30 abril 2020

Diários da Pandemia: duplo psicoterápico





naquela manhã ele acordara ainda pensando num intrigante sonho que tivera. 

não lhe era incomum ter sonhos estranhos, mas aquele, apesar de nem ser tão estranho, prenunciava uma situação prestes a se materializar em seu cotidiano.

como ele não antevia como isto seria possível, tudo a fazer seria se manter em observação atenta. 

a vidência é quase sempre compreendida como a capacidade de se antever o futuro. mas do futuro nada há a se ver, a não ser uma nuvem fugidia de possibilidades em incessante alteração.

longe de ter a ver com o futuro, a vidência é "a visão do que está tomando forma" aqui e agora. ver neste exato instante aquilo que apenas tarde demais todos acabarão também por ver.

e o que todos enfim podiam ver? o colapso macabro de um modo de vida...

a pandemia de SARS-CoV 2 assolava o planeta, fazia milhares de vítimas e paralisara as cadeias produtivas. o mundo tal qual o conhecêramos deixara de existir.

acontecera algo. mas acontecera o quê? o que era isto que acontecia?

apesar de uma pandemia ser uma tragédia há muito anunciada, a ruptura provocara uma súbita descontinuidade com o estado anterior.

mesmo de modo pouco consciente, era possível com clareza se experimentar isto.

confinados na reclusão forçada de uma prisão domiciliar, todos sentiam-se como rasgados de si mesmos. a linearidade de suas vidas fora dilacerada.

como haveria de ser dali em diante? tudo é incerto diante do desconhecido. a única certeza era o pânico. pânico diante da morte. pânico diante da vida.

mesmo processando incessantemente estes pensamentos, ele não deixava de se questionar sobre o sonho.

até mesmo porque, tudo estava duplamente entrelaçado, sonho e realidade...

na véspera, fora obrigado pelas circunstâncias a abrir mão de sua participação num site de considerável visibilidade.

o "Duplo Expresso" fazia sucesso, mas esta é uma das artimanhas usadas pela vida para seduzir aqueles a quem pretende colocar em xeque.

seu foco vinha sendo a publicação da série "Diários da Pandemia", tanto uma diversificada coletânea de relatos, com ênfase especial na população das favelas e periferias e nos profissionais de saúde atuando na linha de frente, como na articulação de uma Rede de Informação e Solidariedade, aplicando o conceito de que só através da organização popular de base é possível ter êxito na luta pela saúde.

divergências insuperáveis quanto ao trabalho em equipe e no método de gestão de pessoas seguidamente se impuseram, até inviabilizar por completo sua presença.

embora fosse uma lástima, não se tratava com certeza de nenhuma situação inédita ao longo daquela sua já longa vida...

todo processo de emancipação se dá numa espiral de fluxos e contra-fluxos.

uma espiral cuja fase inicial é de agregação, em seu movimento se expande para acumular forças até desembocar numa depuração, a partir da qual pode haver um salto qualitativo para um patamar superior.

ou o processo entra em refluxo. e decai.

contudo, em meio a todas estas reflexões, naquele momento o sonho ocupava um espaço prioritário.

no sonho, um grupo debatia a situação atual com a pandemia, exatamente como se fosse um Grupo de Trabalho avaliando o cenário para encaminhar intervenções.

em seguida abordamos a questão específica do DE - Duplo Expresso.

ao final da reunião, as pessoas vão se dispersando, trocando um papo trivial umas com as outras.

num evidente ato falho, eu me levanto. dou um giro de 180 graus. e me deparo com uma mulher ainda sentada, me olhando com um simpático sorriso irônico.


falo: oi!

ela responde: vc não está me conhecendo, né.

- me desculpe, mas não.

- a gente se comunicou lá no grupo do DE.

- é?! foi?

- depois tivemos uma divergência.

penso por um instante. logo me dou conta:

- ah! você respondeu uma msg minha direta prá vc. e disse que eu tinha me excedido!

- isto. fui eu.

- mas eu respondi que concordava com vc, e que suas opiniões eram bem vindas.

- só que eu não disse tudo que pretendia...

- tudo bem! pode me criticar à vontade. só não garanto que eu vá concordar.

passamos boa parte de nossas vidas dormindo. e sonhando.

ao menos assim deveria ser. e assim o foi por muitos séculos. atualmente proliferam todos os tipos de transtorno do sono. dorme-se cada vez menos tempo, e cada vez mais sem qualidade.

para os freudianos, o sonho é a janela do inconsciente. por ela se mostra a paisagem de nosso psiquismo profundo.

mas a teoria do inconsciente de Freud se exime por completo de considerar ser Édipo o resultado de relações sociais determinadas historicamente. e não uma condição constitutiva a qual estamos condenados, sem remissão.

ninguém nasce edipiano, torna-se.

sob uma outra perspectiva, o que seriam então os sonhos? dizem que os sonhos são reais apenas enquanto duram. mas assim não é também a própria vida?

quando de fato sonhamos? quando achamos que dormimos? ou quando supomos que acordamos?

o sonho é uma estrutura dupla? o eu do cotidiano sonha o eu do sonho? ou seria justamente o eu do sonho quem sonha o eu do cotidiano?

mesmo sendo estas divagações inúteis e sem resposta, algo é inegável: existem sonhos premonitórios.

não é de todo incomum as pessoas sonharem com algo por acontecer, o que acaba se confirmando posteriormente no cotidiano.

mas esta constatação apenas reforça a complexidade de nossa relação com os sonhos. um sonho premonitório se antecipa ao real, ou o induz?

seja como for, o presságio daquele sonho logo se concretizaria.

ele estava editando um vídeo, dentro da perspectiva dos "Diários da Pandemia", mas faltava a cena final.

por uma dessas coincidências que até parecem intencionais, lhe chega via aplicativo de msg instantânea uma gravação com uma cena emocionante, exato a que completava a edição.

numa comunidade na periferia da periferia do Rio de Janeiro, ao longo de um estreito corredor entre casas de alvenaria, uma fila indiana de ativistas passava de mãos em mãos, contando, as cestas básicas para armazenar e posterior distribuição à população carente, agora ainda mais vulnerabilizada pela pandemia.

impossível não sentir lágrimas umidecerem o olhar.

editado o vídeo, ele o encaminha para alguns de seus contatos. entre os retornos recebidos, um deles se particularizou.

a mesma mulher que no momento do conflito no Grupo de Discussão do site, o fator desencadeante de sua saída, se manifestara, e haviam mesmo trocado poucas e rápidas msg diretas, comenta ser uma pena o vídeo não ter sido postado.

retruca, afirmando constituir-se numa missão inglória trabalhar em equipe com alguém mimado, imaturo, verborrágico e egocêntrico que se coloca como "dono", além de odiar críticas.

então, como seria previsível numa história demonstrando seguir algum roteiro, a mulher pergunta se podia dar sua opinião sobre o assunto.

ora! estava ali caracterizada a mesma situação do sonho! mais uma vez o cotidiano e o onírico se entrecruzavam, um como o duplo do outro.

seguindo à risca aquilo previamente apresentado no sonho, coloca-se acessível para receber as ponderações dela:

"Você também foi mimado.
'Dispensou' uma administradora no grupo publicamente.
Ficou publicando, publicando eternamente aquela sua reclamação.
Não se faz isso também. Não se desafia um chefe para 1.500 pessoas. Acho que ele não pôde tomar outra decisão.
Vc não respeitou uma hierarquia. Existem espaços para se lavar a roupa suja. E mesmo em uma discussão privada, existem formas de se fazer tudo.
Vc foi inadequado.
Desculpe a franqueza."


respondeu que tudo havia sido intencional, e não impulsivo como poderia parecer. esgarçara até o limite um conflito anterior vindo de longe, o qual desejavam manter suprimido, não obstante suas consequências tóxicas.

também citou o exemplo de como no dia seguinte um dos @admin postara uma desculpa pública pelos excessos e grosserias cometidos por ele.

ao anoitecer daquele mesmo dia, ele volta à comunicação com a mulher, postando uma msg na qual perguntava se podia dar sua opinião sobre a opinião dela.

explicou com clareza e paciência que a questão desencadeante do conflito era conhecida e repetitiva. mais uma vez um dos participantes do grupo fora bloqueado arbitrariamente.

bloqueios e banimentos devem ser o último recurso de gestão de um grupo, e não o primeiro. evidenciando uma contra-producente diretriz de gestão de pessoas e de resolução de conflitos, incapaz de fomentar a formação de um espírito de equipe.

também pediu que a mulher notasse como a partir do momento da manifestação dela no grupo, ele interrompera sua postagens e se dirigira diretamente à ela.

"Considere:Talvez eu estivesse tentando induzir uma reação como a sua no grupo.
E mais: Ninguém pode mediar um conflito no qual é uma das partes!
O @admin ressuscitou um problema já superado no dia anterior e ainda provocou outros ainda piores.
A diretriz está errada. A prática comprova isto."

entretanto, para a mulher ele havia cometido um erro intolerável:

"Isso é totalmente sem sentido. Só vc poderia fazer essa conta, ou o número de vezes que ele tinha agido erradamente.
Não quero ser rude, mas esse ato demonstra um desequilíbrio de sua parte.
Inaceitável, diga-se de passagem, porque uma pessoa da administração não pode acentuar um desequilíbrio ou erro de gestão em público."

a irritação e discordância dela eram tamanhas que em sua próxima msg escalou para um nível mais rude:

"Leia isso. Eu sou psiquiatra, posso indicar um profissional de vc quiser.
Acho que vc realmente deveria prestar atenção naquela sua reação. Ficou patente, não só para mim."

a agressividade dela não o surpreendeu, até por ser um padrão daquilo por ele denominado de Síndrome de Facebook, uma característica presente na comunicação via redes sociais e aplicativos, sempre acirrando os já miseráveis problemas dos relacionamentos interpessoais.

para ele, o estranhamento vinha da dissonância entre o fluido diálogo ocorrido no sonho e sua contraparte truncada acontecendo naquele momento.

por outro lado, quando trocamos mensagens na web, seja numa área de comentários ou via qualquer rede social, para quem escrevemos? qual nosso interlocutor? há de fato algum diálogo? ou estamos inexoravelmente sozinhos dentro de uma bolha virtual?

talvez tudo se resuma num monólogo estéril com o Big Data, esta interface muda incapaz de interlocução.

mas logo na msg seguinte, a mulher muda de tom:

"Vi o vídeo de seu sítio. Vc deu soluções fantásticas de sustentabilidade."

com isto se abria a possibilidade de o sonho se concretizar. e com certeza, ele não deixaria a oportunidade escapar.

segue-se uma conversa em tom amigável, embora um tanto inquisidora da parte dela, com muitas perguntas e pouca reciprocidade no compartilhamento de informações.

nestes casos, quando a possibilidade de reincidir um conflito é alta, sempre é recomendável deixar o interlocutor conduzir o curso do assunto.

mesmo com esta estratégia, o objetivo final para ele permanecia inalterado: chegar até uma situação adequada para narrar o sonho.

e assim foi. aos poucos construiu-se um nível de equalização viabilizador para ser abordado o ponto principal daquela comunicação.

após ele postar o sonho, a resposta dela foi rápida e surpresa. e seguimos na conversa:

"Então tudo se repetiu aqui . Quem diria! Fiz parte de seu inconsciente."

"Ou será que eu fiz do seu! A vida é um mistério insondável, até mesmo para uma psiquiatra experiente."

"Aquele grupo é muito rico, no sentido humano. Vc pode ter muitas conversas interessantes com pessoas de várias profissões. Afinal, somos todos anônimos ali."

"Eu não sou anônimo."

"É. Um dos poucos."

"Talvez o maior anonimato esteja em se manter em completa visibilidade, como uma carta roubada. Acho que tem um conto famoso assim, analisado por um psiquiatra tb famoso. Ou seria psicanalista?"

"Eu sou mais velha que vc. Tenho 72 anos."

"Compatível com o sonho."

"Talvez meu foco não seja sonhos. A coisa é mais hard."

antes de se despedir, ele não poderia deixar passar algo que ficara por abordar:

"Faltou algo. Vc fez muitas perguntas. Mas não me perguntou como meu sonho acabou.
Mas isto fica para amanhã, né"

com aquele capítulo encerrado, a história poderia ter desdobramentos interessantes. assim era necessário de antemão preparar sua continuidade.

no dia seguinte, a conversa prossegue num tom mais cordial. ele toma a iniciativa:

"Muito fértil a conversa de ontem. Me fez preencher algumas lacunas a respeito do DE.
Se não me engano, hoje, pelo calendário antigo pré SARS-Cov 2, é Domingo. Então, um bom domingo."

"Bom dia! Sonhou comigo?
Não deixe de contar o fim do sonho. Vc disse que ainda tinha um final a me falar."

"Vou contar, em seguida. Não é assim tão relevante. Preciso antes demarcar algo importante."

"Faça isto. Eu gosto disto."

"Nenhuma coesão de um grupo (ou de uma mente, ou de qualquer processo) pode ser alcançada através da autoridade e da hierarquia, redundando apenas numa "coesão" ilusória e inconsistente.
A coesão ou nasce de dentro para fora e de baixo para cima, ou é natimorta.
Uma coesão autêntica e viva, de qualquer processo mas principalmente da própria mente humana, se dá por uma dinâmica de auto-gestão, na qual se retro-alimentam a auto-disciplina, o auto-conhecimento e a auto-transformação."

"Ok. Vc está justificando o seu comportamento frente aos problemas intrínsecos no DE, pelo o que deduzo."

"Não exatamente. Estou demarcando que há muito método na minha 'loucura'. A coesão é um efeito colateral de um processo emancipatório.
Seja de um grupo, de uma mente, de um Povo, de uma Nação...
Este é o problema! Quão emancipados de fato desejamos ser?"

feita esta introdução, era preciso colocar o final do sonho, sem mais delongas.

"No sonho a mulher e eu desenvolvíamos a conversa como ocorreu aqui ontem à noite.
Mas antes de entabularmos o papo, eu comentei com ela:
- Nossa! Eu jamais imaginaria que vc era assim! [referindo-me a aparência dela]
Ela sorri um pouco debochada e começamos a dialogar."

"Vc pensou que eu fosse mais jovem, imagino. E ainda que estivesse querendo nutrir uma relação erótica com vc. Just in case."

"Não sou deste tipo de homem. Já expliquei que não me encaixo no estereótipo masculino padrão."

"Acho que te peguei. Aliás estou acertando quase tudo,embora vc refute.
Tenho conclusões importantes pra vc.
Isso, definitivamente é uma paquera."

"Não. Não é. Mas não importa, e é natural, que vc encare assim."

"O sexo, ou a sua falta, sublimação está em tudo. Fique vc com essa informação. E vamos combinar, a internet possibilita jogos eróticos."

"Embora esta questão seja relevante, pois a sexualidade permeia todas as nossas relações, o que pretendo destacar é outro aspecto:
Mas estando em questão a aparência, ela está no olho de quem vê?
Ou naquele que se mostra?
Ou na relação entre o olho que vê e o que se mostra a ser visto?"

" Estamos falando de jogos eróticos. Expectativas quanto ao outro, paquera. Não teorize e escape se dar a resposta. Esqueceu que posso identificar esse tipo de processo? Vc é fiel ou o sexo não é o seu forte?
Desculpe ser direta, mas é a força do hábito."

"Ainda mais do que os sentimentos, a sexualidade é um terreno muito mal equacionado para as pessoas.
Mas o que é a sexualidade? É a força vital da criação.
O que move o universo? O êxtase da criação.
Só existem, além de nós, duas espécies que fazem sexo por prazer: golfinho e os bonobos.
Mas haveria outra função do sexo além da reprodução e do prazer?
Esta é a questão."

"Quando falei minha idade, vc disse que ela se encaixava no que viu no sonho. Esqueceu? Sou freudiana. Sexo e desejo quer dizer quase tudo."

"Quer me pegar, né. Mas não é o caso.
Uma pessoa de 72 anos hj em dia não é incomum ter uma aparência mais nova!
No sonho, vc era uma anciã! Quase como um arquétipo. Uma entidade."

"Cruz credo!"

mas para ele, Freud não só reduz a complexidade da sexualidade à sua condição menos rica e mais óbvia - a genital - como também reduz a complexidade das relações sociais e da História ao triste e miserável triângulo familiar: papai - mamãe e eu, o mimado filhinho da mamãe.

assim para os freudianos, a própria criação artística é uma sublimação sexual.

mesmo para seus seguidores mais criativos, estando Reich num extremo e Lacan do outro, nunca os limites da teoria do Inconsciente de Freud foi ultrapassada. portanto, nenhum deles foi capaz de analisar Édipo como uma construção social determinada historicamente.

até mesmo o Inconsciente Coletivo de Jung jaz em servidão a Édipo Rei...

por isto, para ele não foi surpresa o diagnóstico lhe apresentado por sua improvável e auto-designada "terapeuta":

"Vc é que começou a fazer essa terapia gratuita. Aliás, vc é um ótimo caso de sublimação da sexualidade.
Um dos meus diagnósticos.
O fato de vc, ao me encontrar fisicamente no sonho, deparar-se com uma pessoa idosa (bem mais idosa do que eu, pois eu ainda poderia seduzir vc, se eu quisesse), denota ,também, essa questão da sexualidade
Eu ser uma idosa no sonho(reflexo do subconsciente !!) lhe protege do fato de poder consumar um provável desejo sexual de ambas as partes.
Vc não pode e não quer ser seduzido e manter uma relação erótica na vida real.
Minha aparência foi o que vc queria. Minha aparência justificou a sua falta de desejo."

não podia também faltar a tradicional relação viciada dos freudianos com o dinheiro, para justificarem sem culpa a monetização de um processo terapêutico pressuposto a ser emancipatório:

"Vc acha que eu cobro 850 reais por uma consulta, sem ter o domínio do que possa acontecer em um diálogo?
A nossa conversa foi direcionada por mim
Agora chega, pq já me deve $ 2.500,00 reais."
embora fosse evidente que a conta apresentada era puro sarcasmo, claramente aquela "terapia" colidira com um impasse. como contorná-lo? seria aquela uma típica situação na qual uma espiral não consegue dar um salto qualitativo, e cai em degradação?

freudianos são particularmente tristes e sem vitalidade, algo contraditório para quem vê sexo em tudo... com certeza, porque o sexo conforme concebido por eles é uma cópula entre castrados.

caso você comente com um analista freudiano estar sua mala há 13 anos sem ser desfeita, por causa de suas viagens frequentes, logo na terceira associação ele relacionará sua mala ao útero materno: com a mala sempre pronta, para ao ventre da mamãe retornar...

sob esta perspectiva, uma mala nunca é uma mala. é sempre uma outra coisa. e esta outra coisa nunca é de fato uma outra coisa. é sempre a mesma coisa: Édipo.

embora o "duplo" seja um dos temas clássicos da psicanálise, no torturante confinamento do divã aquele outro que me vê sempre sou eu mesmo. uma infinita repetição da mesma imagem através de espelhos paralelos.

mas como a pandemia demonstra na prática, até mesmo a forma mais elementar de vida, um vírus, é capaz de sofrer mutações. só Édipo se supõe estático, atemporal e definitivo.

como gerar a diferença? certamente não seria suficiente introduzir na estrutura binária do duplo um terceiro elemento. e sim estilhaçá-la por completo através de muitos outros.

como seria se nos víssemos através dos olhos de alguns outros?

seria o inconsciente estruturado não como linguagem, mas um tipo de processamento efetuando-se via interconexões altamente dinâmicas e profundamente capilarizadas?

exato como um software ultra complexo rodando numa rede neural coletiva?

ainda com todos estes pensamentos fervilhando em sua psiquê, na manhã seguinte ele decidiu colocar em prática uma idéia tida durante a noite.

e postou:

"Essa nossa conversa me deu uma idéia.
Ou melhor, que é como me relaciono com a vida: esta conversa me encaminhou uma solicitação -> escrever sobre ela!
Mas não sei se irei conseguir.
Todo processo de criação passa por um momento inicial, denominado de: fase do caos.
É quando se faz necessário um mergulho no desconhecido (naquilo que os freudianos chamam de "inconsciente").
Nesta fase não há nenhuma garantia prévia do que irá se encontrar.
Também não é certo dela se conseguir ultrapassar em direção a um processo de materialização da criação.
Nela tudo é incerto."

a resposta da "terapeuta não eletiva" foi bastante surpreendente:

"Isso me faz lembrar de um determinado medo de quem faz snorkelling.
Pode-se estar num lugar do mar cheio de pedras, bichos espinhosos, ouriços, corais e moréias que neles se escondem, algas que teimam em enganchar nos cabelos, peixes belos e feios, de todos os tamanhos.
Apesar de todos esses 'perigos', é no avançar dessa exploração marinha que nos deparamos com um local medonho que eu chamo de 'deep blue'.
É onde não se vê nada nas profundezas, só o azul mais lindo que vc possa imaginar. Mas ele é assustadoramente fundo.
Tão fundo que há uma paralisia imediata. Uns avançam, outros voltam para perto das pedras.
Aqui me permito uma indiscrição, fora de lugar, para uma terapeuta.
Aconteceu comigo na vida real e esse sentimento associo a alguns relacionamentos, viagens, terapias, etc, nos quais não se sabe o que se pode encontrar no azul profundo.
É uma alusão que uso ao meu modo, sem pretensão de haver uma correspondência teórica. Mas é a imagem que me sirvo em algumas situações."

gratificado não apenas pelo tom da msg como mesmo pela qualidade do texto, eu não pude conter a alegria:

"muito bom! merece um bônus.

um informação relevante para qualquer terapeuta em processo de análise de seu 'paciente'.

quando eu estava ainda no ginásio era muito bom aluno, sempre escrevia umas redações muito boas.

mas aquilo era um tanto óbvio e tedioso demais. eu já gostava bastante de poesia. assim, uma vez decidi não seguir o tema da redação e escrevi uma poesia!

na verdade, não deveria ter arriscado fazer isto. mas algo me levou a fazê-lo.

para minha total surpresa, a professora não só gostou da poesia como fez questão de a ler em voz alta para a turma.

não satisfeita, após a aula me levou para conversar com o Diretor, também proprietário da escola.

minha surpresa só aumentava. aquilo era incompreensível para mim. e na verdade ainda é. tendo em vista o conteúdo da poesia.

além de me elogiar, para meu total choque o Diretor afirmou que meu poema seria lido no dia seguinte, para toda a escola, num evento já anteriormente marcado.

completamente surreal, apesar de na época eu não dominar o conceito. mas foi como exatamente experimentei aquilo.

eu tinha 15 anos. e a bem da verdade, ainda hoje não me recuperei do choque."

logo abaixo, colei o poema escrito quando eu tinha apenas 15 anos, mais atual do que nunca em pleno curso da pandemia de SARS-Cov 2:

Ontem, morri faz dois dias.
Seu mundo insignificante acabou por ruir.
E tu? Tu olhavas e não me vias.
Finalmente as trevas desceram sobre a terra.
Os homens morreram no lamaçal.
O homem é um mal e deve ser exterminado.

Viva o mundo estéril!
Viva o universo abandonado!
Viva a morte da ciência !

O feitiço professou o seu culto.
Todos estavam de luto.
O mundo morreu,
Idiota, agora sim ele é teu.


APOCALIPSE
29/09/1971

no dia seguinte, me deparo com as seguintes msg:

"Muito interessante a sua história. Muita coisa a se pensar a partir dela.
Um poema que não dá 'um sacode', para mim, não é um poema. O seu faz isso.
Profundo e sensível para um menino de sua idade. Fez jus a todo o reconhecimento.
Cometo mais uma indiscrição, algo inadmissível para uma analista.
Outra coisa que me apareceu de repente:
Vou fazer do nosso caso uma peça de teatro. Nunca fiz, mas consigo visualizar a cenografia, caracterização e movimento dos personagens em cena.
Um recurso que vou utilizar é a mudança rápida da imagem que eu sou e a que vc imagina. Quando vc estiver falando comigo através do texto/mensagem, fico na sua frente com como vc me 'vê'.
Quando estou em casa, escrevendo, minha aparência será a de quem eu sou realmente. Considere que eu sei como vc é, mas vc não.
Muitas surpresas podem ocorrer.
Outra característica importante: os atores ficam um na frente do outro, mas não se olham. Dialogam, revelam suas histórias, mas não há o cruzamento do olhar, por ser uma conversa virtual.
Vou usar tbm o recurso da quarta parede para demarcar melhor esse caráter latente.
Uma licença para essa característica será quando o que foi dito seja um sentimento em comum e compartilhado, um encontro de emoções e percepções (houve?) ou uma 'bola dentro'. Aí os olhos se encontram.
Nossa história precisa ser contada. É digna de ser conhecida de alguma forma.
Foi um impulso criativo. Sei que nunca será encenada, mas preciso escrevê-la.
Obviamente seus vídeos estarão na peça. É a melhor maneira de se caracterizar essa pandemia como pano de fundo.
Nossa história termina aqui, arkx.
Foi muito bom conhecer você e seu talento.
Quando eu escrever essa peça, envio para vc, já que é o co-autor."

e não é que, a seu jeito e modo, a espiral deste conflituado relacionamento virtual conseguira efetuar seu salto de qualidade, abrindo um novo ciclo num patamar superior!

simplesmente fantástico!

um de meus trechos prediletos não saía de minha cabeça:

"Os indígenas tzeltal de Chiapas têm uma teoria da pessoa em que sentimentos, emoções, sonhos, saúde e temperamento de cada um são regidos pelas aventuras e desventuras de todo um monte de espíritos que habitam ao mesmo tempo nosso coração e o interior das montanhas, e que passeiam por aí.

Nós não somos belas completudes egóticas, Eus bem unificados, somos compostos de fragmentos, estamos repletos de vidas menores.

A palavra "vida", em hebreu, é um plural, assim como a palavra "rosto". Porque em uma vida há muitas vidas e porque em um rosto há muitos rostos.

Os vínculos entre os seres não se estabelece de entidade a entidade. Todo vínculo se dá de fragmento a fragmento de ser, de fragmento de ser a fragmento de mundo, de fragmento de mundo a fragmento de mundo."

apenas nos cabe reconhecer os múltiplos e singulares fragmentos nos unindo, alguns fragmentos de uns com alguns fragmentos de uns outros.

então potencializá-los, para através dessa interconexão se processar o desejo pelo êxtase da criação.

nossas vidas nada mais são do que as histórias que vivemos. e estas histórias são vividas para serem contadas. e quando são contadas elas ganham vida própria. então, paradoxalmente, passamos a viver através da narrativa de nossas histórias.

a mim, o que me cabia, era imediatamente sentar-me na frente do notebook e começar a registrar e editar esta história, na expectativa que minha interlocutora esteja fazendo o mesmo.

comecei a digitar:

naquela manhã ele acordara ainda pensando num intrigante sonho que tivera.
.

Um comentário:

Anônimo disse...

Interessantíssimo!
Vou ver a peça, o filme, a série, comprar os livros e os souvenirs!
Incrível como o DE é fértil em spin-offs.