14 março 2007

o que precisamos

uma criança de apenas um ano e meio foi estuprada, estrangulada e abandonada dentro da pia batismal de uma igreja. na reconstituição do crime, uma agente de trânsito teve uma crise nervosa e, chorando desesperadamente, arrancou a arma de um policial e disparou contra o próprio peito.

quatro homens desceram de um carro na frente de uma escola e atiraram em direção a um grupo de alunos, matando um deles e ferindo outros oito, sendo três em estado grave. nenhuma das vítimas tem registro de passagem pela polícia.

após 25 anos de medíocre crescimento econômico, o tecido social do país se deteriora a ponto de se multiplicarem, de forma descontrolada, os casos de violência gratuita.

os crimes bárbaros têm sua contraparte: o brutal desemprego. são irmãos siameses, nascidos de uma política econômica responsável por interromper a construção do desenvolvimento nacional.

dos empregos criados a partir de 2000, 64% pagam até um salário mínimo; 85% até um salário mínimo e meio; e nenhum emprego foi gerado a partir de três salários mínimos. [1]

somos hoje um país de faxineiras, motoboys, vigilantes, balconistas...

se para classes dominantes brasileiras a explosão da miséria se resolve com a redução da taxa de natalidade dos miseráveis [2], nada mais natural que virar pelo avesso a questão social, tratando-a como caso de polícia, a ser combatida com suplícios e presídios, a fim de “restabelecer no país inteiro o império da lei”. [3]

desvinculadas dos compromissos com o país e a sociedade [4] e dependentes da rentabilidade dos juros da dívida interna para manterem sua posição de classe [5], as elites só concebem como deboche ser “nos campos da pobreza que os canteiros da violência vicejam com especial intensidade, adubados pela falta de dinheiro, de comida, de trabalho regular, de estudos, de esperança”. [6]

nossos ricos desfrutam de um padrão de vida equivalente aos ricos dos países mais ricos, mesmo que para isto nossos pobres estejam relegados ao padrão dos pobres dos países mais pobres. [7]

a cada vez que o processo histórico desemboca numa crise, impondo a necessidade de mudanças, se restabelece no Brasil um acordo de cúpula, pactuado pelas elites, e a mudança se reduz a um rearranjo que tudo muda para que nada fique diferente. [8]

nossa história tem sido uma sucessão de modernizações conservadoras e transições tuteladas, sem jamais incluir no "pacto democrático" as classes trabalhadoras [9], o que nos mantém aprisionados entre dois mundos: um definitivamente morto e outro que luta por vir à luz. [10]

então, qual a enorme vantagem em se postergar ajustes nos juros e no câmbio, paralisados pelo pânico de uma reação desestabilizadora por parte das forças e interesses dos mercados, e aguardar, em espera paciente, a instauração de um consenso abrangente e duradouro? [11]

enganam-se os que julgaram ser a primeira eleição de Lula um parêntesis histórico. a população brasileira reafirmou modo inequívoco que não precisa nem admite tutela de nenhuma espécie para fazer a sua escolha. a vontade de mudança - que esteve reprimida por décadas, séculos - expressou-se mais uma vez pacificamente, democraticamente. [12]

quanto mais se postergar o inevitável, quanto mais se adiar o já exasperante parto daquilo que luta por nascer, então o verbo mudar será conjugado em toda sua ênfase [13] e desencadeará consequências imprevisíveis.

talvez Deus seja mesmo brasileiro. por isto tem sido tão generoso conosco. mais do que merecemos. mesmo se Dele não recebemos nada do que pedimos, ainda assim nos enviou tudo que precisamos. [14]

e o que precisamos é reabrir as portas do futuro que merecemos. [15]



[1] Sonia Rocha
[2] Olavo Setúbal, 13/08/2006
[3] Augusto Nunes, “O avesso do avesso”, Jornal do Brasil, 13/03/2007
[4] Marcio Pochmann, “A secessão dos ricos”.
[5] Marcelo O. Dantas, “O projeto da recessão perpétua”, Folha de São Paulo, 14/03/2007
[6] Augusto Nunes, “O avesso do avesso”, Jornal do Brasil, 13/03/2007
[7] Sérgio Buarque de Holanda
[8] Raymundo Faoro, “Existe um pensamento político brasileiro?”
[9] Maria da Conceição Tavares, “Política e economia na formação do Brasil contemporâneo”
[10] Sérgio Buarque de Holanda, “Raízes do Brasil”
[11] Roberto Mangabeira Unger, “Crescer sem dogma”, Folha de São Paulo, 13/03/2007
[12] Lula, Discurso de posse na Câmara, 2007
[13] Lula, Discurso de posse na Câmara, 2007
[14] Lula, Discurso de posse na Câmara, 2007
[15] arkx, o que merecemos

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