03 março 2006

UM OUTRO ÉDIPO

Coro :

"Sonhava de um marinheiro que se houvesse perdido numa ilha longínqua. Nessa ilha havia palmeiras hirtas, poucas, e aves vagas passavam por elas...Não vi se alguma vez pousavam...Desde que, naufragado, se salvara, o marinheiro vivia ali...Como ele não tinha meio de voltar à pátria, e cada vez que se lembrava dela sofria, pôs-se a sonhar uma pátria que nunca tivesse tido; pôs-se a sonhar uma outra pátria que nunca tivesse tido; pôs-se a fazer ter sido sua uma outra pátria, uma outra gente, e outro feitio de passarem pelas ruas e de se debruçarem nas janelas...Cada hora ele construía em sonho essa falsa pátria, e ele nunca deixava de sonhar..." [1]

O coro entre em cena. Todos se reúnem, sentando-se no centro do palco. Um dos membros se destaca e fala, dirigindo-se para os demais :

“Passeando na praia nessa tarde, encontrei na beira da água uma garrafa. Provavelmente lançada ao mar por algum marinheiro náufrago numa ilha desconhecida. Dentro da garrafa haviam algumas folhas manuscritas e páginas arrancadas de um livro de poemas de Fernando Pessoa.”

Enquanto o texto recolhido do interior da garrafa é interpretado, numa tela ao fundo várias imagens de rostos. Rostos de pessoas comuns se misturam ao de celebridades.

Presidentes e motoristas de táxi. Pedreiros e políticos. Atores e ladrões. Comerciantes. Banqueiros. Músicos. Mendigos. Professores. Negros. Padres. Jogadores de futebol. Bêbados. Poetas e policiais. Traficantes e diretores de teatro. Executivos. Travestis. Donas de casa. Modelos. Meninos de rua. Apresentadores de TV.

para Édipo :

Na tela, as imagens são de homens.

“Quem é você ? Um homem ? Nem macho você consegue ser mais. Se arrastando envergado por ter de arcar com o peso do próprio pau. Durante o dia você gosta de exibir, sorridente, sua taxa de colesterol, como se fosse um recorde olímpico. Mas à noite, a cobra no meio de suas pernas permanece tão flácida quanto aquela outra ao longo se suas vértebras. O que lhe dói mais : suas costas ou sua consciência ? Você se julga o rei do pedaço, o deus sol. E humilha e oprime. Subjuga povos. Estupra a natureza. Tudo para a glória da única coisa que você realmente reverencia, e que você mesmo inventou : o dinheiro. Você um herói ? Você não passa de um conquistador barato. E quando tira do lugar a cabeça das mulheres, é apenas para exibi-las como um troféu. O seu prazer, se é que se pode chamar aquela sensação de prazer, é sempre muito fugaz e muito precoce. E, para você, gozar como uma fêmea é quando alguma puta lhe enfia um caralho de plástico no rabo. Você cai de quatro na frente de qualquer buceta que lhe assobie oferecida com seus lábios insinuantes. Mas é sempre incompetente para decifrar o enigma e acaba devorado no final. Você é um engodo. Um mero cachorrinho de madame. Como você deixa um buraco, quase sempre fedido, um vazio suplicando para ser preenchido com vida, lhe sugar toda a energia ? Você nunca me enganou. Seu desejo secreto é se arrastar de volta para o aconchego e proteção do úmido e quente útero da mamãe. ‘Olha que gracinha, o filhinho da mamãe ! Faz gracinha, faz filhinho, prá mamãe ver..’ Ó ! Será que todos os homens se tornaram fracos ? Onde estão os verdadeiros heróis ? Os Argonautas que sabem que viver não é preciso, pois a vida já é o desconcertante navegar para mares desconhecidos. Não, eu não vou lhe devorar. você me provoca nojo. Você não passa de maligna podridão. Uma espécie de câncer. Se o ingerir, vou acabar vomitando.”

Na tela, agora as imagens são de mulheres.

para Esfinge :

“Que tipo de criatura é você ? Não sei se merece compaixão ou ira... Como você se deixa escravizar séculos a fio por esta coisica aqui ao meu lado ? Por este homem... Você deixou que lhe confiscassem o próprio corpo, que foi reduzido a uma fábrica de gente. Quando seu útero existe para gerar sonhos e parir universos. Você me leva às gargalhadas ao falar de prazer, queridinha. Só pq é capaz de gozar 10 vezes, enquanto o garanhão amestrado aqui do lado dá apenas uma !? Pois eu seria capaz de fazê-la gozar 100 vezes, sem ejacular sequer uma única gota. O que você conhece, ou poderá algum dia vir a conhecer, sobre esse prazer ? O orgasmo de provocar orgasmos... Enquanto o bestalhão ali se especializou em dor e destruição, eu pesquisava o conhecimento do êxtase e da criação. Você se vangloria de seus ciclos ligados a natureza ? Você é mesmo muito pretensiosa e por isto permanece muito primitiva. Quem precisaria colocar um tampão no cú para que as fezes não escorram pernas abaixo ? Você não possui a menor autogestão sobre seus ciclos. eles funcionam em você e apesar de você. E não por você. Se não fosse assim, você iria atrapalhar tudo, com sua obsessiva subserviência ao coração. Seria TPM todos os dias, a cada instante. tenho más notícias, minha cara. A verdade é que você ainda não evoluiu completamente além do estágio do cio. Você nunca me enganou. O que você sempre quis é um homem para chamar de seu. o “meu homem”. Um herói encantado por quem você perca a cabeça. Mas, no fim, ele será devorado. e se tornará um velho senil, brocha e doente, de quem você extirpou toda a masculinidade. Óu, se todas as mulheres são esfinges, por quê seus enigmas são tão simples de serem decifrados ? E por quê todas oferecem em troca apenas serem degoladas ? Onde estão as mulheres cujo enigma é dar à luz o novo homem e o novo mundo ? Não, eu não vou cortar fora a sua cabeça. você mesma já se encarregou de fazê-lo. O grande desafio seria ajudar a colocá-la de volta em cima do pescoço.”

Na tela, as imagens são dos massacres em Ruanda.

“Eu até poderia simpatizar com vocês dois, se não fossem tão perigosos. A quem vocês pensam que enganam ? Vocês não são mamíferos. Todos os mamíferos, assim como os demais animais neste planeta, mantém uma relação de equilíbrio com o seu meio ambiente. Mas vocês não ! Vocês invadem um lugar. Se estabelecem e se proliferam. Até que esgotem todos os recurso naturais. A única forma de se manterem vivos é invadindo um outro lugar e repetir sucessivamente o ciclo de destruição. Existe uma outra forma de vida que obedece a esse mesmo padrão : um vírus. Não, eu não vou destruir vocês. Vou apenas deixar que façam aquilo que mais sabem e que mais gostam: destruir uns aos outros.”

O ator, membro do coro, se dirige para a platéia.

“E não julguem existir algum mórbido prazer em minhas palavras. Meu coração já se exauriu em lágrimas. E tenho sangrado em todas as batalhas. O que me mantém vivo é a plena certeza de que em alguns de vocês já estão brotando as sementes, que foram deixadas desde a aurora dos tempos. E que farão com que, enfim, possamos compartilhar o que é viver sob a ordem da liberdade, igualdade e fraternidade.”




[1] “O Marinheiro”, Fernando Pessoa

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