30 janeiro 2008

a grande besta

se quando os EUA espirram o restante do mundo tem um resfriado [1], o que acontecerá se a economia norte-americana cair gravemente doente?

a mais nociva enfermidade é a idéia que os mercados são perfeitos e, portanto, tendem ao equilíbrio. os mercados são imperfeitos e no futuro podem nos conduzir a um formidável colapso da economia do planeta. [2]

ao relegar os mercados aos seus próprios sistemas de controle, as autoridades monetárias contavam que os mercados se corrigissem a si mesmos. entretanto, os mercados necessariamente não se corrigem. [3]

ainda mais letal que a bolha financeira é sua inseparável e menos discutida contraparte: a bolha militar.

a estratégia do governo Bush pode ser sintetizada como a combinação de duas operações que, apoiando-se mutuamente, deveriam ter relançado e consolidado o poderio imperial dos EUA: a expansão rápida de uma bolha consumista-financeira para produzir um forte impulso econômico associada a uma ofensiva militar que lhe daria a hegemonia energética global e daí a primazia financeira. [4]

enquanto os magos de Wall Street engendravam a bolha de crédito, a previsão dos falcões neocon era que os cowboys retornariam para a terra dos bravos num desfile triunfal em Times Square. e não em deprimentes sacos pretos...

com a irresistível chegada da recessão, estariam também os bárbaros batendo às portas do império norte-americano?

ou já não há mais qualquer bárbaro que seja? mas o que será dos EUA sem os bárbaros? afinal, os bárbaros eram um tipo de solução... [5]

através de suas próprias empresas em território chinês, os EUA se tornaram "Made in China". são os maiores importadores da produção offshore das fábricas norte-americanas instaladas na China, cuja economia depende em cerca de 70% do comércio exterior.

com o déficit fiscal dos EUA alcançando o nível das reservas internacionais da China, os norte-americanos pressionam o consumidor chinês a diminuir a sua poupança, a fim de preservar o dinamismo do comércio internacional.

para os chineses, entretanto, é prudente poupar hoje pensando no amanhã. já os norte-americanos desejam continuar a gastar hoje o que ainda não se ganhou. [6]

qual o tamanho da besta? [7] qual foi ovo da serpente?

o ano de 2001 não é somente o dos atentados de 11/09 e da declaração da “guerra sem fim” por George W. Bush. é também o ano da entrada da China na OMC (Organização Mundial do Comércio). além disto, 2001 é o ano em que as autoridades monetárias norte-americanas adotaram a ampliação do crédito hipotecário, como resposta à crise da bolsa de ações de alta tecnologia (Nasdaq). [8]

os gastos dos consumidores norte-americanos são responsáveis pela maior parte da economia dos EUA. e o consumo dos EUA é o dínamo que mantém em movimento a economia globalizada.

por outro lado, os 50% mais pobres da população dos EUA possuem somente 2,8% do patrimônio, e o 1% mais rico, 32,7%. [9]

como o crescimento da renda salarial é insuficiente para promover a demanda exigida, a resposta ao dilema encontra-se na expansão do crédito, o que desconecta o consumo da renda disponível.

a hipertrofia dos mercados financeiro se expande muito além do ritmo de crescimento da economia real. os negócios com derivativos, que representavam por volta do ano 2000 cerca de duas vezes o Produto Bruto Mundial, eram em 2006 oito vezes maiores. em 2010 essa massa especulativa representaria 16 vezes o Produto Bruto Mundial. [10]

os recursos das importações que os EUA fazem da China e Japão retornam à economia norte-americana como investimentos em títulos do Tesouro norte-americano, permitindo que se mantivessem os juros baixos, o crédito fácil e o consumo forte.

são os exportadores quem financiam o déficit comercial dos EUA, possibilitando ao mercado norte-americano manter seu nível de consumo de produtos importados.

assim o ciclo se fecha, com a besta engolindo o próprio rabo.

entretanto, ao mesmo tempo que protege o mundo de uma recessão, o déficit em conta corrente dos EUA ameaça a economia mundial com um colapso do dólar.

num cenário de crise, com o dólar se desvalorizando rapidamente, os detentores de títulos norte-americanos podem começar a vendê-los.

com isto, os preços dos importados disparariam nos EUA. Japão e China teriam dificuldade para manter suas exportações. mesmo a Rússia depende de sua venda de petróleo, que está relacionada com a saúde da economia internacional.

apesar das perdas da crise do “subprime” estarem estimadas entre US$ 400 bilhões e US$ 600 bilhões, até o momento só foram reconhecidos US$ 130 bilhões. [11]

com o dólar cadente e as lojas de Manhattan convertidas em algo parecido com um mercado de rua de Tijuana, para turistas alemães [12], a questão não é mais se haverá aterrissagem forçada ou não da economia norte-americana, mas quão dura será. [13]

a recessão dos EUA é inevitável e já começou. será feia, profunda e severa. [14]

qual o tamanho da besta?

tão grande quanto a impossibilidade dos EUA terem seu abissal déficit comercial perpetuamente financiado pelo resto do mundo. ou pretender reduzi-lo graças a uma queda infinita do dólar, sem com isto debilitar gravemente a economia internacional. [15]

apesar de seu tamanho, a besta acabou por engolir o próprio rabo.


[1] painel no Fórum Econômico Mundial – 2008, em Davos
[2] George Soros
[3] George Soros, no Fórum Econômico Mundial – 2008, em Davos
[4] Jorge Beinstein, “Estados Unidos: a irresistível chegada da recessão”, 11/06/2007
[5] Konstantin Kaváfis, “Esperando os bárbaros”
[6] Cheng Siwei, Vice-Presidente do Comitê de Acompanhamento Econômico do Congresso Chinês, no Fórum Econômico Mundial – 2008, em Davos
[7] Javier Santiso, vice-diretor da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, no Fórum Econômico Mundial – 2008, em Davos
[8] François Chesnais, “Até onde irá a crise financeira”
[9] François Chesnais, “Até onde irá a crise financeira”
[10] Jorge Beinstein, “A solidão de Bush, o fracasso dos falcões”, 30/07/2007
[11] José Roberto Mendonça de Barros, entrevista ao Valor, 28/01/2008
[12] Peter Goodman, “Temor de recessão ganha força nos EUA”, 01/12/2007
[13] Nouriel Roubini, no Fórum Econômico Mundial – 2008, em Davos
[14] Nouriel Roubini, “Quando os EUA espirram o resto do mundo constipa-se”, 25/01/2008
[15] Michel Husson, “As raízes da crise”

26 janeiro 2008

daltonismo [1]


no dissimulado racismo brasileiro, todos os pardos são negros.

ou seria ao contrário?

pela insidiosa falácia da miscigenação, com os brancos impositivamente definindo quem é ou não negro, uma população de mestiços e mulatos é maquiada, embranquecida, para se dividir, enfraquecer e melhor se discriminar os negros.

afinal, quem é negro? e quem são os brancos no Brasil?

teríamos desenvolvido uma sofisticada forma de racismo?

camuflado como democracia racial, um racismo daltônico que nos impede de ver a diferença entre negros e brancos? [2]

no racismo, como na arte e no amor, o mais profundo é a pele? [3]

pois não basta uma simples olhadela na cor da pele, no formato dos lábios e do nariz e no tipo de cabelo para o racista discriminar os negros... pronto, tão simples assim... [4]

seria mesmo através deste olhar racista a melhor maneira de se chegar a ver a solução para o fim da discriminação racial?

ou é ao enxergar o mundo pelos olhos do racista que introjetamos sua visão, legitimando-a numa consagração às avessas?

a raiz do racismo é a crença em raças humanas. e o racismo jamais será superado enquanto prevalecer esta crença. embora combatam os efeitos, políticas públicas baseadas em raças reforçam e institucionalizam a causa. [5]

“raça” não é matriz de direitos. somos humanos. e os pretos, as mulheres, os homossexuais e os deficientes são todos vítimas de discriminações. portanto, a matriz de direito é o fato social da discriminação. e meu direito a igualdade é minha condição humana e não a crença na raça. [6]

muito embora daltônicos não sejam capazes de ver algumas cores, possuem visão noturna acima da média. também distinguem com total nitidez o amplo espectro de tons de cinza unindo o branco ao negro.

entretanto, o pior tipo de daltonismo talvez seja o político, por reduzir a complexidade das relações sociais a uma maniqueísta abordagem preto no branco.


[1] sobre post e comentários no blog do Luis Nassif, “Somos racistas?”, 24/01/2008
[2] Orlando, comentário no blog do Luis Nassif, “Somos racistas?”, “[...]o racismo é daltônico e não percebe a diferença.”
[3] Paul Valery
[4] Pyotr Konstantin Schitikoff, comentário no blog do Luis Nassif, “Somos racistas?”
[5] J. Roberto Militão, comentário no blog do Luis Nassif, “Somos racistas?”
[6] J. Roberto Militão, comentário no blog do Luis Nassif, “Somos racistas?”

19 janeiro 2008

lobos e homens

a evolução política brasileira tem sido significativa. e é bom que sobre ela reflitam os jovens brasileiros, que conheçam o quanto de sacrifício devotaram os saudosos patriotas para que se arraigasse nas futuras gerações o amor à liberdade. [1]

Edison Lobão é o novo Ministro das Minas e Energia, nomeado por Lula. [2]

o senador, que era filiado ao DEM (antigo PFL) e abandonou a legenda no início do ano para se filiar ao PMDB, tem um impressionante currículo de condecorações:

- Medalha do Mérito Jornalístico Quintino Bocaiúva;
- Medalha do Pacificador;
- Ordem do Mérito Santos Dumont;
- Ordem do Mérito Militar;
- Ordem do Mérito Aeronáutico;
- Ordem do Mérito Naval;
- Ordem do Mérito Ipiranga;
- Ordem do Mérito Rio Branco;
- Medalha do Imperador D. Pedro II;
- Medalha do Mérito Mauá;
- Mérito La Ravardière;
- Grã-Cruz Judiciário do Trabalho;
- Grã-Cruz da Ordem dos Timbiras (MA);
- Ordem do Mérito de Brasília no grau de Grã-Cruz;
- Ordem do Poder Judiciário do Maranhão;
- Medalha de Mérito do Ministério Público do Maranhão;
- Ordem do Mérito do Tocantins no grau de Grã-Cruz;
- Ordem do Mérito de Rondônia no grau de Grã-Cruz;
- Ordem do Mérito da Inconfidência - Minas Gerais;
- Ordem do Mérito Judiciário Militar;
- Ordem do Congresso Nacional.

a respeito dos assuntos de seu ministério, Lobão afirma estar lendo alguma coisa que lhe chega às mãos. “A imprensa, por exemplo, está escrevendo muita coisa técnica. Todos os dias saem até informações boas. Estou me informando sobre energia elétrica, sobre hidrelétrica, sobre gás, sobre petróleo.” [3]

em sua obscura carreira jornalística, o soturno Lobão usava reportagens e crônicas políticas para transmitir recados saídos dos serviços de informações contra opositores da ditadura. não poderia imaginar na época a retribuição hoje recebida pela democracia de Lula e do PMDB. [4]

numa expressiva prova de gratidão, Lobão reconhece uma “fonte que deve ser considerada e consultada sempre que necessário” [5]: Dilma Roussef - torturada física, psíquica e moralmente por 22 dias durante a ditadura militar. [6]

ao manter o país cindido numa ilusória dicotomia entre os que o apóiam e aquele que o renegam, Lula inaugura uma nova forma de dominação no Brasil. não é patrimonialismo, não é patriarcalismo, não é populismo...

não são mais os dominados voluntariamente consentindo na sua própria exploração. são os dominantes que consentem em ser politicamente conduzidos pelos dominados, desde que estes não questionem a exploração a que estão sujeitos. uma hegemonia às avessas. [7]

enquanto lobos já não mais se dissimulam sob peles de cordeiros, os cordeiros, eles mesmos, se tornaram o lobo dos cordeiros.


[1] Edison Lobão, perfil do senador divulgado pelo site do Senado Federal
[2] 01/2008
[3] Edison Lobão, Folha de São Paulo, 12/01/2008
[4] Jânio de Freitas, “O laranja”, 17/01/2008
[5] Edison Lobão, entrevista à Folha de São Paulo, 18/01/2008
[6] Dilma Roussef, depoimento ao projeto "Brasil Nunca Mais"
[7] Francisco de Oliveira, “Hegemonia às avessas”

12 janeiro 2008

zé ninguém

(sobre “O Consultor”, Daniela Pinheiro, Revista Piauí, Janeiro de 2008)

José Dirceu não é qualquer um. mas no jogo jogado, a conta caiu em seu colo.

tudo tem uma explicação. tem que ter.

ao ser indicado com Ministro da Casa Civil do primeiro governo Lula, Dirceu afirmou que realizava “o sonho de sua geração”. em se tratando de uma geração cujos mais preciosos sonhos viraram pesadelos crônicos, a declaração soava como um péssimo augúrio. [1]

como se sabe, o mau presságio acabou se confirmando... [2]

mudou-se a nossa estrela, as glórias vieram tardes e frias. Dirceu amarga um novo exílio, sem que possa sequer se queixar de alguma Marília ter-lhe roubado o sincero coração. [3]

cassado, inelegível até 2015, citado no processo do Mensalão como chefe de uma organização criminosa, Dirceu não tem muita escolha. faz apenas o que dá. está muito pessimista quanto ao futuro e ao lugar que a História lhe reservará.

a festa acabou, o povo sumiu, o dia não veio... protestava. está sem discurso, cuspir já não pode. não veio a utopia e tudo acabou. tudo fugiu... [4]

quando fez treinamento de guerrilha em Cuba, Dirceu não se aplicava nos exercícios com gosto, não era a praia dele.

parece bem mais à vontade agora. tudo o que Dirceu faz está ligado ao capitalismo. estratégia de investimentos, fusões e aquisições. lobby. consultoria. tráfico de influência.

não costuma se lembrar bem das coisas. elas vão acontecendo e ele vira a página. passou, passou. o que fica para trás, ele esquece.

mas ainda não se esqueceu que a sede do PT em Porto Alegre foi construída com dinheiro de caixa 2. e ainda se recorda muito bem para quem eram as malas de dinheiro que Delúbio conseguia com doações dos empresários.

sempre que é insultado publicamente, Dirceu permanece impassível. sua expressão facial se esvazia. não demonstra surpresa, raiva, medo, constrangimento. enfrenta as agressões com a cara mais lisa do mundo.


talvez lhe ajudem os cremes faciais feitos com placenta e comprados em Cuba.

para Dirceu, as hostilidades que sofre não passam de lógica matemática e probabilidade estatística. percentuais. unsuccess fee.

Dirceu foi o comandante em chefe do processo que transformou o PT, de um organismo vivo e a serviço dos movimentos sociais, numa máquina burocrática para atender ambições pessoais.

foi com Dirceu que a militância petista abandonou as ruas e o partido consolidou o modelo de campanha eleitoral financiado pelos grandes empresários e conduzido pelos marketeiros.

hoje, restou apenas um quadro na parede. um espantoso peixe cabeludo. assinado por José Sarney.

mas como dói! [5]



[1] arkx. “a hora da verdade”, 14/12/2002
[2] arkx. “o sonho de uma geração”
[3] Tomás Antônio Gonzaga, “Marília de Dirceu”
[4] Carlos Drummond de Andrade, “José”
[5] Carlos Drummond de Andrade, “Confidências do Itabirano”

10 janeiro 2008

branco de alma negra

como se tornar negro? o que é ser negro?

de qual fonte brota a límpida e pura negritude?

qual certificação pode comprovar a autenticidade de um negro puro sangue?

se de minha bisavó mulata herdei a ramificação genealógica que traz à flor da pele raízes africanas, isto me faz um pouco negro?

um pouco, ao menos?

mas... e minha avó italiana? e minha tataravó índia?

estou confuso. ou cafuzo?

terá sido a miscigenação de meus antepassados uma falácia? [1]

ou o leite branco sugado das tetas pretas de minha mãe de leite foi capaz de escorrer por meu sangue, através de minha carne, para penetrar em minha alma e escurecê-la, tingindo-a indelevelmente de negro?

como é possível, com tanta certeza, alguém se declarar negro?

a cor da pele? os traços fisionômicos? os cabelos e o nariz? o luminoso sorriso dos mais brancos dentes? a incomparável explosão das fibras musculares? o gingado dos quadris? a genética?

o biólogo James Watson, que em 1962 ganhou o Prêmio Nobel por ser um dos descobridores da estrutura do DNA, deu recentemente uma polêmica declaração, afirmando ser cientificamente comprovada a inferioridade da inteligência dos negros africanos. [2]

apesar de ser um típico espécime WASP [3], a análise do genoma de Watson revelou 16% de genes herdados de um antepassado africano, enquanto a maioria dos europeus brancos não tem mais de 1%. Watson possui um genoma compatível com quem tem um bisavô africano. [4]

quanta capoeira e candomblé? quanta feijoada e samba no pé? quanto vatapá, acarajé e munguzá?

quanto preconceito, racismo, discriminação? quanta escravidão é preciso para se ter um negro?

confesso. o segredo: somos brasileiros!

e ninguém pode dizer se somos brancos, mulatos ou negros.

mestiços. da raça humana.

como descendentes de escravos e de senhores de escravos, todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. esta é a mais terrível de nossas heranças. mas nossa crescente indignação contra esta herança maldita nos dará forças para conter os possessos e criar aqui, neste país, uma sociedade solidária. [5]

nossa mais forte ação afirmativa é a cultura. o sincretismo. a mistura. não rejeitamos nada. de braços abertos. abraçamos tudo. incorporamos tudo. numa síntese absolutamente original.

um presente para o mundo. um povo novo: nós, brasileiros.


[1] Orlando, comentário no Blog do Luis Nassif, em 08/01/2008: “O que ocorre é que há um consenso de que somos miscigenados, isto é, uma "democracia étnica" - a única do planeta - é isso também é uma falácia.”
[2] James Watson: “Todas as políticas sociais são baseadas no fato de que a inteligência deles [negros] é igual à nossa, apesar de todos os testes dizerem que não".
[3] "Branco, Anglo-Saxão e Protestante" (White, Anglo-Saxon and Protestant).
[4] Kari Stefansson, DeCODE Genetics
[5] Darci Ribeiro, “O povo brasileiro”