enquanto a experiência passada excedia em muito a experiência corrente, o inconsciente coletivo era, por sua própria natureza, conservador: o ritual e a estrutura superavam a novidade. Os arquétipos mudavam com tamanha lentidão que pareciam eternos. Quando a experiência corrente excede a passada, a situação se reverte: a novidade e a mudança reinam supremas. Os arquétipos se vêem forçados a surgir em números estonteantes, muitos deles tendo uma existência curta demais para serem registrados. Todavia, algum novo arquétipo estável, algum “símbolo vivo” deve surgir de maneira espantosamente rápida ( em comparação com a escala glacial que costuma caracterizar o aparecimento de arquétipos ), um arquétipo dotado de força suficiente para obter a primazia sobre todos os arquétipos criados pela experiência passada da humanidade.” [6]

[1] “Antígona”, Sófocles
[2] “O Marinheiro”, Fernando Pessoa
[3] “Primeiro Fausto”, Fernando Pessoa
[4] Adolf Hitler
[5] “Lê Horla”, Maupassant
[6] “Uma Interpretação Junguiana do Apocalipse”, Robin Robertson

UM OUTRO ÉDIPO

Coro :

"Sonhava de um marinheiro que se houvesse perdido numa ilha longínqua. Nessa ilha havia palmeiras hirtas, poucas, e aves vagas passavam por elas...Não vi se alguma vez pousavam...Desde que, naufragado, se salvara, o marinheiro vivia ali...Como ele não tinha meio de voltar à pátria, e cada vez que se lembrava dela sofria, pôs-se a sonhar uma pátria que nunca tivesse tido; pôs-se a sonhar uma outra pátria que nunca tivesse tido; pôs-se a fazer ter sido sua uma outra pátria, uma outra gente, e outro feitio de passarem pelas ruas e de se debruçarem nas janelas...Cada hora ele construía em sonho essa falsa pátria, e ele nunca deixava de sonhar..." [1]
O coro entre em cena. Todos se reúnem, sentando-se no centro do palco. Um dos membros se destaca e fala, dirigindo-se para os demais :

“Passeando na praia nessa tarde, encontrei na beira da água uma garrafa. Provavelmente lançada ao mar por algum marinheiro náufrago numa ilha desconhecida. Dentro da garrafa haviam algumas folhas manuscritas e páginas arrancadas de um livro de poemas de Fernando Pessoa.”

Enquanto o texto recolhido do interior da garrafa é interpretado, numa tela ao fundo várias imagens de rostos. Rostos de pessoas comuns se misturam ao de celebridades.

Presidentes e motoristas de táxi. Pedreiros e políticos. Atores e ladrões. Comerciantes. Banqueiros. Músicos. Mendigos. Professores. Negros. Padres. Jogadores de futebol. Bêbados. Poetas e policiais. Traficantes e diretores de teatro. Executivos. Travestis. Donas de casa. Modelos. Meninos de rua. Apresentadores de TV.

para Édipo :

Na tela, as imagens são de homens.

“Quem é você ? Um homem ? Nem macho você consegue ser mais. Se arrastando envergado por ter de arcar com o peso do próprio pau. Durante o dia você gosta de exibir, sorridente, sua taxa de colesterol, como se fosse um recorde olímpico. Mas à noite, a cobra no meio de suas pernas permanece tão flácida quanto aquela outra ao longo se suas vértebras. O que lhe dói mais : suas costas ou sua consciência ? Você se julga o rei do pedaço, o deus sol. E humilha e oprime. Subjuga povos. Estupra a natureza. Tudo para a glória da única coisa que você realmente reverencia, e que você mesmo inventou : o dinheiro. Você um herói ? Você não passa de um conquistador barato. E quando tira do lugar a cabeça das mulheres, é apenas para exibi-las como um troféu. O seu prazer, se é que se pode chamar aquela sensação de prazer, é sempre muito fugaz e muito precoce. E, para você, gozar como uma fêmea é quando alguma puta lhe enfia um caralho de plástico no rabo. Você cai de quatro na frente de qualquer buceta que lhe assobie oferecida com seus lábios insinuantes. Mas é sempre incompetente para decifrar o enigma e acaba devorado no final. Você é um engodo. Um mero cachorrinho de madame. Como você deixa um buraco, quase sempre fedido, um vazio suplicando para ser preenchido com vida, lhe sugar toda a energia ? Você nunca me enganou. Seu desejo secreto é se arrastar de volta para o aconchego e proteção do úmido e quente útero da mamãe. ‘Olha que gracinha, o filhinho da mamãe ! Faz gracinha, faz filhinho, prá mamãe ver..’ Ó ! Será que todos os homens se tornaram fracos ? Onde estão os verdadeiros heróis ? Os Argonautas que sabem que viver não é preciso, pois a vida já é o desconcertante navegar para mares desconhecidos. Não, eu não vou lhe devorar. você me provoca nojo. Você não passa de maligna podridão. Uma espécie de câncer. Se o ingerir, vou acabar vomitando.”

Na tela, agora as imagens são de mulheres.

para Esfinge :

“Que tipo de criatura é você ? Não sei se merece compaixão ou ira... Como você se deixa escravizar séculos a fio por esta coisica aqui ao meu lado ? Por este homem... Você deixou que lhe confiscassem o próprio corpo, que foi reduzido a uma fábrica de gente. Quando seu útero existe para gerar sonhos e parir universos. Você me leva às gargalhadas ao falar de prazer, queridinha. Só pq é capaz de gozar 10 vezes, enquanto o garanhão amestrado aqui do lado dá apenas uma !? Pois eu seria capaz de fazê-la gozar 100 vezes, sem ejacular sequer uma única gota. O que você conhece, ou poderá algum dia vir a conhecer, sobre esse prazer ? O orgasmo de provocar orgasmos... Enquanto o bestalhão ali se especializou em dor e destruição, eu pesquisava o conhecimento do êxtase e da criação. Você se vangloria de seus ciclos ligados a natureza ? Você é mesmo muito pretensiosa e por isto permanece muito primitiva. Quem precisaria colocar um tampão no cú para que as fezes não escorram pernas abaixo ? Você não possui a menor autogestão sobre seus ciclos. eles funcionam em você e apesar de você. E não por você. Se não fosse assim, você iria atrapalhar tudo, com sua obsessiva subserviência ao coração. Seria TPM todos os dias, a cada instante. tenho más notícias, minha cara. A verdade é que você ainda não evoluiu completamente além do estágio do cio. Você nunca me enganou. O que você sempre quis é um homem para chamar de seu. o “meu homem”. Um herói encantado por quem você perca a cabeça. Mas, no fim, ele será devorado. e se tornará um velho senil, brocha e doente, de quem você extirpou toda a masculinidade. Óu, se todas as mulheres são esfinges, por quê seus enigmas são tão simples de serem decifrados ? E por quê todas oferecem em troca apenas serem degoladas ? Onde estão as mulheres cujo enigma é dar à luz o novo homem e o novo mundo ? Não, eu não vou cortar fora a sua cabeça. você mesma já se encarregou de fazê-lo. O grande desafio seria ajudar a colocá-la de volta em cima do pescoço.”

Na tela, as imagens são dos massacres em Ruanda.

“Eu até poderia simpatizar com vocês dois, se não fossem tão perigosos. A quem vocês pensam que enganam ? Vocês não são mamíferos. Todos os mamíferos, assim como os demais animais neste planeta, mantém uma relação de equilíbrio com o seu meio ambiente. Mas vocês não ! Vocês invadem um lugar. Se estabelecem e se proliferam. Até que esgotem todos os recurso naturais. A única forma de se manterem vivos é invadindo um outro lugar e repetir sucessivamente o ciclo de destruição. Existe uma outra forma de vida que obedece a esse mesmo padrão : um vírus. Não, eu não vou destruir vocês. Vou apenas deixar que façam aquilo que mais sabem e que mais gostam: destruir uns aos outros.”

O ator, membro do coro, se dirige para a platéia.

“E não julguem existir algum mórbido prazer em minhas palavras. Meu coração já se exauriu em lágrimas. E tenho sangrado em todas as batalhas. O que me mantém vivo é a plena certeza de que em alguns de vocês já estão brotando as sementes, que foram deixadas desde a aurora dos tempos. E que farão com que, enfim, possamos compartilhar o que é viver sob a ordem da liberdade, igualdade e fraternidade.”




[1] “O Marinheiro”, Fernando Pessoa

ATRAVÉS DOS SONHOS
O coro se levanta. Todos se movimentam, executando uma performance semelhante a do início. As falas são ditas intercaladamente pelos membros do coro.

“Você meu pai ? Você minha mãe ? Quem são esses estranhos que dizem ser meu pai e minha mãe ? Só porque me conceberam numa foda sonolenta e sem graça ? Afastem-se do meu caminho ! Pai da puta que o pariu ! Mãe do caralho ! Eu sou meu pai, minha mãe e eu. Eu mesmo me pari. Arranquei-me de seus culhões e fugi de seu útero.”


“Eu sou a peste ? Não, não, não ! De jeito nenhum ! Vocês dois são a peste em mim. Eu sou a origem do mal ? Não ! O mal já estava em todos os que vieram antes de mim. Eu apenas fui infectado por todos vocês. Pais e mães. Avós e avôs. A linhagem transmissora da peste, desde que o mundo é mundo. Vocês me queriam iguais a vocês: propagadores da peste. Mas eu tinha outros planos. Simplesmente me deixei infectar. Porque esse é o único modo de deter a peste. Eu só poderia lutar contra ela se a aceitasse em mim. Se ela estivesse em cada gene que foi minha herança.”

“Mergulhei no abismo de abismos. Vasculhei os calabouços assombrados nos subterrâneos do meu corpo e da minha alma. Passagens obscuras. embrulhos fedorentos abandonados nos cantos. Esgotos e maldições. Trevas sem qualquer luz."

“E encontrei todos vocês que se tornaram eu. Genealogia de monstros. Torturadores que ouvem poemas enquanto estilhaçam os ossos de suas vítimas. Psicopatas que ejaculam enquanto lentamente asfixiam recém nascidos. Impotentes que se deliciam ao rasgar o ventre de mulheres grávidas e devorar seus fetos. Gênios que, sempre nas sombras e sem um pingo de sangue nas mãos, criam os mais inconcebíveis dispositivos de destruição. E descobri também toda uma multidão de criaturas medíocres e ordinárias. avarentos, invejosos, mesquinhos, preguiçosos e egoístas. Pedaços fantasmagóricos de carne sem brilho algum. Gente. Seres humanos.” 


“Estive frente a frente com o mal, que me encarou sarcástico a cada vez que espreitei de relance o espelho. E me oferecia a morte e a loucura. E me gritava que eu era fraco, que eu estava só e abandonado, que minha luta era inútil e minha busca absurda.“
“Tantas vezes derrotado. Tantas vezes humilhado. Senti o cheiro do meu corpo ardendo na fogueira. vaguei enlouquecido entre os animais.”
“Conheci a derrota no cerne do meu ser.”
“Então abri todas as masmorras. Libertei todos os demônios. Deixei que voltassem ao mundo de quem são filhos. E que procurassem aqueles de quem são pais. Todos eles são vocês. Todos eles são eu. E não sou nenhum deles. Assumi todas as responsabilidades e não sinto nem um pingo de culpa. Meu corpo treme e arde. A porta do céu se abriu. E vislumbrei não o paraíso, mas a utopia. E me torno o transe e o delírio. E sonho um novo homem e um novo mundo.”
“Por que eu deveria arrancar os olhos e minha mãe se enforcar ? Apenas porque tivemos uma boa foda ? Somente porque ela enfim conheceu o orgasmo ? Então, deveria eu explodir as rochas da Terra, só porque, como um lagarto, perambulei sobre elas, que como imensos clitóris se convulsionaram de prazer ? Por que o Sol se tornaria negro ? Somente porque me penetrou com sua luz, me incendiando, e me tornando um êxtase em chamas ?”
“Matar meu pai ? E propagar sua tradição de infâmias e traições ? Não ! O lugar de meu pai jamais me interessou. Ele que fique com seu trono ! Meu reino não é deste mundo, nem de nenhum outro mundo. meu reino nem mesmo tem rei. E nunca foi meu ! É nosso !”
“Destruir a esfinge ? Mas se é ela com seus enigmas que faz com que minha vida se torne um desafio incessante !”
“Desejar a ignorância, a escuridão e a morte ? Não ! Quero ainda mais luz e mais vida e só sei que nada sei.”
“E amei meu pai, porque ele é humano. E amei minha mãe, porque ela é humana. E eles se tornaram enfim aquilo que nunca haviam deixado de ser : meus irmãos. Mãe, pai, vocês sempre estiveram mortos. Eis a luz e eis a vida. Eis a cura da peste, que de mim não mais se disseminará.”
“O que é o homem senão pó soprado através da terra. O que é o homem senão luz incandescente iluminando o céu. Pai, mãe, não sou filho de vocês por mero acaso. Eu os acompanhei enquanto procuravam um ao outro para me darem a chance de viver. Eu já estava com vocês quando durante o coito me desejaram no arder de seu gozo. Me abracem. Me abracem forte. Somos todos tão comuns. E ao mesmo tempo tão raros e preciosos. Somos todos feitos daquela mesma coisa tão efêmera: a matéria dos sonhos. Me abracem. Me abracem fortes todos vocês. Os momentos de plenitude não se esvaem pelos dedos como areia perdida de implacável ampulheta. eles são nossos para sempre. E os viveremos eternamente em toda a sua intensidade.”
“Eu quis encontrar um caminho, entre os milhões de caminhos que levam a parte alguma. Eu quis encontrar os milhões de caminhos parte do caminho que me leva. E que sou eu. pai, mãe, sou o resultado de seus sonhos e não os trairei jamais. E este sonho, a mais intensa realidade, conquistarei como tributo a vocês. A carne de que sou feito enfim flutuará resplandecente, iluminando o caminho que sou eu. Eis este mundo de luz que não é mais vocês nem eu... Mas nós que nos tornamos a luz do mundo...”