21 dezembro 2016

a Ex-querda e Alice

21/12/2016


- Meu nome é Alice, mas…
- Um nome bem bobo!” Humpty Dumpty a interrompeu com impaciência. - O que significa?
- Um nome deve significar alguma coisa? Alice perguntou ambiguamente.
- Claro que deve, Humpty Dumpty respondeu com uma risada curta.
- Meu nome significa meu formato… aliás um belo formato. Com um nome como o seu, você poderia ter praticamente qualquer formato.

afinal, o que Alice quer? o que está fazendo?

seu olhar incisivo, rosto e cabelos cobertos, seios voluptuosos debaixo da sedutora lingerie vermelha, abraçada a um livro de filosofia, de joelhos estendendo um buquê de flores brancas à repressão.

isto é política, arte ou ... filosofia?

por que Alice tapa seu rosto? para esconder sua identidade? ou para expor seu anonimato?

há resistência fora da criação? há criação fora da resistência? se viver é uma invenção estética, não existe liberdade fora do coletivo.

a crise da Democracia brasileira é uma crise de identidade. a crise da Ex-querda é sua recusa ao único movimento capaz de construir uma nova identidade: mergulhar no abismo e atravessar a superfície do espelho.

- Este deve ser o bosque, disse pensativamente, - em que as coisas não têm nomes. O que será que vai ser do meu nome quando eu entrar nele? Não gostaria nada de perdê-lo…
Ficou em silêncio um minuto, pensando. Depois, de repente, recomeçou.
- Então, no fim das contas  a coisa realmente aconteceu! E agora, quem sou eu? Vou me lembrar, se puder! Estou decidida!  
Mas estar decidida não ajudou muito, e tudo que conseguiu dizer, depois de quebrar muito a  cabeça, foi: - L, eu sei que começa com L!

com o Brasil em transe, os surtos delirantes se propagam. tudo agora são performances. tudo é excessivamente simbólico. o choque de realidade gerado pelo golpe do impeachment tornou surreal a realidade nacional.

após o Alzheimer político entrar em colapso, os afetados pela Síndrome do Crepúsculo anseiam voltar para uma casa que já não existe. Édipo já não pode esconder seu desejo mais secreto: arrastar-se de volta para o protetor e aconchegante útero materno. mas como retornar de uma viagem definitiva?

há um pólo fascista e paranóico: a regressão do Brasil a um status pré revolução de 1930, condenando o país ao modelo liberal periférico, com sua completa subordinação à Tirania Financeira global;

há um pólo libertário e transformador: uma descentralizada e autônoma profusão de atos e manifestações de resistência contra o golpe, a emergência de um novo tipo de militância já não mais separado de um novo tipo de vida.

enquanto o velho país se recusa a morrer, o novo Brasil luta decididamente para nascer. o dragão agoniza. a fênix alça vôo. não há retorno. ou rejuvenescemos, ou não sobreviveremos. não basta resistir, é preciso re-existir.

- Oh! É inevitável, disse o Gato; - Somos todos loucos aqui. Eu sou louco. Você é louca.”
- Como sabe que sou louca?, perguntou Alice.
- Só pode ser, respondeu o Gato, - ou não teria vindo parar aqui.

o Chapeleiro Maluco e a Lebre de Março, Tweedledee e Tweedledum, o Cavaleiro Branco e o Cavaleiro Vermelho, o Leão e o Unicórnio, um mensageiro para trazer e outro para levar. nunca somos loucos sozinhos. é preciso ser pelo menos dois para sermos loucos.


como um delírio começa? o campo social é sempre anterior ao círculo familiar. a libido alucina a história e delira as civilizações.

o inconsciente é órfão. conhece apenas o desejo e o campo social, e nada mais. somos nosso filho, nosso pai, nossa mãe  e nós mesmos. o delírio sempre percorre o campo social histórico, como um campo de batalha, tomado pelas guerras de libertação, e não um palco de teatro burguês, com a tediosa encenação do triângulo edipiano. o Édipo antes de ser um sentimento infantil de neurótico, é uma idéia de paranóico adulto.

ser louco não é necessariamente ser doente. a demência é uma viagem definitiva. também pode ser a abertura de uma passagem. a loucura é um produto de uma destruição imposta e auto assumida. uma loucura é um grosseiro disfarce, uma caricatura grotesca do que poderia ser a cura natural. a autêntica saúde mental implica, seja de que modo for, a dissolução do ego denominado de “normal”...

- Sete anos e seis meses!, Humpty Dumpty repetiu, pensativo.
- Uma idade muito incômoda. Se tivesse pedido o meu conselho, eu teria dito: - pare nos sete… mas
agora é tarde.
Essa sugestão deixou Alice ainda mais indignada.
- Quero dizer que uma pessoa não pode evitar ficar mais velha.
- Uma não pode, talvez, disse Humpty Dumpty, - mas duas podem.

ao crescer, Alice fica simultaneamente menor. ao caminhar pela esquerda, acaba na direita. é punida antes de cometer o crime. de paradoxo em paradoxo, esquece o próprio nome. as aventuras de Alice são o colapso de sua identidade.

o bom senso é a afirmação de que, em todas as coisas, há um sentido determinável; mas o paradoxo é a afirmação dos dois sentidos ao mesmo tempo. os paradoxos de Alice são uma aventura pela linguagem através do inconsciente. não apenas o resgate de sua identidade perdida, mas a construção de um nova identidade, de um outro tipo de identidade.

Freud explica? claro que não? apesar de todo seu blá-blá-blá neurótico, a psicanálise ela mesma declara nada ter a dizer frente ao esquizo.

o que chamamos de “mundo” é uma construção daquilo que chamamos de “linguagem”. um espesso e intrincado texto vivo. uma linguagem de imagens interativas. uma ideografia dinâmica. uma sofisticada espécie de simulação multimodal de realidades virtuais. um hipertexto de autoria coletiva em permanente criação.

por isto qualquer texto sempre é um tecido de citações. palavras só podem explicar-se através de outras palavras. a única criatividade de um texto é seu poder de misturar outros textos, de contrariá-los uns aos outros, sem nunca se apoiar em qualquer deles, para fazer com que estes outros textos entrem em diálogo.

por isto escrever é tão perigoso. só quem tentou, sabe. há o perigo de mexer no que está oculto – e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas. há ciladas nas palavras. as palavras que dizemos escondem outras – quais? escrever é uma pedra lançada neste abismo sem fundo. um abismo que sempre chama outros abismos.

a princípio Lewis Carrol escolhera o título “As aventuras subterrâneas de Alice". mas é óbvio que era inadequado! Alice mergulha no abismo apenas para ascender à superfície, numa desmistificação da falsa profundidade. para descobrir que o mais profundo é a pele. para que tudo fique exposto. para que o óbvio não mais permaneça nas sombras.

- Se você conhecesse o Tempo tão bem quanto eu, disse o Chapeleiro, - falaria dele com mais respeito.
- Não sei o que quer dizer, disse Alice.
- Claro que não!, desdenhou o Chapeleiro, jogando a cabeça para trás. - Atrevo-me a dizer que você nunca chegou a falar com o Tempo!. - Mas, se você e ele vivessem em boa paz, ele faria praticamente tudo o que você quisesse com o relógio.

numa crise estrutural, quando o sistema entra em colapso, tudo se torna instável e volátil. então, pequenas ações podem gerar enormes mudanças. ocorre uma aceleração e uma condensação do tempo histórico.

na linearidade do tempo pendular e mecânico, a tirania do relógio capitalista, irrompe um tempo qualitativo e catalisador no presente de todos os momentos de revoltas no passado.

um tempo prenhe das possibilidades de um futuro indeterminado. o livre arbítrio se impõe ao determinismo. os homens já não mais fazem História sob circunstâncias determinadas. há escolhas a serem feitas num “tempo do agora”. o tempo dos acontecimento.

um tempo liberto do legado transmitido pelo passado. um tempo no qual os vivos se encontram momentaneamente não mais sujeitos ao pesadelo da opressão das gerações mortas. um tempo no qual atos individuais se potencializam e ganham efeito social.

para o tigre dar o seu salto sob um Sol imóvel no meio de seu curso, e o peão branco jogar e vencer em 11 lances, precisamos de uma outra “linguagem” e de uma outra relação com o “inconsciente”.

nunca como antes neste país, uma “Esquerda Alice” foi tão urgente quanto agora.

– O que é… isso? – disse finalmente.
– Isso é uma criança! – disse Hagar pressurosamente.
– Sempre pensei que fossem monstros fabulosos! – disse o Unicórnio. – Está viva?
 Alice não pôde deixar de esboçar um sorriso enquanto dizia:
– Sabe? Sempre pensei também que os Unicórnios fossem monstros fabulosos! Nunca tinha visto um antes!
– Está bem, agora que nos vimos um ao outro – disse o Unicórnio – se você acreditar em mim, acreditarei em você. Negócio fechado?

vídeo: Deixa Passar A Revolta Popular


.

Nenhum comentário: