21 março 2007

heroísmos

"Os usineiros, que até seis anos atrás eram tidos como se fossem os bandidos do agronegócio neste país, estão virando heróis nacionais e mundiais porque todo mundo está de olho no álcool."

Lula

20/03/2007


durante inauguração de uma fábrica da Perdigão, indústria de criação e abate de aves, Lula não se conteve e explicou porque se ufana dos usineiros do álcool. os empresários do setor seriam verdadeiros heróis nacionais, e até mundiais. graças a eles o biocombustível, produzido da cana-de-açúcar, desponta como modelo de alternativa energética global. [1]

naquele mesmo dia, fiscais do Ministério Público do Trabalho encontraram numa fazenda no interior de São Paulo ao menos 90 trabalhadores rurais atuando no plantio da cana em condições consideradas "degradantes". os trabalhadores não dispunham de equipamentos de proteção e primeiros socorros, banheiro ou mesmo água potável. além disto, eram obrigados a pagar R$ 38 pela botina e mais R$ 13 pelo facão, equipamento que deve ser fornecido pelo empregador, conforme a legislação. a diária na fazenda é de R$ 14 por dia de trabalho. segundo o Ministério Público do Trabalho, essa condição precária é comum no interior de São Paulo. [2]

talvez Lula não tenha exagerado, já que o empresariado brasileiro demonstra um inesgotável heroísmo no que tange a erguer um patrimônio privado financiado por recursos públicos.


no caso da Perdigão, de um total de R$ 510 milhões em investimentos, apenas R$ 70 milhões são de recursos próprios. a maior parte é dinheiro público, sendo R$ 170 milhões financiados pelo BNDES e R$ 270 milhões vindos do FCO (Fundo Constitucional do Centro-Oeste) e do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador. [3]

ao longo de nossa história não faltam exemplos do heroísmo da elite brasileira:

fez a independência, mas manteve a escravidão; depois aboliu a escravidão, mas sem reforma agrária, sem escola pública, sem direitos trabalhistas, sem que os ex-escravos sequer tivessem direito à propriedade da terra; proclamou uma República que manteve as oligarquias no comando e o povo sob controle, sujeitado ao clientelismo, transformando o que deveria ser direito em favor; sempre procurou eliminar qualquer contra-elite e, quando alguma teve sucesso, foi capaz de levar ao suicídio o presidente Getúlio Vargas; apoiou, entusiasticamente, o regime autoritário enquanto este lhe serviu, para então passar a ser democrática, por conveniência; sob o rótulo autoritário ou democrata, ou defendendo o slogan do Estado-mínimo, sempre se apropriou dos recursos públicos de forma desbragada e despudorada; aspira a desfrutar de padrão de vida internacional e ter mão-de-obra doméstica ultrabarata; tem como meta continuar a ganhar o máximo possível no Brasil, transferindo para o exterior uma boa parte da riqueza aqui auferida, para manter sempre aberta a possibilidade de se converter em seres internacionais, sem nenhuma responsabilidade pelo que acontece no Brasil. [4]

entre seus heroísmos recentes está a criação do mito da "âncora verde" do agronegócio, que seria responsável pela maior parte das divisas internacionais do Brasil, com uma participação significativa no PIB nacional. tal feito heróico é resultado da manipulação de se inserir no denominado PIB do agronegócio a parte correspondente à indústria e também os supermercados, inflando os dados. [5]

o crescente direcionamento da produção para a exportação ou para a agricultura energética corresponde ao desinteresse na produção de alimentos para abastecer o mercado interno. o volume da produção de arroz, feijão e mandioca, os três principais alimentos da população pobre desse país, não teve nenhum crescimento desde 1992.
[6]


o tradicional atraso da elite brasileira em produzir sempre esteve acoplado com a sua modernidade no consumir. [7]

São Paulo produz quase dois terços do álcool e do açúcar do país. a cana ocupa mais da metade das lavouras do Estado. além do risco da monocultura, em pelo menos 2,5 milhões de hectares (10% do território paulista) as colheitas são realizadas mediante queimadas. é uma aberração ecológica e um atentado à saúde das pessoas. [8]

enquanto Lula exalta seus novos heróis, verdadeiro heroísmo é conseguir sobreviver nas condições de trabalho dos canaviais.

transportado ao campo em ônibus sem freio, retrovisor e autorização para trafegar, o diarista Ezequiel Antônio de Araújo foi obrigado a prosseguir trabalhando sob o sol após ter cortado a mão com o facão. "Disseram que não iriam gastar combustível para me levar ao hospital", afirmou ele. desde 2004, 17 bóias-frias morreram no interior do estado de São Paulo. a suspeita é que as mortes ocorreram por excesso de esforço no corte da cana. [9]

poderosos movimentos históricos podem forjar heróis. homens nascidos na pobreza são capazes de derrotar o risco crônico da morte prematura na infância; vencer a humilhação e a desesperança na idade adulta; cumprir a longa jornada de um retirante nordestino desde a imigração num pau-de-arara até subir a rampa do Planalto. homens comuns são levados a condição de heróis. ainda assim, entretanto, são apenas um humilde instrumento, expressão de um projeto coletivo. [10]

entregar-se abertamente a este destino inexorável é o único heroísmo que importa. é o que converte governantes em estadistas. é o que permite um simples homem mover a história de um povo e de uma nação.



[1] Rubens Valente, Folha de São Paulo, 21/03/2007
[2] Maurício Simionato, Folha de São Paulo, 21/03/2007
[3] Rubens Valente, Folha de São Paulo, 21/03/2007
[4] Carlos Lessa, discurso após ser demitido do BNDES por Lula, 19/11/2004
[5] Ariovaldo Umbelino, entrevista ao Correio da Cidadania
[6] Ariovaldo Umbelino, entrevista ao Correio da Cidadania
[7] Carlos Lessa, "A inferioridade brasileira, uma conveniente convicção da elite"
[8] José Serra, "O etanol e o futuro"
[9] Maurício Simionato, Folha de São Paulo, 21/03/2007
[10] Lula, Discurso de posse na Câmara, 2007

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