28 setembro 2008

o texto somos nós [1]

um texto não é uma sequência linear de palavras, mas uma amplidão infinita de dimensões múltiplas, onde se entrelaçam, e também se chocam, muitos outros textos, nenhum dos quais é original.

um texto sempre é um tecido de citações. palavras só podem explicar-se através de outras palavras.

a única criatividade de um texto é seu poder de misturar outros textos, de contrariá-los uns aos outros, sem nunca se apoiar em qualquer deles, para fazer com que estes outros textos entrem em diálogo.

por isto escrever é tão perigoso. só quem tentou, sabe. há o perigo de mexer no que está oculto – e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas. há ciladas nas palavras. as palavras que dizemos escondem outras – quais? escrever é uma pedra lançada neste abismo sem fundo. [2] um abismo que sempre chama outros abismos.

o que se escreve nunca é o que se escreve e sim outra coisa. é preciso que alguém leia. para que se possa ouvir o silêncio de quem escreve. para captar essa outra coisa que na verdade foi escrita, porque quem mesmo escreve não pode fazê-lo. [3]

pois se há lugar no qual se possa reunir essa multiplicidade de que um texto se faz, esse lugar não é o autor. o leitor é o espaço exato em que se inscrevem todas as citações de que um texto é feito.

ler um texto é recolocá-lo sobre ele mesmo para rasgar a superfície de sua linearidade inicial. é o trabalho da leitura que produz o sentido de um texto, ao reportá-lo não apenas a outros textos e imagens, como também a sentimentos e desejos de quem lê.

pouco a pouco, não é mais o sentido do texto que nos ocupa, mas a direção e a elaboração de nosso pensamento. e do texto, logo nada mais resta. ele nos serviu de interface conosco mesmos.

a interpretação e o sentido não remete mais, desde então, à intenção de um autor, mas antes à apropriação de um leitor. já não interessa o que pretendeu um autor ausente, desde que o texto nos faça pensar, aqui e agora.

para que nasça o leitor tem de pagar-se com a morte do Autor. para um texto se iniciar, para que a linguagem possa falar, o autor adentra em sua própria morte. o texto não está mais em sua origem, mas no seu destino: o leitor.

entretanto, até este destino já não pode ser pessoal.

para se escrever um texto ainda hoje são usados sistemas de signos, sejam alfabéticos ou ideográficos, surgidos quando se dispunha apenas de suportes estáticos. mesmo o hipertexto multimídia apenas conecta em rede signos inventados para suportes anteriores.

como seria um sistema de signos específico para um suporte dinâmico, interativo, dotado de memória e de capacidade de cálculo autônomo que constitui a tela do computador?

uma linguagem de imagens interativas. uma ideografia dinâmica. capaz da simulação multimodal de realidades virtuais.

as simulações gráficas interativas, nem experiência nem teoria, são uma forma de texto, certamente não sob a notação da palavra, que abrem uma nova via à descoberta e à aprendizagem. um outro modelo de construção e transmissão de conhecimento.

o conhecimento é o fundamento do poder. é a capacidade de aprender e de inventar que sustenta o poder econômico.

nas sociedades anteriores à escrita, o saber estava encarnado na comunidade viva e sua transmissão era oral. quando um velho morria, uma biblioteca se queimava. com o advento da escrita, o saber se registrou nos livros, se expandiu para as enciclopédia e se arquivou nas bibliotecas. através da invenção da imprensa, o acesso ao conhecimento se disseminou.

com a web, é como se todos os textos fizessem parte de um só texto. um hipertexto de autoria coletiva em transformação permanente. não é mais o leitor que se desloca diante do texto. é o texto que, como um caleidoscópio, se desdobra diferentemente diante de cada leitor.

toda leitura passa a ser uma escrita em potencial. informação e conhecimento se tornam fluxo. as pessoas não mais giram em torno do saber, mas o saber gira em torno das pessoas.

a web está se tornando o lugar fundamental da comunicação e do pensamento humano. é como se o coletivo novamente fosse portador do conhecimento.

por um retorno em espiral à oralidade das origens, o saber pode ser retomado pelas coletividades humanas vivas. não a comunidade física, mas o cyberspace, por intermédio do qual a comunidade conhece a si própria e ao seu mundo.

as pessoas deixam de estar separadas entre si e ligadas todas em relação a um centro, e são multiplicadas as conexões transversais entre todos.

a comunicação não é mais concebida como difusão de mensagens, troca de informação, mas como emergência continuada de uma inteligência coletiva.

a transcendência do texto começa a declinar. menos irradiados pelo espetáculo midiático, a imanência do saber à humanidade que o produz e o utiliza torna-se mais visível.

seremos tanto mais livres quanto mais formos um texto vivo.


[1] referências: Michel Foucault (“O que é um autor?”), Roland Barthes (“A morte do autor”), Pierre Lévy (“Nós somos o texto”)
[2] Clarice Lispector
[3] Clarice Lispector

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