20 dezembro 2007

indústria da seca

em 1959, Celso Furtado foi chamado por JK para estudar e traçar um plano para o Nordeste. cumprindo essa missão, o economista paraibano chegou a conclusão de que não mais se deveria inutilmente combater as secas com “soluções hídricas e grandes projetos de engenharia”. [1]

embora no imaginário nacional o semi-árido seja visto como uma região seca, tem uma pluviosidade de 750 bilhões de metros cúbicos por ano, dos quais apenas são aproveitados 30 bilhões, tem águas de subsolo e muita água estocada em açudes. [2]

a “seca do nordeste” é muito mais um problema social do que um problema da natureza.

Celso Furtado entendia que o projeto da transposição do rio São Francisco era "uma panacéia”, prioritariamente beneficiando os grandes proprietários de terras, que teriam "novos açudes para evaporar”, pois “o problema não está em ter mais água, mas em usar bem a água que já existe." [3]

o Nordeste tem mais de setenta mil açudes particulares de pequeno e médio portes, e mais de quatrocentos açudes públicos de médio e grande portes, com capacidade de armazenamento total de cerca de trinta bilhões de metros cúbicos, maior que a da barragem de Três Maria (cerca de 21 bilhões) e quase igual ao da grande barragem de Sobradinho (cerca de 34 bilhões). [4] trata-se do maior volume represado em regiões semi-áridas do mundo. [5]

a defesa do projeto da transposição se baseia nos seguintes pontos principais:

- a transposição é indispensável para resolver a situação de doze milhões de pessoas no Nordeste Setentrional;
- prevê retirar apenas 1% da vazão do São Francisco, sem prejudicar a utilização já existente;
- só haverá utilização maior de águas quando o nível do reservatório de Sobradinho estiver acima de 94%.
- o custo é muito baixo, pois evitará as despesas de quase todo ano no socorro a flagelados da seca;

nenhum destes pontos tem o menor embasamento técnico.

no Eixo Norte não há déficit hídrico para abastecimento da população. conforme o EIA/RIMA do empreendimento, 80% da água a ser transportada para esta região destina-se à irrigação e à criação de camarões. [6]

no Ceará, por exemplo, existe uma oferta hídrica potencial de 215 m³/s em suas bacias hidrográficas e uma demanda atual de 54 m³/s. no Rio Grande do Norte existe uma oferta potencial de 70 m³/s e uma demanda de 33 m³/s . na Paraíba, um dos estados mais problemáticos da região em termos de garantias hídricas, existe uma oferta potencial de 32 m³/s e uma demanda atual de 21 m³/s. não há escassez hídrica nos estados receptores, não se justificando, portanto, o ingresso das águas do rio São Francisco naqueles estados para fins de abastecimento. [7]

só os 2,4 bilhões de metros cúbicos do açude Açu seriam suficientes para abastecer a população do Rio Grande do Norte durante vinte anos – mas prevê-se abastecer o estado com águas transpostas do São Francisco. [8]

se a região receptora precisasse de água apenas para consumo humano, nem haveria a necessidade da transposição. o problema básico do semi-árido é a falta de confiabilidade de água para atividade produtiva, o que obriga a manter muita reserva técnica nos açudes, parte das quais acaba se evaporando. [9]

o acréscimo vindo da transposição não cobre nem a evaporação dos açudes. se os 2,10 bilhões fossem totalmente direcionados só para o açude do Castanhão (CE), apenas compensaria a evaporação deste mega açude que é, igualmente, de 2,10 bilhões de m³/ano. [10]

é um sofisma dizer que a transposição utilizará apenas 1% da água do São Francisco que chega ao Atlântico. a comparação honesta é relacionar o volume a ser captado com a vazão outorgável definida no âmbito do Plano de Recursos Hídricos. a vazão outorgável foi definida em 360 m³/s. este é o volume reservado para uso consuntivo em toda a bacia. [11]

dos 360 m³/s alocáveis na bacia, cerca de 335 m³/s já foram outorgados, restando apenas 25 m³/s - coincidentemente o que se pretende alocar como a nova justificativa do projeto de transposição. [12]

a demanda média do projeto será de 65 m³/s, podendo a vazão máxima atingir cerca de 127 m³/s, como restam apenas 25 m³/s outorgáveis, o rio já não dispõe, hoje, dos volumes necessários ao atendimento das demandas do projeto. [13]

mesmo com a regra de operação do projeto, de retirar uma vazão acima de 26m³/s somente quando o reservatório de Sobradinho estiver vertendo, isto é, quando tiver água “sobrando”, traz mais dúvidas do que certezas, porque os estudos comprovam que esta situação ocorre somente em 40% do tempo. em 10 anos só seriam retirados mais de 26 m³/s durante 4 anos. [14]

a represa de Sobradinho verteu em 1997 e voltou a verter em 2004. nesses sete anos, a bacia do rio passou por secas sucessivas, culminando, em 2001, com a mais séria crise energética da nossa história. [15]

o custo médio da água do projeto de transposição cobrado pelo uso da água bruta nos estados receptores será de R$ 0,1467/m³. este será o metro cúbico de água para irrigação dos mais caro do mundo, os projetos agrícolas ficarão inviáveis. [16]

segundo o EIA-Rima do projeto, a região potencialmente irrigável a ser beneficiada pela transposição é de 265.853 hectares. no Vale do São Francisco - segundo o Comitê de Bacias - existem 340 mil hectares irrigáveis e um potencial de mais 800 mil hectares, hoje não aproveitados justamente por falta de investimentos em valor muito inferior ao da transposição. [17]


as projeções do Ministério da Integração Nacional apontam como beneficiados pela transposição 9,075 milhões de habitantes. número que, pela evolução demográfica, deverá alcançar cerca de 12 milhões em 2025. a auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU), com base em informações fornecidas pelos governos dos Estados "receptores" de águas do São Francisco (Ceará, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Paraíba), estima à população potencialmente beneficiada pelo projeto em 7,031 milhões de pessoas. [18]

conforme informa o Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco, o Projeto de Transposição atende a menos de 20% da área do Semi-Árido e 44% da população que vive no meio rural continuará sem acesso a água. significa dizer que, de 5.712.160 habitantes (Censo IBGE 2001) da população rural dos quatro estados, apenas 3.198.809 habitantes é que serão beneficiados. [19]

portanto um número muito diferente daquele anunciado pelo projeto, que é de 9,075 milhões de pessoas. [20]

de acordo com a Embrapa, do total de precipitação pluviométrica caído anualmente no Nordeste, estimado em cerca de 700 bilhões de m³, 642 bilhões são consumidos pelo fenômeno da evapotranspiração. cerca de 36 bilhões são despejados no mar, em virtude do intenso escoamento superficial existente. e 22 bilhões de m³ são efetivamente pelos habitantes da região. bastaria o aproveitamento de 1/3 dos volumes escoados e manejados para o efetivo abastecimento de toda população nordestina (hoje estimada em 47 milhões de pessoas), com uma taxa de 200 litros por pessoa/dia e para a irrigação de cerca de 2 milhões de hectares, com uma taxa de 7.000 m³ por hectare/ano. [21]

numa só noite chuvosa, com precipitação de 70 mm num terço do Semi-Árido (300.000 km²) desabam sobre esta superfície exatamente 2,1 bilhões de m³ de água, o mesmo volume da transposição. [22]

o problema não está em ter mais água, mas em usar bem a água que já existe.

falta apenas uma grande e potente rede de adutoras para levar esta água a todos os recantos do semi-árido.70% dos açudes públicos não estão disponíveis para a população.

o custo atual da transposição, a maior obra do PAC, totaliza R$ 6,6 bilhões. esta verba não inclui os investimentos adicionais para levar a água para a população nas áreas laterais dos canais e para regiões mais dispersas do sertão, cujas despesas ocorrerão por conta dos governos estaduais. estima-se na verdade, que o custo final da obra chegue à R$ 20 bilhões. [23]

nos últimos anos, apesar da obra não ter saído do papel, a transposição do Rio São Francisco já custou aos cofres públicos, de acordo com o SIAFI, cerca de 466 milhões de reais. a maior parte do dinheiro foi paga ao consórcio Logos-Concremat, que venceu licitação para administrar o projeto, a começar pelas licenças ambientais. [24]



[1] Celso Furtado, “A Operação Nordeste”
[2] Marco Antônio Coelho, “A política governamental de obras contra as secas”
[3] Washington Novaes, “A transposição demolida antes de começar”
[4] Alberto Daker, em “Os descaminhos do São Francisco”, Marco Antônio Coelho
[5] João Suassuna, “Abastecimento no Nordeste: morrendo de sede no deserto com água no joelho.”
[6] José Carlos Carvalho, depoimento na Câmara dos Deputados
[7] João Suassuna, “Abastecimento no Nordeste: morrendo de sede no deserto com água no joelho.”
[8] Universidade Federal do Rio Grande do Norte
[9] Luis Nassif, “A transposição do São Francisco”
[10] Manoel Bomfim Ribeiro, “Ttransposição – uma análise cartesiana”
[11] José Carlos Carvalho, depoimento na Câmara dos Deputados
[12] João Abner Guimarães Jr., “O lobby da transposição”
[13] João Suassuna, “Transposição: projeto tecnicamente ruim, socialmente preocupante e politicamente desastroso.”
[14] José Carlos Carvalho, depoimento na Câmara dos Deputados
[15] João Suassuna, “Transposição: projeto tecnicamente ruim, socialmente preocupante e politicamente desastroso.”
[16] João Abner Guimarães Jr.
[17] Luis Nassif, “O Bird e a transposição”
[18] Alberto Daker
[19] Alberto Daker
[20] Alberto Daker
[21] Aldo Rebouças
[22] Manoel Bomfim Ribeiro, “Transposição – uma análise cartesiana”
[23] Alberto Daker
[24] Alberto Daker

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