11/01/2018
{nota:}
texto com referências a conceitos de Foucault, Deleuze e Guattari, e
inspirado em troca de mensagens com Clever Mendes de Oliveira (link 4, link 3, link 2 e link 1).
{citação:}
"Por maioria
nós não entendemos uma quantidade relativa maior, mas a determinação de um
estado ou de um padrão em relação ao qual tanto as quantidades maiores quanto
as menores serão ditas minoritárias: homem-branco, adulto-macho, etc.
É nesse sentido que
as mulheres, as crianças, e também os animais, os vegetais, as moléculas são
minoritários.
No entanto, é
preciso não confundir "minoritário" enquanto devir ou processo, e
"minoria" como conjunto ou estado.
Maioria supõe um
estado de dominação, não o inverso."
Gilles Deleuze e Félix Guattari
MIL PLATÔS - Capitalismo e Esquizofrenia - Vol. 4
{conceitos:}
as mulheres podem ser numericamente superior aos homens. ou seja: há
quantitativamente mais mulheres do que homens.
por que as mulheres são então consideradas uma "minoria"? porque são minoritárias
na relação de poder.
não se nasce mulher, torna-se.
o fazer-se mulher é o devir-mulher. o devir-mulher é sempre minoritário.
o minoritário não é a minoria.
é o processo através do qual a minoria
se constitui autonomamente para se impor na relação de poder, libertando-se de
sua condição de sujeitada para vir a ser sujeito.
contudo, não se trata de estabelecer uma inversão na relação de dominação.
o objetivo do devir-minoritário não é
se tornar majoritário.
por isto, o resultado do devir-mulher
jamais é a mulher. a mulher é a minoria, e não o minoritário: o devir-mulher é um processo e não a constituição de uma nova
identidade.
o devir-mulher é um
processamento não para constituir um substantivo (a mulher), e sim autoconstituindo-se em si próprio através do
verbo: vir a ser mulher. fazendo da
palavra mulher um verbo.
não a mulher, mas mulher-ser. não a árvore, mas o arvorecer
(árvore-ser). não o verde, mas o verde-ser (enverdecer). não a tarde, mas
a tarde-ser (entardecer). não o ser, mas o vir-a-ser.
não uma identidade unitária, imutável e totalizada. mas um movimento de
auto-constituição permanente, o que implica em constante e continua
auto-transformação.
o minoritário sempre é um
devir, um tornar-se, um fazer-se, um vir a ser, sem jamais se completar, sem
nunca estancar seu movimento.
o devir-mulher é o
processamento contínuo e constante de fazer-se
mulher. caso se interrompa ou se paralise, ou se recai novamente na
condição de minoria ou é porque se
estabeleceu um novo majoritário.
e no caso de estabelecido como majoritário
apenas se inverteu a relação de poder, enquanto o devir-minoritário vem a ser
a superação de uma relação de poder constituída como dicotomia sujeito/sujeitado. uma superação
alcançada não como resultado final do processamento, e sim através de seu
próprio movimento.
{citação:}
" É por isso
que devemos distinguir: o majoritário como sistema homogêneo e constante, as
minorias como subsistemas, e o minoritário como devir potencial e criado,
criativo.
O problema não é
nunca o de obter a maioria, mesmo instaurando uma nova constante. Não existe
devir majoritário, maioria não é nunca um devir. Só existe devir minoritário.
O devir minoritário
como figura universal da consciência é denominado autonomia."
Gilles Deleuze e Félix Guattari
MIL PLATÔS - Capitalismo e Esquizofrenia - Vol. 2
{microfísica do poder:}
o poder não é um lugar que se ocupa, tampouco um objeto que se possui. o
poder se exerce. e se exerce numa relação. não se trata de ter mais ou menos
poder, nem quantitativamente nem qualitativamente. muito menos de ocupar posições
de poder.
se o poder é relacional, seu exercício depende de estratégias. portanto,
de se estabelecer e aplicar estratégias capazes de determinar a correlação de
forças.
a relação de poder sempre é uma relação de guerra, na qual ou se ganha ou
se é derrotado.
o poder tem como objetivo governar os coletivos, compreendendo-se aqui o
individual também como uma coletividade.
{citação:}
"Temos em suma
que admitir que esse poder se exerce mais que se possui, que não é o
"privilégio" adquirido ou conservado da classe dominante, mas o
efeito de conjunto de suas posições estratégicas - efeito manifestado e às
vezes reconduzido pela posição dos que são dominados."
Vigiar e Punir - Michel Foucault
"La unidad humana elemental no es el cuerpo-el individuo, sino la
forma-de-vida."
"Introducción
a la guerra civil", Tiqqun
{a mulher como forma-de-vida:}
o que é a mulher enquanto
minoria?
é a filha, a irmã, a tia, a esposa, a avó, a mãe.
é a dona de casa, a trabalhadora, a prostituta, a empregada doméstica, a
executiva, a loura burra, a mulata gostosona. a explorada, mas também a que
explora. a oprimida, mas também a que oprime.
ser mulher é assumir papéis
sociais em conformidade com normas já estabelecidas e sob as quais não se exerce
qualquer poder de transformação.
a minoria é representação, o devir é criação. a minoria é um teatro, o devir
é um processo. a minoria é a captura
de um processamento num loop infinito. o tornar-se
mulher é reduzido a ser mulher.
o que é ser mulher? é
conformar-se em estar aprisionada em funções já determinadas no ambiente de relações
sociais de dominação e exploração.
a estratégia hegemônica do exercício de poder se faz através de modos de viver, de formas-de-vida.
ao assumir a forma-de-vida
dona-de-casa, a mulher já não cria sua própria vida, apenas representa um
papel imposto.
os modos de vida majoritários (aqui
neste texto denominados como formas-de-vida)
são assumidos como as únicas opções, sem haver nenhuma alternativa.
a existência se torna a tediosa e monótona repetição de um mesmo padrão,
numa incessante debilitação exaurindo completamente a energia vital. até o
desejo nada mais desejar, a não ser a morte.
a partir de então, o desejo não
é mais pela própria vida, um desejo que deseja a si mesmo, reduzindo-se a
desejar formas-de-vida padrão, um
desejo que deseja parar de desejar: o desejo de morrer.
{máquina desejante (hardware) e processamento desejante (software):}
esta captura do desejo pelas formas-de-vida
majoritárias é a origem de todas as patologias psico-sociais.
ao desejar ser mãe (uma forma-de-vida estereotipada) já não é
possível tornar-se mãe. pois tornar-se mãe vem a ser um modo de viver a ser criado, inventado,
num processamento de configuração específica para cada caso e situação,
exigindo também uma permanente manutenção e customização.
as formas-de-vida são como
softwares. há uma programação envolvida. quanto a esta programação, este
código, ou a ele se está sujeitado, ou se é sujeito de seu desenvolvimento, de
sua escrita, assumindo sua própria auto-programação.
esta é também uma relação de poder. uma guerra com muitas batalhas, as
quais se ganha ou se é derrotado.
cada forma-de-vida é um modelo
pré-existente e pré-determinado, cujo processamento reproduz as relações de
dominação para gerar subjetividades sujeitadas. o sucesso da dominação vem a ser dela se exercer ainda no nível
pré-individual e pré-consciente, através das formas-de-vida.
é a forma-de-vida quem gera a
sujeição. daí a imensa dificuldade de transformação coletiva, posto tanto o social
como o individual serem coletividades decorrentes de um processamento em nível
mais baixo efetuado pela forma-de-vida.
um processo de emancipação exige modos
de viver libertários, os quais por sua vez redundam em outras relações
sociais, disto emergindo outras coletividades e outras relações de poder.
a criação de outros modos de viver,
não encapsulados pelas formas-de-vida,
implica em ficar face a face com o caos. sem passar pela fase do caos nenhuma
criação é possível. para criar a si mesmo e inventar sua própria vida, é
preciso enfrentar os perigos da loucura, da prisão, da doença e da morte.
assim, não se trata de não ser mãe. e sim: torne-se mãe, mas não como a
mãe. torne-se prostituta, mas não
como a prostituta. torne-se mulher, mas não como a mulher.
não assuma as formas-de-vida
hegemônicas, liberte-se pela criação de seus próprios modos de vida.
{os Brasis:}
o Brasil é o padrão, o
majoritário. os Brasis são a minoria e
o tornar-se Brasil como devir
minoritário.
o Brasil dos 0,1% conduz
uma guerra de extermínio contra todos os demais Brasis. o vir-a-ser Brasil
é o processamento de emancipação através da constituição de outras coletividades.
a Ex-querda é o padrão. a Esquerda é a minoria. o devir-Esquerda como o desenvolvimento de
modos de viver capazes de constituir
outras coletividades, através das quais se executa o processamento de
emancipação.
o devir-Esquerda como o vir-a-ser Brasil.
{vídeo:}
sujeito e objeto da observação se confundem no processamento de observar.
é no processamento que se constituem as subjetividades e os sujeitos.
vídeo: Escher and the Droste Effect
vídeo: Gilles Deleuze - O que é
ser de esquerda?
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