04/12/2016
“Há
uma estranha felicidade em se agir com o pleno conhecimento de que o que quer
que se esteja fazendo pode bem ser o último ato sobre a terra. Nenhum de nós
tem tempo suficiente.”
“Viagem a Ixtlan” - Carlos Castaneda
o Brasil & os
Brasis ocupam o mesmo espaço geográfico, mas isto é tudo que compartilham:
apenas o território. no mais só existem diferenças irreconciliáveis. são tão
incompatíveis que agora se enfrentam num estado de guerra civil de baixa
intensidade.
um Brasil é
autoritário, elitista, repressor, preconceituoso, discriminatório, machista,
racista, transfóbico, moralista, fascista...
os outros Brasis são
habitados pelo Povo Brasileiro. um Povo sem Medo. esta construção única, do
sincretismo multicultural e da miscigenação. esta visão do paraíso que levou os
estrangeiros, invasores e emigrantes, a se encantarem e a nós se misturarem,
deglutidos por nossa voraz e generosa antropofagia.
o Brasil & os
Brasis agora chegaram a um impasse. já não suportam coexistir imbricados um nos
outros. a fronteira geográfica inexistente acabou ganhando insuportável densidade,
a ponto de comprometer todas as relações, desde o cotidiano até as grandes
decisões nacionais.
são demasiadas as
fronteiras entre o Brasil & os Brasis. fronteiras por toda a parte. excessivamente
presentes. inclusive dentro de cada um de nós, na própria constituição daquilo
que nos tornamos, como indivíduos e como sociedade.
com o golpe do
impeachment cruzou-se uma fronteira definitiva: o Brasil de poucos jamais será
os Brasis de todos. não há retorno.
o Brasil & os
Brasis estão em secessão.
nunca fomos um país.
o Brasil se formou pelo avesso. teve Coroa antes de ter Povo. teve Estado antes
de ser Nação.
a população indígena
se tornou estrangeira em sua própria terra e o contingente de negros
desterritorializados chegou a quase 5 milhões, 44% do total dos africanos
seqüestrados para as Américas.
nunca fomos um país.
sempre se tratou de negócios.
organizou-se uma
holding multinacional, com administração portuguesa, capitais holandeses e
venezianos, mão-de-obra indígena e africana, tecnologia desenvolvida em Chipre
e matéria-prima dos Açores e da ilha da Madeira – a cana. em torno do excelente
negócio do açúcar, a primeira mercadoria de consumo de massas em escala
planetária, se formou o moderno mercado mundial.
a riqueza gerada
pela cana de açúcar na época foi superior, proporcionalmente, ao petróleo na
economia contemporânea.
no Brasil, foram pessoas
do povo que abraçaram um projeto de nossa construção nacional.
se algum dia
chegarmos a ser uma Nação, ela terá sido obra de Zumbi e dos quilombolas, da
resistência indígena, dos Tamoios, Aimorés, Potiguares, Tupinambás e Emboabas.
dos Cabanos, Malês e Balaios. de Filipe dos Santos e Tiradentes. dos Alfaiates
e dos Cariris. do Almirante Negro, do anarco-sindicalismo, da Coluna Prestes,
de Apolônio de Carvalho, Lamarca e Carlos Marighella, das greves do ABCD, da
luta pela “Anistia, ampla, geral e irrestrita”, da fundação do PT e da CUT, das
“Diretas Já”, de Junho de 2013, do movimento contra o golpe de 2016.
um Brasil concebido
como mera base territorial para atender demandas externas, povoado por uma
população extirpada de cidadania e dignidade.
e vários outros
Brasis, construção inacabada da luta de trabalhadores, pobres, favelados,
negros, mulheres, adolescentes, homossexuais, travestis, índios, todos os que
lutam pela libertação de sua carne supliciada.
após um longo e
tortuoso percurso de adiamentos, o Brasil e os Brasis foram apanhados numa
encruzilhada perigosa do destino. o Brasil e os Brasis já não mais podem
sobreviver um aos outros.
em Junho de 2013 o
sistema de poder estabelecido com a Nova República começa a ruir, assim como
1977 marca o início do fim da Ditadura.
a partir de 1977
iniciou-se um longa e tortuosa travessia. a falência histórica do velho já acontecera, mas não sua falência
política. no vácuo deste interregno, através da luta entre os diversos setores
sociais, ocorre a construção de um novo sistema de poder.
estamos hoje também no meio de uma destas arriscadas travessias. prevalecem os sintomas mórbidos, os fenômenos bizarros e
as criaturas monstruosas.
com a fundação do PT
em 1980, até hoje o primeiro partido brasileiro surgido das lutas sociais de
base, um imenso e poderoso setor participa organizadamente da gestação de um
novo modelo político. até então sempre condenados a um papel subalterno, os
trabalhadores assumem inédito protagonismo.
a Constituição de
1988 é a obra ainda incompleta daquela travessia iniciada em 1977, e as
eleições de 1989 sua abortada culminância política.
mas cada geração tem
sua missão, ou cumpre ou trai. a geração das “Diretas Já” tem fracassado
miseravelmente. aprisionada numa maldição, na qual se repete a ressaca
interminável de um dia seguinte que insiste em retornar.
como em 2016, com o golpe
do impeachment de Dilma; como em 2015, com o “ajuste fiscal” de Dilma Roussef;
como em 2014, com a Lava Jato; como entre 2009 e 2014, com as desonerações e
incentivos para os grandes empresários; como em 2005, com o Mensalão; como em
2008, com a operação Satiagraha; como em 2003, com a reforma da Previdência de
Lula; como em 2002, com a “Carta ao Povo Brasileiro”; como em 1999, com a crise
cambial de FHC; como em 1994, com o Plano Real; como em 1993, com o escândalo
dos anões do orçamento; como em 1992, com o impeachment de Collor; como em
1989, com o segundo debate entre Collor e Lula; como em 1985, na posse de
Sarney; como em 1984, com as Diretas Já; como em 1979, com a Lei da Anistia...
a maldição de ser
possível algum acordo dos Brasis com a plutocracia colonial e escravocrata do
Brasil. a conta desta maldição é sempre paga com o sangue dos Brasis sendo derramado
em vão, sob a ingenuidade e má-fé de uma justificativa pelo “não derramamento de sangue”.
em 1961, ao
finalmente desembarcar em Porto Alegre, após a Rede da Legalidade garantir sua
posse, Jango foi recebido por Brizola e comandantes militares com a proposta de
marchar por terra com tropas e povo até Brasília, mas optou ir de avião ao lado
de Tancredo, aceitando o Parlamentarismo.
então os golpistas
tiveram caminho livre para depor Goulart em 1964.
na manhã do primeiro
de abril de 1964, o herói da II Guerra Mundial e comandante da Base Aérea de
Santa Cruz, Rui Moreira Lima, localizou e deu um vôo rasante sobre as tropas
revoltosas, que se apavoraram e se jogaram no mato. contudo, não foi autorizado
a atacar, nem mesmo quando propôs que o bombardeio seria tão somente às
posições da estrada, vanguarda e retaguarda, para estabelecer um bloqueio.
então Mourão chegou
ao Rio, para entregar a “revolução” a um Costa e Silva sonolento e de cuecas.
em 1964, após
retirar-se do Rio para Brasília e em seguida para Porto Alegre, Jango decidiu
pelo exílio, mesmo diante de militares que diziam NÃO ao golpe, como a garantia
dada pelo General Ladário da viabilidade da resistência armada. Brizola não se conteve
e desabafou: “Vai embora, traidor. Tu
nunca mais vais voltar para este país.”.
então se iniciou o
longo dia que durou 21 anos.
em 1984 o Brasil
também estava em transe. o Povo das ruas conclamava por “Diretas Já”. contudo,
em cima dos palanques estava Tancredo Neves. se na frente de milhões de pessoas
Tancredo defendia as “Diretas Já”, nas sombras dos bastidores trabalhava por exatamente
o contrário.
então Tancredo pagou
a traição com a vida, antes mesmo de desfrutar uma gota sequer do gosto do
poder.
em 1993, ao explodir
o escândalo dos “anões do orçamento”, ficou também exposto o mecanismo de
financiamento empresarial das campanhas eleitorais. logo após o impeachment de
Collor, era o momento para desatar o capitalismo de laços brasileiro.
mas Lula e o PT
optaram então pelo conchavo de cúpula, por julgarem ser inevitável sua vitória
nas eleições do ano seguinte.
veio o Plano Real,
que, sob o marketing de “estabilizar” a economia, doou ao setor privado quase
todo o patrimônio público e mesmo assim gerou uma incontrolável dívida interna.
Lula se tornaria
presidente apenas após assinar a “Carta
aos Banqueiros Brasileiros” e, antes de tomar posse, em Washington anunciar
Henrique Meirelles como presidente do Banco Central.
se em 1954, foi
necessário Getúlio atirar contra o próprio peito e sair morto do Palácio, para
que o povo ocupasse as ruas e barrasse o golpe, mesmo assim em 2016 Dilma
Roussef não foi capaz de abrir as portas do Planalto, para o Povo sem Medo nas
ruas entrar e ocupar, sob a palavra de
ordem: “Só sairemos daqui mortos! Não vai
ter golpe! Vai ter luta!”.
então o Brasil &
os Brasis mergulharam na mais grave crise de nossa história.
a crise do Brasil
& os Brasis é a crise de seu setor dirigente. a plutocracia brasileira
jamais solucionará a crise. desde suas origens, ela tem sido a crise que nos
assola.
por que Marcelo Odebrecht, mesmo condenado a mais de 19 anos e preso
desde junho de 2015, com a própria empresa Odebrecht sendo penalizada, não
divulga a única “delação premiada” que lhe caberia: expor a Lava Jato e o
impeachment como uma intrincada luta política contra os interesses do Brasil,
de suas grandes empresas e de sua população?
porque simplesmente
não existe nenhuma “burguesia nacional”.
os grandes empresários jamais romperão com a lógica do sistema, mesmo com o
encarceramento de seus pares e o aniquilamento de suas empresas.
por que o Almte.
Othon, “pai do programa nuclear brasileiro”, condenado a 43 anos de cadeia, não
repete suas enfáticas declarações sobre os interesses estratégicos dos EUA em
barrarem as pesquisas brasileiras na área nuclear, principalmente no que tange
as ultra centrífugas para enriquecimento de urânio?
porque simplesmente
não existe nenhuma “Forças Armadas
nacionalista”. os oficiais superiores jamais romperão com a lógica do
sistema, mesmo com a destruição da soberania de um país e do massacre de um
povo que receberam a missão de defender.
por que Lula e Dilma não expõe a Lava Jato como uma operação
umbilicalmente conectada aos interesses geopolíticos das corporações
transnacionais, dentro do escopo de uma guerra mundial híbrida, apresentando a
este respeito provas abundantes fornecidas pelas agências de inteligência dos
demais membros do BRICS?
porque simplesmente
não existe nenhuma intenção de Lula, Dilma, e toda a Esquerda da qual fazem
parte, em romper com a lógica do sistema.
mesmo sob os
escombros do Estado Democrático de Direito, com um Executivo em estado
terminal, um Legislativo irremediavelmente degradado, um Judiciário e um MP eivados
pela venalidade, corporativismo, seletividade e classismo.
mesmo com a completa
ruína das instituições, nenhuma garantia da manutenção do calendário eleitoral,
sem qualquer perspectiva de recuperação da economia e o país à beira da
convulsão social.
mesmo com um mundo
em rápida mutação, com o fracasso do império unipolar com sua guerra infinita
de extinção contra o planeta, em direção a uma multipolaridade capaz de evitar
o armagedon nuclear e reerguer a economia global do abismo da crise de 2008.
ainda assim, a mesma
Esquerda que arrastou os Brasis pelo caminho anunciado do golpe, insiste em
brandir como solução o pacto, o acordo, a conciliação, o apaziguamento, o
conchavo, a covardia e a traição.
já não há retorno. nenhuma pax nos salvará. chegou o momento de o Brasil e os Brasis
terem seu encontro inexorável com a morte.
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