03 março 2006

A MULHER DESAFIA O TIRANO

Tirésias, de pé num dos cantos do palco, segura displicentemente um revólver. As luzes estão apagadas, apenas um tênue foco luminoso cai sobre Tirésias.

“O caminho do homem justo é cercado por todos os lados pela iniquidade dos egoístas e pela tirania dos homens maus. Abençoado seja aquele que, em nome da boa vontade e da solidariedade, conduz os fracos através do vale das trevas, pois ele encontrará as ovelhas desgarradas e se tornará verdadeiramente o guardião de seus irmãos. Agirei com grande vingança e raiva contra aqueles que tentarem envenenar e destruir meus irmãos. E eles saberão que eu sou o Senhor quando minha fúria se abater sobre eles”. [1]

Após sua fala, Tirésias aponta o revólver para o fundo do palco e dispara várias vezes.

As luzes se acendem. O palco está repleto de aparelhos de TV. Empilhadas umas em cima das outras, as TV formam grandes painéis. Os programas exibidos são noticiários sobre economia e mercado financeiro.


Uma Mulher contracena com o Tirano, que é apresentado apenas como uma voz e imagens nas TV.
Quando a Mulher se dirige ao Tirano, em alguns monitores aparece uma boca dizendo as falas dele.

Por vezes, um único olho é exibido na tela de todas as televisões. Um olhar frio e sinistro. Jamais se verá qualquer imagem com o rosto do Tirano. A voz do Tirano é rouca e metálica. Não mais humana. Uma voz mutante.

O sol nunca se põe no mercado financeiro. Trilhões de dólares circulam vertiginosamente dando a volta ao mundo diversas vezes. Nunca como antes, não há qualquer pátria para o capital. Os Estados caem de joelhos frente ao poder de transações instantâneas, medidas em mili segundos de silício na rede mundial de computadores. Reproduzindo-se cada vez mais rápido. Girando cada vez mais veloz. Expandir. Crescer. Além de qualquer limite.

Coro :

“O capitalismo contemporâneo é mundial e integrado porque potencialmente colonizou o conjunto do planeta, porque vive em simbiose com países que historicamente pareciam ter escapado dele e porque tende a fazer com que nenhuma atividade humana, nenhum setor da produção fique fora de seu controle.” [2]

Mulher :

“Eu não tenho medo de você. Não me importo de morrer. Se mil vidas eu tivesse, mil vidas eu daria. Mostra a sua cara. Você tem um rosto. Você não me engana. Você se disfarça como se fosse uma esfinge, mas você é uma farsa. Seu apetite não se contenta em apenas devorar homens. Você quer destruir o mundo inteiro. Assim como meu pai degolou a esfinge, vou arrancar todas as suas cabeças e decepar todos os seus tentáculos cravados pelo mundo afora.”

Tirano :

“Quem é você para me desafiar, ser pequenino e desprezível. Você é apenas um rosto anônimo na multidão, de quem sou o reverenciado e temido senhor. Você é um nada. O que você pode contra mim ? Eu possuo exércitos e controlo os meios de comunicação. A uma palavra minha, um pretexto se forja. E você é preso, humilhado, torturado, exterminado. As massas me admiram e me invejam. Você apenas sonha. Sonhos inúteis. Sonhos em vão. Seu heroísmo é patético e juvenil. Você não passa de um eterno perdedor.”

Mulher :

“Eu já disse. Pode me matar. Assim sairei da vida, mas entrarei na história. E o sonho de que fui escravo se tornará o sonho comum daqueles que não mais serão escravos de ninguém. Você pode matar o meu corpo, mas meu espírito sempre permanecerá livre. E meu exemplo fecundará os povos.”

Tirano :

“Ah ! Mas só agora é que reparei. É uma mulher... Você deve se imaginar uma espécie de Antígona, que sozinha derrotou o tirano. E morrendo heroicamente foi imortalizada pelo teatro grego. Por acaso você acha que farei como Creonte e sucumbirei vítima de problemas de consciência ? Pois saiba que minha consciência é a dança frenética das cotações no mercado financeiro. E meu único problema é constantemente reavaliar minha estratégia de auto perpetuação.”

“Mulher insolente e audaciosa. O que é mesmo que as mulheres querem ? Até onde vocês mulheres pensam que podem chegar ? Sua única conquista é o direito de se masculinizarem e tornarem-se tão gananciosas e competitivas quanto os machos, que vocês tanto desejam.”

“Pensando melhor, talvez eu não lhe mate. Você se acha esperta e muito forte. Eu pesquisei como funciona seu cérebro. Eu posso lhe controlar tornando-a louca. Dispor de seus pensamentos e de seus desejos. Mantê-la morta entre os vivos. E viva entre os mortos. Deixá-la definhar lentamente num limbo químico. Lavagem cerebral e neuro-programação. Eletrochoques. Posso fazê-la vagar num torpor até que sua mente se esvazie por completo. Posso até fazer com que você se esqueça de si mesma.”


Mulher :

“É verdade. Você tem poder. Mais poder do que qualquer poder humano que até hoje existiu. Você concretizou o sonho de todo império. Você transformou o planeta inteiro em nada mais que matéria-prima para a sua insaciável ambição. Você é a peste. A Peste Global.”

“Mas o meu poder vem daquilo que você não entende. E nunca entenderá. O meu poder vem daquilo que você pensa controlar. E que jamais conseguirá. Meu coração é o pêndulo do mundo. E bate no ritmo do mistério da vida.”

“O que você sabe sobre a tempestades de fogo que iluminam minha alma ? E sobre o canto de amor dos golfinhos que embala meu sono ? Por acaso lágrimas lhe escorrem na face ao lembrar da dor e do êxtase que é parir ? Um arrepio de angústia lhe corre na espinha por causa de noites insones passadas na paixão de criar ? Sua garganta se aperta e sua respiração se perturba ao fitar o céu e se deparar com a insignificância de tudo e de todos ?”

“Enquanto você se obceca com sua auto perpetuação, eu fiz da morte minha companheira. Você se julga imortal. Mas eu sei que tudo sempre passará. Meu poder vem da consciência de minha morte iminente, que faz com que seja eterna a duração de cada instante de minha vida.”

Tirano :

“Tive uma idéia ainda melhor. Quem não gosta de poder e dinheiro ? Não almeja você ao reconhecimento ? Não é isto que você quer ? Tornar-se um exemplo... Uma lenda... Pois eu lhe concedo tudo isto sem nenhum sacrifício. Sem dor. Apenas prazer. Por acaso você rasga dinheiro ? Dinheiro é bom. Dinheiro é liberdade. Dinheiro é poder.”

Mulher :

“O que o dinheiro pode comprar ? A felicidade ? Pouco me importa a felicidade. O que é ser feliz ? O que vale a felicidade frente a abraçar meu destino e me integrar com o núcleo do meu ser ? Pouco me importa se o dinheiro compra ou não a felicidade...“

“E o dinheiro ? Existe mesmo o dinheiro ? Ou não passa de um pesadelo maligno implantado na mente da humanidade pelos déspotas e tiranos ? Que utilidade tem o dinheiro para aquilo só habita o interior dos homens ? O dinheiro me enoja. Se tudo tem um preço, o preço do próprio dinheiro é abrir mão dos sonhos. É tornar o sonho nada mais do que mera ambição.“

“Reconhecimento ?! A grandeza, talvez a mais profunda, é a de permanecer numa grandeza anônima. Que ninguém me conheça e que todos apenas saibam do resultado dos atos que fiz. Não sou eu quem falo. Não sou eu quem ajo. São todos eles que falam e agem através de mim.”

Tirano :

“Você fala bonito, mulher. Mas suas belas palavras e sua vã poesia nada mais são do que a profecia de sua desgraça. Você irá morrer.”

Coro :

“Ele foi levado nu até uma praça. Pedaços de carne foram arrancados de seu corpo com tenazes de aço. As chagas formadas nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas foram queimadas com chamas de enxofre. Em seguida foram aplicadas sobre as feridas chumbo derretido, óleo fervente e piche em fogo, seguidamente. A seguir seu corpo foi puxado e desmembrado por quatro cavalos. Ele foi decapitado. Seus membros, seu tronco e sua cabeça consumidos ao fogo, reduzidos a cinza. E suas cinzas lançadas ao vento.” [3]



[1] “Pulp Fiction”, Quentin Tarantino
[2] “Revolução Molecular”, Felix Guattari
[3] “Vigiar e Punir”, Michel Foucault

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