15 maio 2007

“made in Brazil”

muito embora tenha sido notável o crescimento da economia brasileira entre 1930 e 1980, nosso modelo de desenvolvimento nunca foi autônomo. desigual e combinado, associado e dependente, o desenvolvimento brasileiro foi “consentido”.

o avanço histórico no Brasil se processa por um crescimento desigual - mais rápido ou mais lento - das forças produtivas, fazendo com que características de etapas inferiores e superiores de desenvolvimento se combinem em nossa sociedade. [1]

não fomos constituídos como nação, nem mesmo como sociedade. surgimos como uma empresa territorial voltada para fora e controlada de fora. [2] a implantação portuguesa na América teve como base a empresa agrícola-comercial. o Brasil é o único país das Américas criado, desde o início, pelo capitalismo comercial sob a forma de empresa agrícola. [3]

organizou-se uma holding multinacional, com administração portuguesa, capitais holandeses e venezianos, mão-de-obra indígena e africana, tecnologia desenvolvida em Chipre e matéria-prima dos Açores e da ilha da Madeira – a cana. em torno do excelente negócio do açúcar, a primeira mercadoria de consumo de massas em escala planetária, se formou o moderno mercado mundial. [4]

do ponto de vista da história mundial, a escravidão foi um anacronismo, pois já havia desaparecido da Europa Ocidental. entretanto, como solução para superar a carência de mão-de-obra demandada pela empresa agrícola-exportadora, a escravidão colonial cresce como um braço do capitalismo comercial. assim, um modo de produção historicamente já superado, novamente ressurge, em conseqüência das exigências de um sistema mais moderno, e com ele se combina e dele faz parte.

a expansão do capitalismo no Brasil se dá introduzindo relações modernas no arcaico e reproduzindo relações arcaicas no moderno. [5] o “moderno” agronegócio dos usineiros do álcool não produz comida [6] e submete os “trabalhadores em um regime de escravidão disfarçada” [7], impondo uma rotina aos cortadores de cana que lhes reduz a vida útil de trabalho à cerca de 12 anos, comparável a dos escravos em 1850, antes da proibição do tráfico negreiro. [8]

o “arcaico” e o “moderno” se entrelaçam e formam o nó que interdita o avanço do país para um desenvolvimento com inclusão social.

surgida nas entranhas do complexo cafeeiro, a burguesia industrial jamais teve a mais longínqua pretensão de liderar um projeto de soberania nacional.

associada ao latifúndio, em cujo berço esplêndido foi nascida [9], e dependente dos compromissos externos, para manter sua sustentação interna, a burguesia brasileira sempre preferiu se acomodar na condição de sócio-menor do capitalismo internacional, voltando as costas à aliança com as classes subordinadas e ao compromisso com o desenvolvimento nacional. [10]

o capital industrial brasileiro não surge num momento de crise do complexo cafeeiro exportador. ao contrário, desponta num instante de auge, em que a taxa de rentabilidade alcançava níveis elevadíssimos. os lucros gerados entre 1889 e 1894 não encontravam plena aplicação na economia cafeeira. a acumulação financeira excedia as possibilidades de acumulação produtiva. bastava, portanto, que os projetos industriais assegurassem uma rentabilidade positiva, garantindo a reprodução global dos lucros, para que se transformassem em decisões de investir. [11]

o núcleo da nascente burguesia industrial brasileira encontra suas origens na emigração européia. entretanto, ao contrário do mito do self-made man, de origem modesta e que constitui fortuna graças ao trabalho árduo e persistente, o imigrante que vem a se tornar proprietário de empresas no Brasil aqui já chega com alguma forma de capital, pertencia a famílias de classe média, possuía também instrução técnica, e, muitas vezes, havia sido contratado como administrador. [12]

para a burguesia industrial nascente, a base de apoio para o início da acumulação não é a pequena empresa industrial, mas o grande comércio ligado às atividades de importação e exportação. do mesmo modo que a exportação, a importação é dominada em grande parte por empresas estrangeiras. por sua vez, o comércio interno é controlado pelos importadores. graças a sua origem social, o burguês imigrante encontra facilmente um lugar no grande comércio. [13]

desse modo, o latifúndio exportador, a importação, o grande comércio e a burguesia imigrante, que vem a ser o núcleo da burguesia industrial nascente, estão todos intimamente conectados.

dependente de capital externo e associado aos países centrais, o desenvolvimento brasileiro é caracterizado por desigualdades profundas, relacionadas com a superexploração da mão-de-obra, o que possibilita a transferência de lucros para o exterior. a desigualdade interna se torna, desse modo, um elemento estrutural da economia mundial. [14]

o subdesenvolvimento não se constitui em de etapa obrigatória dentro de uma perspectiva evolucionista em direção ao desenvolvimento. o subdesenvolvimento é a forma pela qual o desenvolvimento capitalista se efetuou nas ex-colônias - as quais tinham a função histórica de serem elementos subordinados na cadeia de acumulação de capital. o subdesenvolvimento é o lugar próprio da periferia na divisão internacional do capitalismo, exprime uma relação de dependência e subordinação em relação aos países centrais do sistema. como resultante se tem a criação de estruturas híbridas, uma parte das quais tende a se comportar como um sistema capitalista, a outra, a manter-se dentro da estrutura preexistente. [15]

apesar da aparente oposição formal, o “moderno” e o “atrasado” se integram. a combinação de um intenso processo de industrialização com uma estrutura agrária basicamente atrasada produz taxas extraordinárias de acumulação por um lado, e por outro, níveis absurdos de exploração da força de trabalho. [16]

a partir de 1930, com a mudança da potência hegemônica no plano internacional, as condições para a industrialização do Brasil se ampliam. o capitalismo financeiro europeu mantinha a política de organizar o suprimento de matérias-primas e produtos agro-primários para a metrópole, preservando o mercado periférico para os produtos industriais metropolitanos. outra, porém, seria a atitude do capital financeiro norte-americano, que não era supridor tradicional de produtos industriais no Brasil e contava com uma vasta e diversificada produção metropolitana, condição que o desenvolvimento da técnica só tendia a consolidar, industrializando a agricultura e a produção de matérias-primas. conseqüentemente, esse novo capital financeiro pouco tinha a perder com o desenvolvimento de alguma indústria no Brasil e, ao contrário, muito tinha a ganhar. [17]

em 1950, Getúlio Vargas contava com uma versão do Plano Marshall para a América Latina. entretanto, a estratégia dos EUA previa o investimento privado das grandes corporações, e não a ajuda oficial. foi Juscelino quem compreendeu o espírito da época. sem Plano Marshall, tivemos a Volkswagen e a Ford... [18]

as empresas multinacionais e o capital financeiro internacional não impedem, mas condicionam perversamente o desenvolvimento econômico, promovendo a concentração de renda da classe média para cima e estimulando o autoritarismo. a causa do atraso dos países subdesenvolvidos não está apenas na exploração do centro imperial, mas também, senão principalmente, na incapacidade das elites locais, especificamente da burguesia, de serem nacionais, ou seja, de pensarem e agirem em termos dos interesses nacionais. [19]

os países periféricos passam a produzir certos artigos industriais, primeiro para o mercado interno, depois para exportação, inclusive para os próprios países centrais, quando por eles não podem mais ser produzidos tão lucrativamente. longe de diminuir a dependência, este processo apenas a intensifica e fracassa na resolução do problema central do desenvolvimento do mercado interno. [20]


[1] Trotsky, "A história da revolução russa"
[2] Caio Prado Jr, "A formação do Brasil contemporâneo"
[3] Celso Furtado, "Análise do Modelo Brasileiro"
[4] César Benjamin, "Uma certa idéia de Brasil"
[5] Francisco de Oliveira, “Crítica à razão dualista”
[6] Ariovaldo Umbelino de Oliveira, Correio da Cidadania, 02/05/2007
[7] Luiz Felipe de Alencastro, sequenciasparisienses.blogspot.com
[8] Maria Aparecida de Moraes Silva, citada por Mauro Zafalon, Folha de São Paulo, 29/04/2007
[9] Wladimir Pomar, "Um mundo a ganhar"
[10] FHC, "Empresariado industrial e desenvolvimento econômico"
[11] João Manuel Cardoso de Mello, "O capitalismo tardio"
[12] Warren Dean, "A industrialização de São Paulo"
[13] Sérgio Silva, "Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil"
[14] Theotônio dos Santos, “Dependência e mudança social”
[15] Celso Furtado, “Elementos de uma teoria do desenvolvimento”
[16] Francisco de Oliveira, “Crítica à razão dualista”
[17] Ignácio Rangel, “História da dualidade brasileira”
[18] José Luis Fiori, “O capitalismo e suas vias de desenvolvimento”
[19] Luiz Carlos Bresser-Pereira, “Do ISEB e da CEPAL à Teoria da Dependência”

[20] André Gunder Frank, “Acumulação dependente e subdesenvolvimento”

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