04 abril 2006

Hamlet insurrecto
Ato 1
O Rei e o Espectro


"Em cada época marcante de sua história, a sociedade brasileira tem sido levada a pensar-se novamente. É como ela se debruçasse sobre si mesma: curiosa, inquieta, atônita, imaginosa. Não só se formulam novas interpretações como se renovam as anteriores.

Acontece que o presente problemático, difícil ou inovador, desafia o entendimento da sociedade, as explicações conhecidas.

As forças sociais predominantes em cada época são levadas a pensar os desafios com os quais se defrontam, os objetivos que pretendem alcançar, os aliados e opositores com os quais negociar, os interesses próprios e alheios que precisam interpretar. Ao pensar o presente, são obrigadas a repensar o passado, buscar e rebuscar continuidades, rupturas e inovações. Mesmo quando pretendem o futuro, são postas a pensar outra vez o passado, acomodá-lo ao presente, ou até mesmo transformá-lo em matriz do devir"
[1]


Rei : “Um fantasma ronda o meu reino.”
[2]
“Assombra permanentemente o castelo, ameaçando o trono e a coroa. Como um teimoso, sempre volta mais uma vez, resistindo a todos os golpes perpetrados contra ele.” [3]

Espectro : Ouve-me !

Rei : Eu sou o Rei morto. Como mortos deveriam estar todos os reis.

Espectro : Ouve-me !

Rei : Eu sou o Rei posto. Como postos estão todos os reis.

Espectro : Pela terceira vez: ouve-me !

Rei : Escuta, escuta ! Oh, Escuta !
“Assassinato infame, como sempre é; mas este é o mais infame, horrendo e monstruoso.
Oh ! Maldito engenho e pérfidas dádivas que possuem tal poder de sedução !
Disseram que estando dormindo em meu jardim, fui mordido por uma serpente; deste modo todos foram grosseiramente enganados com esta fabulosa história de meu falecimento.
A serpente que me tirou a vida, usa agora a coroa que me pertencia.”
[4]

Espectro : “Oh ! Infâmia ! Detém-te, detém-te, meu coração.”
[5]
Qual o maior crime: destronar ou coroar um Rei.
“Nos livros vem o nome dos reis, mas foram os reis que transportaram as pedras ?
Quem ergueu os arcos de triunfo ?
Em cada página uma vitória. E quem pagava as despesas ?
E ninguém mais ?”
[6]

Rei : Hamlet ! Hamlet ! Algum dia todo esse reino será seu.
“Vinga-me o torpe assassinato !
Não permitas que o leito real seja boda de incesto e luxúria.”
Hamlet ! Hamlet !
“Num só golpe sinistro derruba ferozmente tantos príncipes.
Atos sanguinários, julgamentos precipitados, mortes fortuitas, pela astúcia ou pela violência. Erros e intrigas trazendo desgraças. Vinga-me, Hamlet, o torpe assassinato !”
[7]
“Um reino por um assassino.” [8]
“Sejam de sangue seus pensamentos, ou só mereçam o esquecimento !” [9]
Hamlet !
Banhe de sangue o castelo.
“Escave o solo uns palmos mais abaixo, fazendo numa mesma estrada chocar-se um ardil contra outro ardil.”
[10]
Então, mate Polônio. Enlouqueça Ofélia e a arraste ao suicídio. Faça com que a Rainha brinde da taça envenenada. E Laerte caia morto na própria armadilha. Mate o Rei assassino com o veneno que ele mesmo preparou. Então completa sua obra. Morra, Hamlet ! Morra ! Desgraças, infortúnio, tragédia ! Morra,Hamlet !
Fortimbrás herdará o reino e minha vingança será completa !
“Adue, adue, Hamlet. Lembra-te de mim.”
[11]

Espectro : Reis sucedem reis, perpetuando a dinastia de infâmia e horrores.
“Há algo de podre no reino da Dinamarca”
[12]
Os Reis se alimentam da vingança e da tragédia.
“O Rei morreu ! Morram todos os Reis!”
[13]
Eu era o Espectro.
“Atrás de mim, as ruínas da esperança.”
[14]
Eu não sou o Espectro.
“Eu não interpreto mais nenhum papel.
Eu não sou mais um ator.
A esperança não se cumpriu. Três anos depois...”
[15]
Eu sou o espírito daquilo que foi traído. E a vingança não me seduz. Tenho sede e fome de justiça.
Eu dormia eternamente deitado em meu berço esplêndido.
“Foi durante o meu sono, pela mão de um irmão, que perdi ao mesmo tempo a vida, a coroa, a rainha.”
[16]
Sobre o meu caixão se casaram Casa Grande e a Senzala; em meu túmulo copulam os bancos e as favelas.
“Algo está podre nesta época de esperança.”
[17]
A tragédia histórica de transformar em farsa o que foi escrito com sangue nas estrelas.
“Sonhos roubados convertidos em pesadelo. Esperança em medo. Haverá um futuro ? O futuro precisa de nós ? Isso é o que nós somos, o fim e o começo.”
[18]
“Tudo é incerto e derradeiro. Tudo é disperso, nada é inteiro. Hamlet, hoje és nevoeiro... A hora é agora.”
[19]
“Nada a perder, senão os grilhões. E um mundo a ganhar.” [20]

Rei : “Jurai ! Jurai !”
[21]

Espectro : Jurai ?
“Sabemos o que somos ? Sabemos o que poderemos ser?”
[22]
“Esta é a mais terrível de nossas heranças. Somos carne da carne de escravos e de senhores de escravos.” [23]
Jurai ?
“Oh ! Vingança ! Que estúpido sou eu !”
[24]
"Em nenhum momento tão grande foi a distância entre o que somos e o que esperávamos ser." [25]
Jurai ?
“Uma promessa sem fé em si mesma, sem fé no povo, rosnando para os de cima, tremendo diante dos de baixo, egoísta em relação aos dois lados e consciente de seu egoísmo, revolucionária contra os conservadores, conservadora contra os revolucionários; desconfiada de suas próprias palavras de ordem, frases em lugar de idéias, intimidada pela tempestade mundial, mas dela desfrutando – sem energia, em nenhum sentido, plagiaria em todos os sentidos, vulgar porque não era original e original na vulgaridade – traficando com seus próprios desejos...”
[26]
Eu sou o espírito daquilo que foi traído. E a vingança não me seduz. Tenho sede e fome de justiça.
Eu sou a mais vil traição. Eu sou a esperança de um povo reduzida a mentira e ao segredo.
“O mundo está fora dos eixos. Maldita sorte ! Haverá já nascido algum Hamlet para colocá-lo em ordem ?”
[27]


[1] “A idéia de Brasil moderno”, Octávio Ianni
[2] “Manifesto do Partido Comunista”, Karl Marx e Friedrich Engels
[3] “Um mundo a ganhar, Wladimir Pomar
[4] “Hamlet”, Shakespeare – fala do Espectro
[5] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[6] “Perguntas de um operário que lê”, Bertold Brecht
[7] “Hamlet”, Shakespeare – fala do Espectro
[8] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[9] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[10] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[11] “Hamlet”, Shakespeare – fala do Espectro
[12] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Marcelo
[13] “Isso é o que nós somos, companheiro”, arkx
[14] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[15] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[16] “Hamlet”, Shakespeare – fala do Espectro
[17] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[18] “Isso é o que nós somos, companheiro”, arkx
[19] “Mensagem”, Fernando Pessoa
[20] “Manifesto do Partido Comunista”, Karl Marx e Friedrich Engels
[21] “Hamlet”, Shakespeare – fala do Espectro
[22] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Ofélia
[23] “O Povo Brasileiro”, Darcy Ribeiro
[24] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[25] “A Busca de Novo Horizonte Utópico ”, Celso Futado
[26] “A Burguesia e a Contra-Revolução, , Karl Marx
[27] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet

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