Hamlet insurrecto
Ato 3
Polônio e a utopia do possível [1]
“A modernização, pelo seu toque voluntário, senão voluntarista, chega à sociedade por meio de um grupo condutor, que, privilegiando-se, privilegia os setores dominantes.
A modernização, quer se chame industrialização, revolução passiva, via prussiana, revolução do alto – ela é uma só, com um vulto histórico, com muitas máscaras, tantas quantas as das diferentes situações históricas.
A história que daí resulta será uma crônica de déspotas, de elites, de castas, nunca a história que realiza, aperfeiçoa e desenvolve. A história, assim fossilizada, é um cemitério de projetos, de ilusões e de espectros. O povo, por esse meio, não participa da mudança: ele a padece.
Desta vez, os espectros vagam nas ruas,sem emprego, miseráveis, depois de, perdendo tudo, perderem a esperança.” [2]
Hamlet : “Olha, Polônio. Um fantasma assombra o país. Tremem à presença dele e para conjurá-lo se unem.” [3]
Polônio : “Não vejo nada; todavia estou vendo tudo quanto nos cerca.” [4]
Hamlet : “Como ! Olhai para ele ! Vede seu pálido cintilar ! Sua presença e sua causa, juntas, pregando para as pedras, chegariam a comovê-las !” [5]
Polônio : “É pura invenção de teu espírito. O delírio é muito hábil nessas quiméricas invenções.” [6]
Hamlet : “Delírio ? Se fosse loucura, fugiria aos pulos...
Não derrameis sobre vossa alma a unção lisonjeadora de acreditar que não é vosso delito que fala, mas minha demência.
Nestes tempos, a própria virtude tem de pedir perdão ao vício e ainda deve prostrar-se a seus pés, implorando-lhe permissão para fazer-lhe o bem.” [7]
Polônio : “Grande verdade dizes, meu senhor.” [8]
Hamlet : “Estais vendo ali aquela nuvem, que tem a forma de um vaidoso pássaro ? Olhai que bico excelso ! ” [9]
“De que espécie de bom camarada será membro ?” [10]
Polônio : “Dos Brasis, não é ? Bela plumagem e carne ruim.” [11]
Hamlet : “Sim, tão estranho e feioso que parece uma mistura de pato com réptil.” [12]
Polônio : “É verdade ! Que combinações esdrúxulas ! Uma espécie de aberração! Uma nova classe ! Truncada e sem remissão...” [13]
Hamlet : Não seria um sapo ?
Polônio : “Pelos céus ! E tem barbas ! Como o vamos engolir ?” [14]
Hamlet : Não se ocupe disto. É ele quem vai nos deglutir, sugando nossos sonhos pela sua cloaca imunda. Com a voracidade de um buraco negro, arrasta toda esperança para o coração das trevas.
Polônio : “Que estranha borboleta !
No apogeu da juventude,
protagoniza seu ocaso,
voltando ao casulo
para morrer como lagarta...” [15]
Hamlet : Mas, por falar em animais, aqui estou vendo um rato ? [16]
“Ou é uma criança grande com fraldas ?” [17]
(Hamlet aponta para Polônio)
Polônio : “Será que me conheceis, senhor ?”
Hamlet : “Perfeitamente bem. És quem vende peixes.”
Polônio : “Não eu, meu senhor.”
Hamlet : “Mesmo o Sol que é um deus, se beija cadáver putrefato, gera larva num cão morto...” [18]
Não devias estar na ceia ? [19]
Polônio : Na ceia ?! Onde ?
Hamlet : “Sim. Na ceia. Mas não ceando. Estás melhor sendo comido. Um homem pode pescar com o verme que se alimentou de um rei e comer o peixe que se nutriu daquele verme.” [20]
Polônio : “Que queres dizer com isto ?”
Hamlet : “Nada; simplesmente mostrar-vos como um rei pode circular pelas tripas de um mendigo.” [21]
Posto isto, caro conselheiro, muito cuidado... Não nos deixemos inocular pela mosca azul...
(Hamlet pega um livro e começa a ler)
Polônio : “Que estás lendo, meu senhor ?”
Hamlet : “Palavras, nada mais que palavras...”
Polônio : “Quero dizer: qual o assunto que estais lendo, meu senhor ?” [22]
(Hamlet lê em voz alta)
Hamlet : “De repente, dei-me conta de que navegávamos para oeste, quando todos os planos orientavam-nos a leste. Não me restava alternativa: prosseguir no barco ou atirar-me no rio. Livrei-me da roupa e da bagagem e, abraçado a um cacho de valores, mergulhei. Nadei até a terceira margem do rio, esgueirei-me das piranhas e dos jacarés em busca de mim mesmo.” [23]
(Hamlet volta-se para Polônio)
Hamlet : Falamos tanto de bichos, que até poderíamos fazer uma revolução...
Polônio : Não me agrada em nada a idéia, meu senhor. Revoluções são muito perigosas. É sempre preferível uma modernização que conserve o acordo das elites. [24]
Hamlet : “Então, astuto conselheiro real, cujas intrigas tem a pretensão de enganar até a Deus, estás ou não convencido haver entre o céu e a terra mais coisas do que sonha tua vã filosofia ?” [25]
Polônio : “Meu nobre príncipe, dadas as circunstâncias, é meu conselho lidar com o mal menor enquanto o bem maior se mostra inalcançável.” [26]
Hamlet : “É terrível que o homem se resigne tão facilmente com o existente, não só com as dores alheias, mas também com as suas próprias.” [27]
Polônio : “Fôssemos infinitos, tudo mudaria. Como somos finitos, muito permanece.” [28]
Hamlet : Como saber se um rei é justo ?
Polônio : Se doa esmolas aos pobres e distribui juros aos ricos.
Hamlet : “Pelo que vejo, fazeis o possível com vossa arte...” [29]
Polônio : “Sem dúvidas, meu senhor. Minhas utopias são todas realistas.” [30]
Hamlet : “Que fizeste à Fortuna para que ela vos enviasse para esta prisão ?”
Polônio : “Prisão, meu senhor ?”
Hamlet : “Este país é uma prisão...”
Polônio : “Neste caso, o mundo também é.”
Hamlet : “Uma enorme prisão, na qual existem muitas celas, masmorras e calabouços. E este país é um dos piores.”
Polônio : “Não penso assim, meu senhor.” [31]
Hamlet : “Um satírico maledicente diria que os velhos têm a barba grisalha, a pele enrugada, com olhos que purgam espesso âmbar, que são cheios de ausência de espírito, juntamente com fraquíssimas nádegas. Calúnia ! Não o penso assim nestes termos, porque mesmo vós, tão velho quanto eu ficaríeis, caso pudésseis andar para trás como um caranguejo.” [32]
(Hamlet muda subitamente de assunto)
Hamlet : “Não tendes uma filha ?” [33]
[1] Fernando Henrique Cardoso, 2002
[2] ”A questão nacional: a modernização”, Raymundo Faoro
[3] “Manifesto do Partido Comunista”, Karl Marx e Friedrich Engels
[4] “Hamlet”, Shakespeare – fala da Rainha
[5] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[6] “Hamlet”, Shakespeare – fala da Rainha
[7] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[8] “Hamlet”, Shakespeare
[9] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[10] “O Vigarista”, Herman Melville, acerca do tucano
[11] “O Vigarista”, Herman Melville, acerca do tucano
[12] “O Ornitorrinco”, Francisco de Oliveira
[13] “O Ornitorrinco”, Francisco de Oliveira
[14] Leonel Brizola, 1989
[15] “PT viveu como borboleta, mas morre como lagarta”, Josias de Souza
[16] “Hamlet”, Shakespeare – morte de Polônio
[17] “Hamlet”, Shakespeare
[18] “Hamlet”, Shakespeare
[19] “Hamlet”, Shakespeare – sobre Polônio
[20] “Hamlet”, Shakespeare
[21] “Hamlet”, Shakespeare
[22] “Hamlet”, Shakespeare
[23] “A moca azul”, Frei Betto
[24] ”A questão nacional: a modernização”, Raymundo Faoro
[25] “Hamlet”, Shakespeare
[26] “Hamlet. Eis a questão”, Reinaldo Azevedo
[27] “A esperança do mundo”, Brecht
[28] “Se fôssemos infinitos”, Brecht
[29] “A política é a arte do possível”, Bismarck
[30] “A idéia da revolução democrática”, Tarso Genro
[31] “Hamlet”, Shakespeare
[32] “Hamlet”, Shakespeare
[33] “Hamlet”, Shakespeare
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