19 abril 2008

torcicolo

muito embora tenha garantido que uma elevação da taxa básica de juros não traria qualquer transtorno [1], no dia seguinte ao aumento da Selic em 0,50% Lula amanheceu com o pescoço imobilizado por causa de um torcicolo. [2]

ainda mais improvável do que alguém que não tem pescoço sentir dor de torcicolo [3] teria sido o BC recuar de seu anunciado ajuste dos juros. [4]

contrariando a maior parte das expectativas, inclusive do mercado financeiro, que apostava em alta de 0,25 ponto percentual, o Copom entendeu “realizar, de imediato, parte relevante do movimento da taxa básica de juros a fim de contribuir para a diminuição tempestiva do risco que se configura para o cenário inflacionário e, como conseqüência, para reduzir a magnitude do ajuste total a ser implementado”. [5]

talvez a origem do problema no pescoço do Presidente tenha sido apenas contrariedade com resultados de partidas de futebol [6], mas seja como for todos no Palácio do Planalto já tinham absorvido uma subida de 0,25% ponto, como esperava a maior parte do mercado, “mas 0,50 foi demais". [7]

o governo Lula, que teve suas origens na esquerda mas optou por assumir a política e as preocupações da direita [8], realiza magistralmente aquilo que o governo de FHC fez apenas razoavelmente bem [9], criando as condições para corações e mentes da sociedade brasileira serem conquistados pelo slogan definitivo do mercado: o maior e mais incontestável sucesso do governo é a política econômica, que proporciona estabilidade e crescimento, além de bancar os programas sociais. [10]

o resultado da estabilização da economia brasileira alcançada com o Plano Real foi conservador, mantendo o controle da inflação ao custo de uma explosão da dívida pública, o que concede enorme poder de chantagem aos chamados "mercados", entidade abstrata que, muito concretamente, financia a dívida pública brasileira [11] e se rentabiliza com a mais alta taxa de juros reais do mundo. [12]

atualmente, cerca de um terço da dívida do governo federal é atrelada à Selic. caso esse novo patamar de juros seja mantido pelos próximos 12 meses, o custo fiscal da medida será de cerca de R$ 2,9 bilhões. [13]

um dia após o anúncio do Copom, o Dólar terminou vendido a R$ 1,657 - menor cotação desde maio de 1999. ao se considerar os últimos 12 meses, o Real lidera entre as principais moedas com maior valorização frente ao Dólar: 18,61%. no mercado brasileiro, o Dólar já recuou 5,48% apenas neste mês de abril de 2008, incluindo a queda de 0,42% no dia posterior ao reajuste da Selic. [14]

a elevação dos juros terá efeito em relação às expectativas dos empresários. vai ter impacto nas pessoas ou empresas que estão tomando crédito e na dívida pública. pode também atrair ais recursos estrangeiros especulativos para o país. teremos uma taxa de câmbio ainda mais valorizada, com maior dificuldade para a exportação e maior estímulo à importação, além da substituição de produtos nacionais por importados. [15]

ao "mostrar os dentes" para Lula e para o ministro da Fazenda, Guido Mantega, [16] o BC, que reclama dos grupos de interesse, como Fiesp e CNI, mas não menciona os interesses do mercado financeiro [17], abocanha a economia brasileira como um todo e pode reduzir drasticamente a sustentabilidade do atual ciclo de crescimento. [18]

embora tenha sido precedida por alertas, vindos de analistas econômicos dos mais variados matizes teóricos e ideológicos, de que elevar os juros seria uma decisão precipitada [19], a decisão unânime pelo aumento em 0,50 ponto, acima até da expectativa de 0,25 ponto, indica como a composição do Copom é monolítica e fechada com uma única visão da política econômica.

isto não é apenas inadmissível num órgão técnico. é totalmente inaceitável numa democracia.

por se esforçar demais em agradar ao mercado, o BC acaba adotando os horizontes extremamente curtos do mercado como seus próprios. com isto se cria uma retroalimentação perigosa, em que o mercado reage exageradamente a percepções sobre o que o BC podera fazer, e o BC recorre ao mercado para se orientar sobre o que deveria fazer. [20]

o BC age como um destreinado atirador do tiro-ao-pato, que, tendo um projétil que leva alguns segundos para chegar ao alvo, sempre mira o ponto em que o pato se encontra no momento do tiro - e não o ponto seguinte. no final de 2007 houve uma mudança no patamar dos preços internacionais de alimentos, o que leva de dois a três meses para chegar ao varejo e só agora se verifica. ao mesmo tempo, a elevação no preço dos alimentos corrói o poder aquisitivo do consumidor, reduzindo o disponível para a compra de bens duráveis ou de novos financiamentos. além disso, há outro vôo do pato sendo percorrido, que é do aumento dos investimentos internos, ampliando a capacidade instalada de indústria. [21]

usando a política monetária para combater suspiros inflacionários [22] a ditadura do Copom inicia um novo ciclo de alta da Selic e condena o Brasil ao eterno vôo da galinha. [23]


o Brasil tem um Banco Central independente de fato, mas cuja independência foi imposta pelo sistema financeiro, sem que viesse acompanhada de nenhum tipo de regulamentação. criou-se assim uma instituição fechada, opaca, guardiã de interesses rentistas, permanentemente contracionista, inimiga do crescimento e socialmente irresponsável. a qualquer pretexto, impunemente, puxa o gatilho dos juros e ataca os suspeitos de sempre, misteriosas ameaças de inflação. [24]




[1] Lula, entrevista no Palácio Noordeinde, na Holanda, 12/04/2008
[2] Valor Online, 17/04/2008
[3] comentário da Primeira-Dama, Marisa Letícia:”Como é que pode alguém que não tem pescoço, ter dor de pescoço?”,Agência Brasil, 17/04/2008
[4] ata do Copom, divulgada em 13/03/2008, “a opção de realizar, neste momento um ajuste na taxa básica de juros"
[5] nota divulgada após a reunião do Copom, em 16/04/2007: "O Comitê entende que a decisão de realizar, de imediato, parte relevante do movimento da taxa básica de juros irá contribuir para a diminuição tempestiva do risco que se configura para o cenário inflacionário e, como conseqüência, para reduzir a magnitude do ajuste total a ser implementado"
[6] Lula comentou que não sabia se a origem do problema [torcicolo] tinha sido a “alta dos juros ou o massacre do Corinthians pelo Goiás”, Agência Brasil, 17/04/2008
[7] Vicente Nunes, citando comentário de auxiliar de Lula, logo depois do final da reunião do Copom, “Uma tacada forte”, Correio Braziliense, 17/04/2008
[8] Paulo Passarinho, “Banco Central: sitiado ou estrela-guia?”, 18/04/2008
[9] Ricardo Antunes, entrevista ao Correio da Cidadania, 08/04/2008
[10] Nelson Mota, “Do sonho ao pesadelo”, Folha de São Paulo, 18/4/2008
[11] Marcos Nobre, “Juros: teoria e prática”, Folha de São Paulo, 15/04/2008
[12] com a Selic em 11,75%, o Brasil manteve o título de campeão mundial de juros altos, com taxa real de 7,1%
[13] segundo o secretário do Tesouro, Arno Augustin, citado em matéria na Folha de São Paulo, 18/04/2008
[14] Fabricio Vieira e Denyse Godoy, Folha de São Paulo, 18/04/2008
[15] Marcio Pochmann, declaração à Folha de São Paulo, 18/04/2008
[16] Kennedy Alencar, citando palavras de um Ministro do Governo Lula, Folha de São Paulo, 18/04/2008
[17] André de M. Modenesi, Miguel Bruno e Salvador Werneck Vianna, “Reversão preventiva na política monetária”, nota técnica do Ipea, 04/2008
[18] André de M. Modenesi, Miguel Bruno e Salvador Werneck Vianna, “Reversão preventiva na política monetária”, nota técnica do Ipea, 04/2008
[19] “Precipitação”, editorial da Folha de São Paulo, 18/04/2008

[20] Alan Blinder, citado em “Macroeconomia da estagnação”, de Luiz Carlos Bresser-Pereira
[21] Luis Nassif, “O BC e o tiro-ao-pato”, 18/04/2008
[22] Paulo Godoy, Presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Base (Abdib), citado por Vicente Nunes, “Uma tacada forte”, Correio Braziliense, 17/04/2008
[23] Abram Szajman, Presidente da Federação do Comércio de São Paulo (Fecomercio), citado por Vicente Nunes, “Uma tacada forte”, Correio Braziliense, 17/04/2008

[24] César Benjamin, “Os suspeitos de sempre”, 19/04/2008

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