04 abril 2006

Hamlet insurrecto

Ato 2
Ser ou não ser Hamlet


“Estamos condenados à civilização.
Ou progredimos, ou desaparecemos.”
[1]

Hamlet : “A questão de todas as questões: ser ou não ser. Que é mais nobre para a alma: sofrer os dardos de um destino cruel, ou pegar em armas contra um mar de calamidades e contra elas lutar até dar-lhes fim.” [2]

(O Espectro vaga pelo palco, delira a história do Brasil)

Espectro : “Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, a mim mesmo, para defender o povo que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre convosco. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história.”
[3]

Hamlet : “Morrer... dormir; nada mais ! Morrer... dormir ! ... Talvez sonhar ! Sim, eis a dificuldade !”
[4]

Espectro : “Esqueçam ! Esqueçam tudo o que escrevi...”
[5]
“Não me deixem só !” [6]
“Forças terríveis levantam-se contra mim e me intrigam ou infamam, até com a desculpa de colaboração. A mim não falta a coragem da renúncia.” [7]
“Laços fora ! Independência ou morte !”
[8]
“Antes que algum aventureiro lance mão.” [9]

Hamlet : “Todos os acontecimentos me acusam, impelindo-me à minha triste vingança! Que papel, então, estou fazendo. Por quê deixo que tudo durma em paz ?”
[10]

Espectro : “Longe vá... temor servil. Os grilhões que nos forjava da perfídia astuto ardil. Não temais ímpias falanges que apresentam face hostil. Vossos peitos, vossos braços. Já com garbo varonil.”
[11]

Hamlet : “Algum tímido escrúpulo de pensar nas consequências com excessiva minúcia (reflexão esta que de quatro partes tem uma só de prudência e sempre três de covardia), não compreendo porque vivo ainda para dizer: ‘Isto ainda está por fazer’, visto que tenho motivo, vontade, força e meios para fazê-lo.”
[12]

Espectro : “Há outro caminho possível.”
[13]
“Mudei de idéia, sim. E daí ?” [14]
“Para fazer o mesmo que o meu antecessor, eu prefiro antes Deus me tirar a vida.”
[15]
“Eu não mudei. É a vida que muda.” [16]

Hamlet : “E é assim que a consciência nos transforma em covardes, é assim que a força inicial de nossas resoluções se debilita na pálida sombra do pensamento e é assim que as empreitadas de maior alento e importância deixam de ter o nome de ação.”
[17]

Espectro : “Como repousar meu coração inquieto, se mais uma vez sucumbimos por não sermos capazes de sonhar o bastante.”
[18]
Se não dissipamos a névoa da ilusão de uma manhã gloriosa, quando, enfim, vindo da terceira margem do rio, retornará um Rei que nunca tivemos ?
“Se toda a realidade é um excesso, uma violência, uma alucinação extraordinariamente nítida, que vivemos todos em comum com a fúria das almas.”
[19]

Hamlet : “Estamos agora exatamente na hora dos feitiços noturnos, quando os cemitérios bocejam e o próprio inferno solta seu sopro pestilento sobre o mundo ! Seria, agora, bem capaz de beber sangue quente e fazer tais horrores que o dia ficaria trêmulo só de contemplá-los !”
[20]

Espectro : “Não te esqueças.”
[21]
“Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não escolhem as circunstâncias, que são o legado do passado.” [22]

Hamlet : Questões e mais questões que me esmagam sob o peso da dúvida, da incerteza, da indecisão...
Devo me entregar de corpo e alma ao mar de sangue da vingança ?
Ou aceitar a mansa resignação do pacto palaciano ?
Mais vale se desfazer dos escrúpulos e conservar o reino; ou não abrir mão dos princípios e junto com o reino perder a própria vida ?
Qual o caminho da justiça ?
“Maldita sorte ! Como recolocar em ordem um mundo fora dos eixos ?”
[23]

Espectro : “Não te esqueças. Não te esqueças.”
[24]



[1] ”Os Sertões”, Euclides da Cunha
[2] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[3] “Carta Testamento”, Getúlio Vargas
[4] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[5] Fernando Henrique Cardoso
[6] Fernando Collor, 22/06/1992
[7] Jânio Quadros, 25/08/1961
[8] D.Pedro I,07/09/1822
[9] D. João VI
[10] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[11] “Hino da Independência”, música: D.Pedro I, letra: Evaristo da Veiga
[12] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[13] “Carta ao povo brasileiro”, Luiz Inácio Lula da Silva, 22/06/2002
[14] José Dirceu, 05/2003
[15] Luiz Inácio Lula da Silva, 09/2002
[16] Luiz Inácio Lula da Silva, 05/2003
[17] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[18] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet; “O Marinheiro”, Fernando Pessoa
[19] “Afinal”, Álvaro de Campos
[20] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[21] “Hamlet”, Shakespeare
[22] “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, Karl Marx
[23] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[24] “Hamlet”, Shakespeare

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