03 março 2006

TIRÉSIAS QUESTIONA O HERÓI

Trevas dominam o palco. Apenas uma luz mortiça numa das extremidades. De costas contra uma parede de metal frio e negro, há um homem agachado. Está sujo e ferido, bastante ensaguentado, e com as roupas em farrapos. Ele esconde sua cara entre os braços.

O homem puxa seus cabelos com violência, diversas vezes. Levanta o rosto e com as mãos na cabeça, solta gritos lancinantes.

A solidão e o desespero do herói abandonado nas masmorras e calabouços. A coragem e a ousadia frente a frente com a tortura e a morte.

Herói :

“Eis-me a trilhar o derradeiro caminho, a contemplar os últimos raios de sol. Este é o fim. A acolhedora morte me leva viva às margens de um rio de águas amargas, sem desfrutar de meu sonho. Sou, desventurada, arrastada por este franqueado caminho. O brilho desta flama sagrada já não me é dado, infeliz, contemplar. Minha morte não-chorada amigo nenhum lamentará. Estou só. Não me choram amigos. Vede que leis me golpeiam. Parto, a hora chegou. Vede os males que aqui padeço dos homens por ser piamente piedosa.” [1]

O foco de luz se extingue. Surge Tirésias. Está sem óculos escuros e não usa a bengala. Muito agitado e nervoso, mas sem qualquer dificuldade para andar, se move de um lado para o outro, rodopiando sem direção.

Tirésias :

“Eis o herói. Mais uma vez doando sua vida para alimentar a história. Mais uma vez enfrentando o supremo sacrifício. Eis a tragédia. Mais uma vez morremos no final... “


“Navegar é preciso. Viver não é preciso.”

“Meus cegos olhos se cansaram de presenciar tanta desgraça e infortúnio. Estou farto de heróis mortos. Pobre do povo que precisa de heróis... “

“Os heróis querem salvar o mundo ? Mas o que há para se salvar nesse mundo agonizante ? E querem os homens serem salvos ? Ou é o homem o próprio mal que deve ser exterminado ?”

“Chega de renúncias... “

“Isto tudo já me encheu.”

“Jocasta se suicida. Édipo arranca os olhos. Antígona morre. Creonte é consumido pela culpa. O coro faz coro. A platéia aplaude. Os nobres Patrícios sorriem satisfeitos. E os deuses prosseguem com suas orgias olímpicas.”

“Chega ! Tirésias está farto !”

“A tragédia grega já me encheu. Estou cansado desta balela. Isto é um blefe. Uma mera diversão para os deuses. Um incessante martírio para os humanos.”

“Para cada déspota destronado milhares de diminutos pequenos tiranos se proliferam no cotidiano. Minúsculos tiranos, parasitas dos nossos mais recônditos desejos. Microscópicos tiranos, inseridos em cada gesto, em cada pensamento, em cada palavra. São eles a fonte inexaurível de todo o sofrimento e de toda a opressão."

“Estou farto de tragédias ! ”

“Quero ver ! Quero a luz ! Ah ! O tempo é chegado. Basta de mortes !”

“Ora, a morte...”

“Onde está o homem que é maior do que a morte ? A morte ... “

“Por quê é mesmo que se morre ? Talvez por não se sonhar bastante... “ [2]

“Paro à beira de mim e me debruço... Abismo...E nesse abismo o Universo. Com seu tempo e seu espaço, é um astro, e nesse alguns há, outros universos, outras formas de Ser com outros tempos, espaços e outras vidas diversas desta vida.” [3]

“Não se trata de tornar os sonhos reais. Quando é a própria realidade que deve ser tornar um sonho. O sonho é mais intenso e mais real do que a realidade.”

Tirésias em transe. Delira. Já não é mais o vidente que anuncia e decifra os mistérios e segredos do futuro, do dia que virá, do retorno ao Paraíso perdido. Tirésias se torna a testemunha da Utopia oculta no presente. Daquilo que surpreenderá a todos, não por ser exótico, mas pelo fato de poder por tanto tempo ter estado oculto quando terá sido o óbvio.

“O homem novo vive entre nós ! Ele está aqui ! Isto basta-lhe ? Vou-lhe dizer um segredo : eu vi o homem novo. É intrépido e cruel ! Tive medo diante dele !” [4]

“Agora eu sei, eu adivinho. O reino dos homens terminou. Chegou Aquele que o terror dos povos receava. Aquele que os padres inquietos exorcizavam; que os feiticeiros evocavam nas noites sombrias, sem o ver ainda; a quem os pressentimentos dos mestres passageiros do mundo emprestaram todas as formas monstruosas ou graciosas dos gnomos, dos espíritos, dos gênios, das fadas, dos duendes. Após as grosseiras concepções dos primitivos pavores, os homens mais perspicazes pressentiram-no com maior clareza. E descobriram a natureza do seu poder antes que ele próprio o tenha exercido. Desgraçados de nós ! Desgraçado do homem ! Ele chegou, o.., o.. Como se chama ele ? ... o.. parece-me que ele grita o seu nome, e eu não o ouço... sim... ele grita... o.. escuto... não posso... repete ... o.. ouvi... é ele... ele chegou !” [5]


Coro :

“Estamos agora num ponto excepcional da história. Dentro de muito pouco tempo, chegaremos a um momento em que vai haver no mundo um número de pessoas vivas superior ao número de todas quantas viveram e morreram em todas as épocas precedentes. Os mortos serão minoria.”
“Enquanto a experiência passada excedia em muito a experiência corrente, o inconsciente coletivo era, por sua própria natureza, conservador: o ritual e a estrutura superavam a novidade. Os arquétipos mudavam com tamanha lentidão que pareciam eternos. Quando a experiência corrente excede a passada, a situação se reverte: a novidade e a mudança reinam supremas. Os arquétipos se vêem forçados a surgir em números estonteantes, muitos deles tendo uma existência curta demais para serem registrados. Todavia, algum novo arquétipo estável, algum “símbolo vivo” deve surgir de maneira espantosamente rápida ( em comparação com a escala glacial que costuma caracterizar o aparecimento de arquétipos ), um arquétipo dotado de força suficiente para obter a primazia sobre todos os arquétipos criados pela experiência passada da humanidade.” [6]

[1] “Antígona”, Sófocles
[2] “O Marinheiro”, Fernando Pessoa
[3] “Primeiro Fausto”, Fernando Pessoa
[4] Adolf Hitler
[5] “Lê Horla”, Maupassant
[6] “Uma Interpretação Junguiana do Apocalipse”, Robin Robertson

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