16/03/2018
calor infernal no Rio de Janeiro. um calor muito estranho, parece sair
do interior das paredes, dos objetos, do solo, das pessoas. como se
estivéssemos confinados dentro de um forno de micro-ondas, cozinhando
lentamente a todos nós e a tudo ao redor.
mergulhamos outra vez nos porões de chumbo de uma ditadura que nunca
acabou: "tortura, assassinato, não acabou 64!".
choque e pavor. a lei do abate em ação. nunca houve nenhuma Comissão da
Verdade. Fleury, Ustra e a Operação Condor se auto-anistiaram e ainda habitam
entre nós.
jovens consternados se abraçam aos prantos. suas lágrimas copiosas se
misturam ao suor espesso. agora sabem como é uma ditadura: matam na cara-dura, na
frente de todo mundo, e ainda passam recibo assinado.
como sempre fizeram com o povo pobre, com os negros e índios, com as
favelas e as periferias: "arregaçaram a cabeça da neguinha".
todos nós,
brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. esta é
a mais terrível de nossas heranças.
em manifestações deste tipo é preciso estar junto com as pessoas,
embrenhar-se no aglomerado, tomar parte da multidão para sentir na pele o clima
atravessando o ar e impregnando os corpos.
durante a caminhada após o velório na Cinelândia em direção ao ato na
ALERJ, seguindo depois até a Candelária, tomando toda a extensão da Av. Rio
Branco até desaguar em frente a Câmara Municipal, outra vez na Cinelândia, muitas
pessoas associaram aquela gigantesca manifestação aos atos de Junho de 2013.
mais uma vez a convocação foi feita não por partidos e organizações, e
sim pela própria vida, unindo corações e mentes na certeza de atender ao
compromisso irrecusável com um momento histórico.
uma professora que leciona no Complexo da Maré, de onde Marielle
pertence, passa a informação da favela ter sido praticamente cercada, com dois
helicópteros sobrevoando durante o dia.
curiosamente não havia policiamento na manifestação, em momento algum.
como não havia polícia, não aconteceu qualquer tumulto. quem ordenou que a PM
se abstivesse de suas habituais truculências? por acaso assassinos psicopatas
respeitam luto?
"que
coincidência! não tem polícia, não tem violência!"
enquanto recuaram a polícia no Centro, fizeram a contenção na favela
para impedir a adesão dos moradores: "sem hipocrisia, essa polícia mata
pobre todo dia!"
se a execução política é consensual, ninguém ainda sabia expor com
exatidão os motivos e os mandantes, apesar das diversas linhas de raciocínio.
concordam que foi trabalho de profissionais, não de PM e milicianos. mas
teria sido? o que exibem as imagens dos vídeos das câmeras de segurança?
Marielle não era considerada um alvo. não fez denúncias específicas ou
sobre nenhum assunto inédito. sua atuação na fiscalização da intervenção ainda
era inicial.
afinal, a quem serve? quais os usos políticos do fato? quais narrativas
irão de consolidar?
como reagirão os generais da intervenção militar no Rio de Janeiro?
afinal, o generalato nem sequer ainda assumiu tratar-se de uma operação
militar, muito embora dela estejam no comando.
algum dia as FFAA serão capazes de fazer sua própria Comissão da
Verdade e reconhecerem que sempre foram a milícia privada do grande capital? o
braço armado da lumpenburguesia. uma força de ocupação a serviço dos mega
interesses globalizados.
as vozes ecoam num coro: "não acabou, tem que acabar! eu quero
o fim da polícia militar". seria um gancho para a intervenção se legitimar,
ao operar um pontual expurgo na polícia para mostrar serviço e angariar apoio
popular?
após as ocupações militares anteriores, nas favelas a população
aprendeu com a opressão cotidiana não haver diferença entre as fardas da PM ou
das FFAA, pois ambas estão ali não para proteger o cidadão, e sim para matá-lo.
quem tem experiência de viver em periferia sabe muito bem que a visão
de uma carro da polícia inspira terror e ameaça de vida: "carne negra à
venda. vendo barato. disque 190"
para os moradores das favelas, a intervenção militar vem de antes,
desde os megaeventos, mesmo desde ainda mais distante no tempo. a ditadura
sempre perdurou, o entulho autoritário ficou por toda a parte. tortura nunca
mais?
a execução de Marielle, junto com o trabalhador motorista Anderson como
o sempre inevitável "dano colateral", aponta para similaridades com
Edson Luís em 1968, Manoel Fiel Filho em 1976 e o Atentado do Riocentro,
em 1981.
1968 já chegou novamente para nós, já temos um novo Edson Luís. enquanto
avança o estado de exceção permanente, persiste a negação em se dar adeus às
ilusões. nenhum processo eleitoral pode recompor a fissura institucional
causada por um golpe de estado.
em 1976, Manoel Fiel Filho foi assassinado no DOI-CODI em SP. consta
que por causa deste crime Geisel enquadrou a indústria da tortura e do
extermínio, mais tarde chegando a exonerar o comandante do II Exército, para
consolidar sua ascendência sobre as FFAA.
como Geisel usou o fato político a seu favor, a quem agora interessa
capitalizar a morte de Marielle? aos interventores?
afinal o que aconteceu no Riocentro em 1981? a bomba explodiu
acidentalmente, ou foi detonada pela contra-inteligência?
existe de fato uma divisão nas FFAA? de um lado os aliados do general
sionista, verdadeiro comandante em chefe do governo usurpador, e de outro os
supostos "legalistas" liderados pelo atual Comandante do Exército?
há mesmo uma fissura na base da PM carioca, fartos de serem não apenas
a polícia que mais mata mas também a que mais morre?
é verdade que a intervenção está no momento mais preocupada em operar
para conter os grupos autonomamente atuando dentro da polícia?
a execução de Marielle será a fagulha a por pelos ares o barril de
pólvora do Rio de Janeiro?
são inúmeras as perguntas. mas podemos também
ter algumas certezas.
TODOS NÓS JÁ ESTAMOS MORTOS. isto tudo já
aconteceu. déjà-vu.
nossa luta não é para alterar o futuro, e sim para mudar o presente.
just about live.
apenas sobre viver.
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