04 abril 2006

Hamlet insurrecto

Ato 4
Ofélia assassina


“Como se pode acreditar em reconstrução da sociedade após um século de derrocada das utopias? O mundo assiste à vitória do conformismo, travestido de realismo.


A esquerda atua e fala como se escondesse um plano que não tem. Temerosa da reação econômica a qualquer iniciativa transformadora, esforça-se para parecer confiável aos que manejam o dinheiro.

É também por falta de confiança e de clareza a respeito de outro rumo que os progressistas se entregam.

A obra do pensamento é compreender o mundo e mudá-lo. A primeira tarefa de um homem, porém, é não morrer aos poucos: viver de tal maneira que possa morrer de uma vez só. O preço da vitalidade é a renúncia às defesas com que nos protegemos contra a desilusão e a derrota. Quem pagar esse preço pagará pouco por muito.” [1]


(Hamlet sentado com um crânio nas mãos)

Hamlet : “Eu quero ser uma mulher.”
[2]
Não para ter uma buceta. Eu não quero deixar de ser homem para ser uma mulher. Eu quero ter um útero. Com o órgão que as mulheres geram pessoas, serei capaz de parir sonhos.

Ofélia : “Eu sou Ofélia.”
[3]
Aquela que é cortejada e igualmente desprezada pelos homens, conforme seus desejos e seus interesses. Meu destino é deixar-me conduzir pela mão traiçoeira de um Rei assassino para me tornar a Rainha incestuosa.
“Ao voltar meus olhos para o fundo de minha alma, somente enxergarei manchas, tão negras e tão profundas que nunca poderão ser apagadas.”
[4]

(Hamlet caminha em direção a Ofélia)

Hamlet : “Ah ! Abjeção ! Ela ! Ela mesma ! Antes mesmo que o sal das lágrimas hipócritas abandonasse o fluxo de seus olhos inflamados... Olhos sem tato, tato sem vista, ouvidos sem mãos ou olhos, olfato sem nada, a mais insignificante parte de um único e saudável sentido teria bastado para impedir semelhante estupidez. Estoura meu coração, pois devo refrear minha língua !”
[5]

Ofélia : Eu sou Ofélia.
Aquela que os homens querem que enlouqueça e que se suicide.
“Adornada com estranhas grinaldas de botões de ouro, urtigas, margaridas e flores púrpuras, atiro-me no soluçante riacho. Enquanto canto estrofes de antigas árias, inconsciente de minha própria desgraça, afundo lentamente para a morte lamacenta, em meio às melodias de minha loucura.”
[6]

Hamlet : “Entra para um convento ! Por que desejas ser mãe de pecadores ? Sou muito orgulhoso, vingativo, ambicioso, com mais pecados na cabeça do que pensamentos para concebê-los, imaginação para executá-los. Por que hão de existir pessoas como eu arrastando-se entre o céu e a terra ? Todos nós somos consumados canalhas; não acredites em nenhum de nós. Segue teu caminho para o convento.”

Ofélia : Eu sou Ofélia. Mas eu não vou mais representar Ofélia.
Eu não vou mais enlouquecer. Eu não vou mais me matar.
Eu não quero mais ser Rainha. Eu não quero mais ser esposa. Não quero me casar. Não quero mais ser mãe. Não quero mais ser virgem e casta. Não quero mais ser devassa. Não quero mais servir aos homens.
Todo homem que um dia caminhou sobre a face da terra, começou a viver dentro do meu ventre; veio ao mundo pelo meio de minhas coxas; ganhou a luz pelo buraco de minha vagina.
Todo homem é resultado do sêmen depositado em meu útero.
“E hoje eu devolvo ao mundo todo o esperma que recebi, porque ele se transformou num veneno mortal.”
[7]
Eu não quero mais ser fecundada pelos homens. Eu não quero mais ser uma máquina de parir gente.
Eu não quero ser homem. Eu quero ser uma mulher. Mas eu não quero ser uma mulher num mundo de homens. Eu quero ser Ofélia.
Meu coração é o pêndulo do mundo.
“Eu arranquei o relógio que era meu coração para fora do meu peito. E fui para as ruas, vestida com meu sangue.”
[8]

(Hamlet novamente com o crânio nas mãos)

Hamlet : “Ser ou não ser... Eis a questão.”
[9]

Ofélia : Eis o Príncipe indeciso. Incapaz de transformar suas dúvidas em ação. Incapaz de agir sem provocar tragédias.
Eis o Príncipe acorrentado aos fantasmas de um passado que exige vingança. Incapaz de atender a um presente que clama por justiça. Incapaz de construir um futuro que não seja vil e iníquo.
Eis o Príncipe, o herdeiro do trono. Incapaz de romper com a sucessão de donos do poder. Incapaz de olhar para além das muralhas do palácio.
“Há algo de podre no reino da Dinamarca.”
[10]
Onde estarão os Dinamarqueses ? Por que estão sempre fora de cena os Dinamarqueses ?
Que tumulto é este fora do palco ?
“Um fantasma ronda esta peça.”
[11]
Todos se unem para exorcizá-lo. Em vão !
Eu já não sou Ofélia. Sou a nação traída.
“O país inteiro transformado num puteiro.
O futuro repetindo o passado.
Um museu de grandes novidades.”
[12]
“Toda a luminosa esperança de uma inteira nação convertida num repugnante acordo entre financistas e famintos, entre os bancos e os grotões.” [13]
Eu já não sou Ofélia. Sou a multidão de humilhados.
Sou o exército de miseráveis.
Sou a privação de humanidade. Os sem-teto. Os vagabundos. Os mendigos.
Sou a privação de atividade. Os velhos, os loucos, os doentes, os delinqüentes.
Sou a privação de trabalho. Os imigrantes clandestinos, os refugiados políticos, os desempregados.
Sou a privação de liberdade. Os proletários e as prostitutas. Os adolescentes e os subempregados.
[14]
Sou a rebelião, a insubmissão, a resistência, a insurreição.
Sou a fúria e a paixão.

Hamlet : “Que é mais nobre para a alma: sofrer os dardos de um destino cruel, ou pegar em armas contra um mar de calamidades e contra elas lutar até dar-lhes fim.”
[15]

(Ofélia aponta para Hamlet)

Ofélia : Eis a questão.
“Eis o homem.”
[16]
Aquele que destronou Deus e ocupou o seu lugar.
“Reis sucedem reis, perpetuando a dinastia de infâmia e horrores.
[17]
Disseram que ao adormecer em seu jardim, Deus foi mordido por uma serpente. A serpente que lhe tirou a vida, agora usa a coroa que a ele pertencia.
[18]
“Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? — também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, nós assassinos entre os assassinos?” [19]
Eis o homem.
“Que obra-prima é o homem ! Para mim, entretanto, o homem não passa da quintessência do pó.”
[20]
"O homem nada mais é que uma corda estendida entre o animal e o super-homem: uma corda sobre um abismo; travessia perigosa, temerário caminhar, perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar.
A grandeza do homem é ser ele uma ponte, e não uma meta; o que se pode amar no homem é ser ele uma transição e um ocaso."
[21]
Deus está morto e também o homem deve morrer.
“Hamlet desaparecerá, como na orla do mar um rosto de areia.”
[22]

(Ofélia mata Hamlet)

Ofélia : O homem está morto.
“O mundo está fora dos eixos. Bendita sorte ! Eu quero parir o ser capaz de colocá-lo em ordem !”
[23]



[1] “Contra a corrente”, Roberto Mangabeira Unger
[2] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[3] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[4] “Hamlet”, Shakespeare – fala da Rainha
[5] “Hamlet”, Shakespeare
[6] “Hamlet”, Shakespeare – fala da Rainha
[7] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[8] “HamletMaschine”, Heiner Müller
[9] “Hamlet”, Shakespeare
[10] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Marcelo
[11] “Manifesto do Partido Comunista”, Karl Marx e Friedrich Engels
[12] “Brasil”, Cazuza
[13] “Anti-corvos”, arkx
[14] “A política do rebelde”, Michel Onfray
[15] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[16] João: 19,5
[17] “Hamlet insurrecto”, arkx
[18] “Hamlet”, Shakespeare – fala do Espectro
[19] “A Gaia Ciência”, Nietzsche
[20] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet
[21] “Assim falou Zaratustra”, Nietzsche
[22] “As palavras e as coisas”, Michel Foucault
[23] “Hamlet”, Shakespeare – fala de Hamlet

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