03 março 2006

ABERTURA

O palco está vazio. Surge um homem com uma longa túnica antiga. Usa um bastão para se orientar enquanto caminha. Seus passos são lentos e medidos. Age como um cego. Está de óculos escuros. É o adivinho Tirésias.


Enquanto atravessa a extensão da cena de ponta a ponta, sem se deter, ele anuncia para a platéia, em voz alta e clara :

“Onde a platéia é levada a conhecer
que tanto Deus quanto o Diabo
habitam a Terra dos Homens.”

No fundo do palco se destacam iluminadas as ruínas de um antigo templo grego. Possivelmente o templo de Apolo, em Delfi, onde funcionava o Oráculo. No pórtico se lê a inscrição : “Conhece-te a ti mesmo”.

Um foco de luz acompanha dois atores vindos cada qual de um dos lados do templo. Uma música muito suave começa a se ouvir. A princípio bem baixo, o som progressivamente aumenta de volume.
Os dois atores, um homem e uma mulher, começam a dançar. A coreografia assemelha-se a balé, quase clássico. Os movimentos são harmoniosos e delicados e sua execução é marcada e rígida.
Após algum tempo, a dança se transforma. A evolução se torna mais espontânea e é realizada com força e paixão. A movimentação se torna quase atlética.

A música é vibrante e sugere transe e êxtase.

Em momentos, outros atores entram em cena. Uns descem do teto do palco, deslizando em fitas coloridas. Outros entram pelas laterais. E os demais saem do fundo do palco.

Todos se reúnem, formando um grupo que executa uma complexa e diversificada performance misturando dança, acrobacia, mágica e pirotecnia.

É difícil não se contagiar com a exibição e vibrar com o sublime da arte e o divino da criação.

Saltimbancos pré bárbaros e pós civilizados celebrando o milagre da existência.

Uma outra concepção do tradicional coro grego. Uma multiplicidade que jamais se reduz a qualquer unidade. Somos todos grupúsculos. Minorias dentro de nós mesmos. Um rio que nunca é o mesmo rio. Um fluxo que não cessa de se transformar. Um rio embaixo do rio.

Identidade, totalidade, unidade : a malha de poderes que tornam os corpos úteis e dóceis.

Coro :

“Ao lado do fascismo do campo de concentração desenvolvem-se novas formas de fascismo molecular : um banho-maria no familialismo, na escola, no racismo, nos guetos de toda natureza, supre com vantagens os fornos crematórios.”
“Em última análise, tudo depende do talento dos grupúsculos humanos em se tornarem sujeitos da História, isto é, em agenciar, em todos os níveis, as forças materiais e sociais que se abrem para um desejo de viver e mudar o mundo.”[1]

Ao final, o grupo faz uma mesura para a platéia, que aplaude calorosamente.

Dirigindo-se sempre aos espectadores, os integrantes do grupo alternam-se nas falas.

“Vocês: a raça humana. O apogeu da criação. Quem são vocês ? Quem serão ? Essa criatura feita daquela mesma matéria dos sonhos, frágil e preciosa.”

“Vocês: o ser humano. Os donos do planeta. Geraram filhos e povoaram a terra. Espalharam-se nas quatro direções. Ergueram cidades majestosas. Construíram impérios. Dominaram as alturas e as profundezas.”

“Vocês: os novos deuses. Desvendaram o segredo da árvore da vida. Manipularam o código genético. Decifraram a Tábua das Esmeraldas. Fabricaram outros seres e outras formas de se estar vivo. Tanto poder... Tanta sabedoria...”

“Vocês: saberão ao menos quem são ? Quem se importa com isso ? O que se é... O que se deve ser... Todos apenas querem ser. Eu quero. E quero mais. E sempre mais e mais e mais.”

O próximo integrante do grupo a falar aponta apara a inscrição no templo : “Conhece-te a ti mesmo.”

“Então é isso ? Apenas esse infatigável desejo, jamais saciado. Esse desejo que surge do vazio, de uma ausência anterior a tudo ? Uma irresistível saudade do gênesis ? Uma ânsia em retornar ao útero materno para novamente se perder na escuridão do inconsciente ?”

“Conhece-te a ti mesmo. Mas o que poderiam eles dizer a respeito disto ? Almejam a ser deuses... Ou apenas nos deixem quietos em nosso canto. Apenas humanos. Quero sentir mais prazer. Quero amar e ser amado. Ah ! A felicidade...”

“Conhece-te a ti mesmo. Essa tola criatura, escravizada por um desejo que sempre conduz ao mesmo velho e conhecido ponto. Aquela fatídica encruzilhada onde nada mais restará do que assassinar o próprio pai e engravidar a própria mãe.”

“Um desejo que produz tão somente a escuridão e a morte.”

“Conhece-te a ti mesmo. O que vocês tem feito, senão transformar este lindo planeta num vale de lágrimas. Deuses ? Ou apenas humanos ? Demasiadamente humanos... Não... Dentro de cada um de vocês também moram demônios sedentos de tortura e infâmias. “

“Que criatura é esta que traz misturado dentro de si Deus e o Diabo em igual proporção ? Que ser é este que parece desfrutar de um mórbida satisfação em ser odiado ? Como consegue a humanidade extrair tanto prazer da morte e da destruição ?”

“Conhece-te a ti mesmo. 06/08/1945. O dia em que a humanidade definitivamente se olhou no espelho. O dia em que o ser humano mostrou a cara. 06/08/1945 ou 09/08/1945. O que sabem vocês sobre estas datas ? Quem se lembraria ? Por que não sabemos ? Por que estas datas foram metodicamente esquecidas ?”

A partir deste ponto, o grupo de atores parece tomado por um tipo de surto. Uma agitação febril e doentia se apossa de todos.

Uma hipnótica música techno acompanha todo o restante da cena. Um tipo de som atualmente utilizado como diversão neurótica nos grandes centros urbanos, mas que talvez tenha sua principal utilidade como controle mental de multidões.

Progressivamente um frenesi cada vez mais histérico se instala. Entre gritos e exclamações, as falas se sucedem rapidamente, num ritmo de afirmação e réplica.

“A história ! Essa sucessão de genocídios e atrocidades. “

“Caim matando Abel.”
“E Abraão sacrificando o próprio filho a Deus.”

“Cristãos atirados aos leões.”
“E os crime da Santa Inquisição.”

“A Diáspora dos judeus.”
“E os guetos palestinos.”

“Tiro ao alvo em crianças muçulmanas em Sarajevo.”
“E mulheres afegans cobertas dos pés a cabeça e apodrecendo prisioneiras em suas próprias casas.”

“Escravos morrendo nos porões dos navios negreiros.”
“E etnias tribais se trucidando em Ruanda.”

Um clima de possessão domina o palco. Demonstrando estarem completamente fora de si, os atores agem como se dominados por alguma força diabólica.

A batida obsessiva da música techo contribui para acentuar ainda mais o clima de furor e descontrole.

Os integrantes do grupo avançam em direção a platéia. Circulam pelos corredores quase correndo. É como se um bando de loucos enraivecidos houvesse invadido o teatro trazendo medo e paranóia.

“O esquizofrênico delira a história e não o sujo segredinho familiar.”

Os atores falam sem parar e ao mesmo tempo, movendo-se nervosamente em todas as direções.
Delírio. Transe.

“Era por volta da hora sexta, e houve trevas em toda a Terra até a hora nona. O Sol se escureceu e rasgou-se pelo meio o véu do Templo.”
“Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o Universo e os deuses.”
“O conhecimento é amor.”
“por impaciência, o Homem perdeu o Paraíso”
“por preguiça, não volta a ele.”
“criado à imagem de Deus.”
“Estás no mundo, mas não sois do mundo.”
“Eu sou a porta.”
“Darás a luz no sofrimento.”
“E como Moisés elevou a serpente no deserto, é preciso igualmente que o Filho do Homem seja elevado...”
“Ó tempo, suspende teu vôo...”
“Cada instante pode ser salvo, restituído à sua dimensão eterna”
“Comerás pó todos os dias da tua vida...”
“pois és pó, e ao pós retornarás.”
“Deus se fez homem para que o homem se torne Deus.”
“O verbo se fez carne para que a carne se torne Verbo.”
“Demole tua casa, constrói um barco...”
“A sabedoria divina é loucura para os homens.”
“Destruirei a sabedoria dos sábios ...”
“que se torne louco, afim de tornar-se sábio..”
“a sabedoria do mundo é loucura diante de Deus...”

De repente, um dos atores para diante de um espectador. O ator balbucia e esbraveja como um demente, perdido num delírio psicótico.

“Por que me perguntas o teu nome ?”
“Eis que a realização de toda carne chega.”
“Vós sois o sal da terra.”
“Vós sois a luz do mundo.”

Em seguida, todos os demais atores cercam o espectador escolhido. Trata-se de mais um ator misturado à platéia.

O grupo age com agressividade e converge toda sua fúria para o ator/espectador. Agarram-no pelo braço, o forçam a ficar de pé e o retiram da poltrona.

“Todo homem será salgado com fogo.”
“Pai, pai por que me abandonaste.”
“os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres recebem as boa-nova.”

Enquanto o mantém cercado, empurram-no seguidamente. Ele tenta reagir, mas é dominado pela superioridade e violência do grupo.

“saí do Pai e vim ao mundo.”
“uma inimizade estabelecerei entre tua semente e a semente dela.”
“Eu estava em paz, Deus me quebrantou”
“Ele me agarrou pela nuca e me fez em pedaços.”
“Ele abre em mim brecha sobre brecha...”
“que esse cálice seja afastado”
“brotam chamas, faíscas ardentes...”

Um dos membros do grupo pega um capuz e cobre com ele a cabeça do ator/espectador. Ele é levado para o palco. O grupo o carrega pelos braços e pés como um animal arrastado para o local do sacrifício.

No palco, o ator/espectador é atirado ao chão e totalmente coberto com um grosso pano. Os atores o agridem com chutes e alguns o acertam seguidas vezes com pedaços de madeira.

“Bem aventurados os puros de coração, pois eles verão a Deus.”
“O abismo me cercou...”
“aqueles cujo nome é Legião.”
“Eu disse: vós sois deuses.”
“Não toques em mim, pois eu ainda não subi ao Pai.”
“Não vos chamarei mais servos, mas amigos.”
[2]

O desenvolvimento é tão realista e grotesco que provoca perplexidade e indignação na platéia. Os atores prosseguem com as falas durante todo o tempo. A música techo em alto volume faz com que a cena se assemelhe a um ritual macabro.

Um dos atores traz um galão com algum líquido inflamável. Despeja seu conteúdo sobre o corpo coberto no chão e ateia fogo. O corpo se debate. Suas pernas tremem, numa convulsão causada pelas chamas.

Enquanto o corpo é consumido pelo fogo, todos os atores declamam em coro :

“Quem crê em mim, ainda que morra, viverá.”
“Todo aquele que vive, e crê em mim, não morrerá.”

“Quem crê em mim, ainda que morra, viverá.”
“Todo aquele que vive, e crê em mim, não morrerá.”

“Quem crê em mim, ainda que morra, viverá.”
“Todo aquele que vive, e crê em mim, não morrerá.”
[3]

O grupo grita, chora e gargalha diante da imolação. Uma oferenda aos deuses. Um tributo aos Demônios. O ritual está consumado.

Sacrifício humano. Humano sacrifício. O indivíduo e o grupo. Deuses e Demônios. Criação e destruição. Arte e vida.

A platéia assiste horrorizada a cena. E um nauseabundo odor adocicado de carne humana queimada toma conta do teatro.

As luzes se apagam por completo.

Num enorme tela no centro do palco é projetada uma explosão nuclear. Hiroshima e Nagasaki. 06/08/1945 e 09/08/1945. O trovão da bomba reverbera por toda a parte, fazendo as poltronas tremerem e todos experimentarem uma desconfortável vibração em seus plexos solares.

Da mesma forma que a performance inicial provocou encantamento e identificação na platéia, o final causa asco e rejeição. Representa o lado demoníaco do ser humano.

Ao da cada cena, o coro interpreta uma citação :

Coro :

"Se o homem se encontra consigo mesmo no mais profundo do mais baixo, do pior e, encontrando face a face com o Dragão que existe no fundo dele mesmo, é capaz de abraçar esse Dragão, de unir-se a ele, então surge o divino e é a ressurreição !" [4]



[1] “Revolução Molecular”, Felix Guattari
[2] citações extraídas de “O Simbolismo do Corpo Humano”, Annick de Souzenelle
[3] Lucas: 25,11
[4] “O Simbolismo do Corpo Humano”, Annick de Souzenelle

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