paulicéia ltda.
tão bem organizados vivem e prosperam os Paulistas na mais perfeita ordem e progresso.
esses heróicos sucessores da raça dos bandeirantes são a única gente útil do país, e por isso chamados de Locomotivas.
a cidade é belíssima, e grato o seu convívio. oh! este orgulho máximo de ser paulistanamente!!! [1]
para celebrar seu esplendor hipócrita, São Paulo cunhou uma sucessão viciosa de lendas e de mitos, como um cortejo triunfante de vencedores que se recusa a pagar qualquer tributo à virtude dos fatos históricos.
ah! tudo começa com o largo coro de ouro das sacas de café... [2]
mas por acaso o café floresceu de si próprio?
como capital faz capital antes de ser capital? pela acumulação primitiva: de um lado o Rio, com o comércio de escravos, de outro as fontes fiscais, drenando recursos das províncias superavitárias - Bahia, Pernambuco e Minas - para a deficitária - São Paulo. [3]
os Barões do Café jamais se metamorfosearam em Capitães de Indústria. o capital industrial brasileiro não surge num momento de crise do complexo cafeeiro exportador. ao contrário, desponta num instante de auge, em que a taxa de rentabilidade ainda alcançava níveis elevadíssimos. [4]
os vultosos excedentes líquidos foram desviados para o financiamento da indústria por meio dos bancos, que cumpriram o papel de transmissão entre a acumulação originária de capital na cafeicultura e a acumulação propriamente capitalista na indústria. [5]
o núcleo inicial da burguesia industrial brasileira encontra suas origens na emigração européia. [6] entretanto, ao contrário do mito do self-made man, de origem modesta e que constitui fortuna graças ao trabalho árduo e persistente, o imigrante que vem a se tornar proprietário de empresas no Brasil aqui já chega com alguma forma de capital. [7]
para a burguesia industrial nascente, a base de apoio para o início da acumulação não é a pequena empresa industrial, mas o grande comércio ligado às atividades de importação e exportação. do mesmo modo que a exportação, a importação é dominada em grande parte por empresas estrangeiras. por sua vez, o comércio interno é controlado pelos importadores. graças a sua origem social, o burguês imigrante encontra facilmente um lugar no grande comércio. [8]
desse modo, o latifúndio exportador, a importação, o grande comércio e a burguesia imigrante, que vem a ser o núcleo da burguesia industrial nascente, estão todos intimamente conectados – fazendo com que, desde os primórdios, a burguesia brasileira nunca tenha se distinguido pelo caráter “nacional”.
ainda na República Velha, as divisas empregadas na sustentação do preço do café no mercado internacional já superavam as receitas com as exportações. [9] o subsídio estatal ao café não apenas dificultou a acumulação de capital em outros setores como circunscreveu a concorrência, impedindo a expansão de outros segmentos.
muito embora o grande salto na industrialização brasileira tenha se dado com Getúlio, a partir de 1930, não há em São Paulo uma rua sequer, uma estrada, um monumento, uma praça de periferia que preste homenagem a Vargas. [10]
já para os Bandeirantes, aqueles bravos empreendedores privados tão eficientes em sua caça às esmeraldas para exterminar índios e escravos foragidos, São Paulo ergueu não só um monumento como em denominação deles reservou o próprio palácio do governo estadual. Borba Gato ganhou uma enorme estátua. e Raposo Tavares – que de suas marchas pelo sertão retornava com caixotes repletos com milhares de orelhas salgadas das vítimas de suas matanças - tem uma rodovia inteira.
São Paulo tem sido fiel guardião da supremacia natural do liberalismo, sem que admita sequer compensações sociais bancadas pelo Estado (ou seja, pelo contribuinte) [11] - como se o mercado fosse bom também para produzir valores, e não apenas lucros. [12]
enquanto execra o Bolsa Família, que corresponde a uma ínfima fração (0,4% do PIB) da despesa com os juros com a dívida interna (cerca de 7% do PIB), São Paulo abriga a sede de 12 dos 15 maiores bancos brasileiros. [13]
a capital brasileira do capital, em seus delírios de grandeza, nunca deixou de sonhar com a secessão, pois ao se ver como dínamo econômico que não pode parar e funciona por si próprio, São Paulo julga prescindir do Estado, entendendo-se na condição de locomotiva arrastando uma composição de vagões vazios.
sob a sombra da bandeira desfraldada do estado mínimo, São Paulo discretamente se apraz com as desonerações tributárias, os créditos oficiais subsidiados e as renúncias fiscais.
e sua auto-imagem de próspera ilha de capitalismo num país fadado ao atraso, por absoluta falta de vocação para o trabalho e sem nenhuma propensão a poupar, nada mais é que o reflexo da face nua do isolamento de São Paulo, sua incapacidade em compreender a diversidade regional brasileira e um dos motivos da impossibilidade de produção cultural paulista com âmbito nacional.
Paulicéia Ltda. nada tem contra o apoio recebido por Lula nos Estados nordestinos, já que neles se encontra a maioria dos eleitores devidamente subornados pelo Bolsa Família, mas, a bem da Nação, propõe que o presidente faça para o Nordeste uma longa viagem, com passagem só de ida. [14]
sem jamais lograr um consenso sobre juros e câmbio, São Paulo firmou consigo mesma um pacto tácito contra a carga tributária. [15] contudo, da arrecadação com impostos, apenas 33% são oriundos de receitas, enquanto 67% provêm das contribuições, caracterizando um sistema fiscal socialmente injusto e altamente concentrador de renda.
matriz do cansaço de uma burguesia sem ousadia, para a qual a miséria sempre foi pesadelo e nunca desafio, São Paulo é um palco de bailados, onde sapateiam as apoteoses da ilusão... [16]
[1] Mário de Andrade, "Macunaíma" e "Paulicéia desvairada"
[2] Mário de Andrade, "Paisagem nO 2"
[3] Francisco de Oliveira, "A hegemonia inacabada"
[4] João Manuel Cardoso de Mello, "O capitalismo tardio"
[5] Jacob Gorender, "A burguesia brasileira"
[6] Luiz Carlos Bresser-Pereira, "Origens étnicas e sociais do empresário paulista"
[7] Warren Dean, "A industrialização de São Paulo"
[8] Sérgio Silva, "Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil"
[9] Wilson Suzigan e Annibal Villanova Villela, "Política de governo e crescimento da
economia brasileira (1889-1945)"
[10] Cristóvão Feil, no blog “Diário Gauche”, www.diariogauche.blogspot.com
[11] Otavio Frias Filho, “Suspense”
[12] FHC, em matéria de João Moreira Salles, revista Piauí, 08/2007
[13] Jorge Alano, “Economia e política no processo de financeirização do Brasil”
[14] João Mellão Neto, “Os perigos da incomPeTência”, 03/08/2007
[15] vide Luis Nassif, “Dos consensos limitados”, 10/09/2007
[16] Mário de Andrade, "Paisagem nO 2"
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