08 abril 2007

tragédia e farsa

mesmo após o fim da escravidão e da proclamação da República, o uso da chibata como medida disciplinar continuou sendo aplicado na Marinha brasileira.

como nos tempos do pelourinho, os marinheiros, em esmagadora maioria negros, eram açoitados, por determinação da oficialidade branca, ao som de tambores e diante dos companheiros perfilados.

durante a Revolta da Chibata, deflagrada em 22/11/1910, os marujos negros, liderados por João Cândido, se amotinam pelo fim da chibata, criando um impasse institucional.

os comandantes da Marinha queriam uma rigorosa punição dos sublevados. governo e políticos avaliavam que, naquele momento, os marinheiros estavam militarmente mais fortes, pois controlavam os principais navios da armada, mantendo os canhões apontados para a capital da República.

o governo foi pego de surpresa. grande parte da população da cidade se entrega ao pânico. somente em um dia partem 12 trens especiais para Petrópolis, levando 3.000 pessoas.

o povo comum está feliz. a gente de cor, os escravos de ontem, sorriem com orgulho mostrando a brancura de seus dentes, porque vem nascer para eles uma nova era de liberdades não sonhadas. [1]

em 1850, na província do Rio de Janeiro, o número de escravos (294.000) ultrapassava o número de livres e libertos (264.000). na cidade do Rio, viviam na mesma data, 266.000 habitantes dos quais 110.000 (41%) eram escravos, formando a maior concentração urbana de cativos das Américas e da época moderna. ricos, remediados e pobres; padres, padeiros e militares; fazendeiros e escreventes; muita gente possuía escravos. [2]

Rui Barbosa apóia os marinheiros e condena os “abusos com os quais, na gloriosa época do abolicionismo, levantamos a indignação dos nossos compatriotas”.

a revolta dura cinco dias e acaba vitoriosa. os amotinados são anistiados com a aprovação de um projeto, em cujo artigo 1° constava:

"Será concedida anistia aos insurretos da Armada Nacional, se estes, dentro do prazo que lhes fora marcado, pelo Governo, se submeterem às autoridades constituídas".

porém, logo vem a traição. a anistia fora uma farsa para desarmar os amotinados.

os marinheiros procuram Rui Barbosa, mas sequer são recebidos. civis e militares se unem para restaurar honra e brios da Marinha.

não podiam admitir que João Cândido, o "Almirante Negro", se tornasse a alma da Marinha brasileira. e que sua sombra fosse o ídolo dos marinheiros de amanhã. e tivesse suas façanhas cantadas pela massa popular, que imortaliza mais que os bronzes oficiais. [3]

os líderes do movimento são expulsos. cerca de 100 marinheiros são presos e mandados, nos porões do navio "Satélite", para serem abandonados na Floresta Amazônica. alguns são fuzilados e atirados no mar.

na noite de Natal de 1910, João Cândido é preso e enviado para uma masmorra na Ilha das Cobras, com mais 17 companheiros. são jogados em uma cela recém-lavada com água e cal. na manhã seguinte, sobreviviam apenas dois presos. um deles, João Cândido. o médico da Marinha, no entanto, diagnosticou a causa das mortes como sendo "insolação".

seria impossível explicar os modestos avanços e os contínuos recuos do processo democrático no Brasil sem incluir aí a colaboração ativa da burguesia brasileira. [4]

a cada vez que desafiados pelos trabalhadores, os setores dominantes brasileiros nunca hesitaram em reagir com violência brutal. forte com os fracos e submissa aos poderosos, a burguesia brasileira jamais teve o menor prurido em se manter de joelhos frente ao capital internacional.

fatos e personagens de grande importância na história ocorrem, por assim dizer, duas vezes. a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. [5]

em acordo firmado com os controladores de vôo, para por fim ao movimento grevista [6], o governo Lula se comprometera a rever transferências e afastamentos e assegurava que não seriam praticadas punições em decorrência da greve. também abria um canal permanente de negociação com representantes da categoria, inclusive dos controladores militares, para o aprimoramento do tráfego aéreo brasileiro, tendo como referência a implantação gradual de uma solução civil.

os grandes meios de comunicação se unem na exigência de punição aos grevistas, condenam a posição conciliatória do governo e incitam uma rebelião militar.

um presidente incompetente e leniente [7] cedera à extorsão dos amotinados, desautorizando o comando da Aeronáutica, enquanto deveria ter erradicado a insubordinação e punido os infratores [8], que se valeram até da sublevação e da chantagem para emancipar-se das Forças Armadas. [9]

após oficiais da Aeronáutica, encarregados da chefia do tráfego aéreo, abandonarem seu posto [10], falta tão grave quanto à dos controladores, e a coação sofrida em reunião convocada unilateralmente pelos comandantes militares [11], algo inadmissível numa democracia consolidada, na qual a sociedade civil tem controle sobre os militares, Lula volta atrás e rasga o acordo assinado com os controladores. [12]

as raízes da atual crise aérea são contemporâneas ao início do sucateamento dos serviços públicos brasileiros, remontando aos governos Collor e FHC.

matéria publicada no Jornal da Tarde, em 13/12/2000, com o título "Controle de vôo: profissão perigo", já relatava que o tráfego aéreo estava à beira de um colapso, com a tecnologia cheia de falhas, as normas internacionais de segurança desrespeitadas diariamente e as condições de trabalho prejudicando a saúde dos controladores de vôo, aumentando ainda mais os riscos de acidentes. [13]

em 12/12/2006 relatório do TCU (Tribunal de Contas da União) apontou o contingenciamento de recursos como a principal causa para o "apagão" aéreo. desde 2004, foram cortados R$ 522 milhões do setor. [14]

apesar de todas as suas postergações, hesitações, meias-medidas, apaziguamentos e conciliações, o governo Lula sempre sabe como atender com presteza imediata a voz do dono.

o rendimento da poupança estava incomodando os banqueiros e foi alterado sem delongas. os resseguros privatizados precisavam de regulação para abrigar os interesses das grandes corporações e ela veio com a rapidez de um relâmpago. [15]

decisão tomada no âmbito da CVM e BC, que são órgãos reguladores, sem poder decisório, permite a fundos multimercados investir no exterior, sancionando, num país que tanto necessita de capitais de investimento, a exportação de capitais. [16]

ao fazerem sua própria história, os homens não a fazem como querem, sob circunstâncias de sua escolha, e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. a tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. [17]

todo um povo que pensava ter comunicado a si próprio um forte impulso para diante, se encontra de repente trasladado a uma época morta, e para que não possa haver sombra de dúvida quanto ao retrocesso, surgem novamente as velhas datas, o velho calendário, os velhos nomes, os velhos éditos e os velhos esbirros da lei que há muito pareciam desfeitos na poeira dos tempos. [18]



[1] Joaquim Edwards Bello, "Tres Meses en Rio de Janeiro"
[2] Luiz Felipe de Alencastro, "II - O escravismo no Brasil, em Cuba e nos EUA"
[3] Joaquim Edwards Bello, "Tres Meses en Rio de Janeiro"
[4] Octávio Ianni, "A revolução brasileira"
[5] Karl Marx, "O 18 Brumário"
[6] 31/03/2007
[7] Eliane Catanhêde, "Incompetência e leniência", 03/04/2007
[8] Editorial da Folha de São Paulo, 01/04/2007
[9] Editorial da Folha de São Paulo, 03/04/2007
[10] 01/04/2007
[11] 02/04/2007
[12] arkx, "a lição da chibata", 04/04/2007
[13] Fernando Silva, "A crise do tráfego aéreo e o movimento dos controladores"
[14] Juliano Basile, Valor Econômico, 13/12/2006
[15] Léo Lince, "Modo lulista de governar", 05/04/2007
[16] Luis Nassif, "Exportando capitais", 02/04/2007
[17] Karl Marx, "O 18 Brumário"
[18] Karl Marx, "O 18 Brumário"

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