03 março 2006

ATRAVÉS DOS SONHOS

O coro se levanta. Todos se movimentam, executando uma performance semelhante a do início. As falas são ditas intercaladamente pelos membros do coro.

“Você meu pai ? Você minha mãe ? Quem são esses estranhos que dizem ser meu pai e minha mãe ? Só porque me conceberam numa foda sonolenta e sem graça ? Afastem-se do meu caminho ! Pai da puta que o pariu ! Mãe do caralho ! Eu sou meu pai, minha mãe e eu. Eu mesmo me pari. Arranquei-me de seus culhões e fugi de seu útero.”


“Eu sou a peste ? Não, não, não ! De jeito nenhum ! Vocês dois são a peste em mim. Eu sou a origem do mal ? Não ! O mal já estava em todos os que vieram antes de mim. Eu apenas fui infectado por todos vocês. Pais e mães. Avós e avôs. A linhagem transmissora da peste, desde que o mundo é mundo. Vocês me queriam iguais a vocês: propagadores da peste. Mas eu tinha outros planos. Simplesmente me deixei infectar. Porque esse é o único modo de deter a peste. Eu só poderia lutar contra ela se a aceitasse em mim. Se ela estivesse em cada gene que foi minha herança.”

“Mergulhei no abismo de abismos. Vasculhei os calabouços assombrados nos subterrâneos do meu corpo e da minha alma. Passagens obscuras. embrulhos fedorentos abandonados nos cantos. Esgotos e maldições. Trevas sem qualquer luz."

“E encontrei todos vocês que se tornaram eu. Genealogia de monstros. Torturadores que ouvem poemas enquanto estilhaçam os ossos de suas vítimas. Psicopatas que ejaculam enquanto lentamente asfixiam recém nascidos. Impotentes que se deliciam ao rasgar o ventre de mulheres grávidas e devorar seus fetos. Gênios que, sempre nas sombras e sem um pingo de sangue nas mãos, criam os mais inconcebíveis dispositivos de destruição. E descobri também toda uma multidão de criaturas medíocres e ordinárias. avarentos, invejosos, mesquinhos, preguiçosos e egoístas. Pedaços fantasmagóricos de carne sem brilho algum. Gente. Seres humanos.”


“Estive frente a frente com o mal, que me encarou sarcástico a cada vez que espreitei de relance o espelho. E me oferecia a morte e a loucura. E me gritava que eu era fraco, que eu estava só e abandonado, que minha luta era inútil e minha busca absurda.“

“Tantas vezes derrotado. Tantas vezes humilhado. Senti o cheiro do meu corpo ardendo na fogueira. vaguei enlouquecido entre os animais.”

“Conheci a derrota no cerne do meu ser.”

“Então abri todas as masmorras. Libertei todos os demônios. Deixei que voltassem ao mundo de quem são filhos. E que procurassem aqueles de quem são pais. Todos eles são vocês. Todos eles são eu. E não sou nenhum deles. Assumi todas as responsabilidades e não sinto nem um pingo de culpa. Meu corpo treme e arde. A porta do céu se abriu. E vislumbrei não o paraíso, mas a utopia. E me torno o transe e o delírio. E sonho um novo homem e um novo mundo.”

“Por que eu deveria arrancar os olhos e minha mãe se enforcar ? Apenas porque tivemos uma boa foda ? Somente porque ela enfim conheceu o orgasmo ? Então, deveria eu explodir as rochas da Terra, só porque, como um lagarto, perambulei sobre elas, que como imensos clitóris se convulsionaram de prazer ? Por que o Sol se tornaria negro ? Somente porque me penetrou com sua luz, me incendiando, e me tornando um êxtase em chamas ?”

“Matar meu pai ? E propagar sua tradição de infâmias e traições ? Não ! O lugar de meu pai jamais me interessou. Ele que fique com seu trono ! Meu reino não é deste mundo, nem de nenhum outro mundo. meu reino nem mesmo tem rei. E nunca foi meu ! É nosso !”

“Destruir a esfinge ? Mas se é ela com seus enigmas que faz com que minha vida se torne um desafio incessante !”

“Desejar a ignorância, a escuridão e a morte ? Não ! Quero ainda mais luz e mais vida e só sei que nada sei.”

“E amei meu pai, porque ele é humano. E amei minha mãe, porque ela é humana. E eles se tornaram enfim aquilo que nunca haviam deixado de ser : meus irmãos. Mãe, pai, vocês sempre estiveram mortos. Eis a luz e eis a vida. Eis a cura da peste, que de mim não mais se disseminará.”

“O que é o homem senão pó soprado através da terra. O que é o homem senão luz incandescente iluminando o céu. Pai, mãe, não sou filho de vocês por mero acaso. Eu os acompanhei enquanto procuravam um ao outro para me darem a chance de viver. Eu já estava com vocês quando durante o coito me desejaram no arder de seu gozo. Me abracem. Me abracem forte. Somos todos tão comuns. E ao mesmo tempo tão raros e preciosos. Somos todos feitos daquela mesma coisa tão efêmera: a matéria dos sonhos. Me abracem. Me abracem fortes todos vocês. Os momentos de plenitude não se esvaem pelos dedos como areia perdida de implacável ampulheta. eles são nossos para sempre. E os viveremos eternamente em toda a sua intensidade.”

“Eu quis encontrar um caminho, entre os milhões de caminhos que levam a parte alguma. Eu quis encontrar os milhões de caminhos parte do caminho que me leva. E que sou eu. pai, mãe, sou o resultado de seus sonhos e não os trairei jamais. E este sonho, a mais intensa realidade, conquistarei como tributo a vocês. A carne de que sou feito enfim flutuará resplandecente, iluminando o caminho que sou eu. Eis este mundo de luz que não é mais vocês nem eu... Mas nós que nos tornamos a luz do mundo...”

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