demasiado humano
(sobre “Razão e Sensibilidade”, de Roberto Janine Ribeiro, publicado na Folha de São Paulo, em 18/02/2007)
por vezes, o puro horror cotidiano dos que vivem nas periferias e nas favelas conflagradas atinge o circo da mídia e alimenta a sede de sangue do público.
casos emblemáticos levam os bem pensantes a questionarem duas ou três coisas em suas más consciências.
é o momento em que a hipócrita pretensão de virtude se dissolve em rancor e vingança. paladinos da justiça resgatam os mais infames suplícios medievais, a fim de que a morte seja pouco e a paga demorada e sofrida.
a barbaridade merecedora de incontida indignação e revolta deveria ser o dia a dia do Brasileiro pobre e humilde, entregue a si próprio.
certos economistas e filósofos precisam conversar com as balconistas, os trabalhadores rurais, as faxineiras, os vendedores ambulantes, a multidão que vaga pelas ruas em busca de trabalho, nem mais de emprego. aqueles que padecem a vida como se fosse uma pena, “uma paga de modo demorado e sofrido”.
o que nos falta é colocar os pés no solo de nossa pátria. abandonar os gabinetes. ficar ombro a ombro com nossa gente. sair para as ruas. mas esse pessoal tem asco do cheiro do povo...
não que o “cheiro do povo” seja agradável. nem um pouco... como não é também nada agradável a vida além dos corredores palacianos.
talvez nosso maior problema esteja, enquanto país e população, em não sabermos o que é de fato “violência”. alguns tiros nas ruas, criminalidade descontrolada e insegurança pública viram “guerra”.
somos um povo que não teve sua têmpera forjada pela bestialidade sem propósito da guerra.
não temos, tampouco nossos pais, ou avós, assim como bisavós, qualquer convivência com o fedor nauseante de carne queimada e das poças de sangue. nunca tivemos que empilhar centenas, e milhares, de corpos nas ruas. atear fogo nos cadáveres de nossas mães, de nossos filhos, da mulher que amamos.
apesar de nosso sofrimento na humilhação do cotidiano, da brutal criminalidade, não passamos ainda, enquanto nação, por uma experiência coletiva de violência real. sofremos sozinhos, cada qual em seu canto com sua dor, mas não em conjunto.
não tivemos guerras, tampouco catástrofes naturais, para conferir a real dimensão do que é ser “vítima” de violência. por isto somos tão imaturos e levianos e desconhecemos também o sentido pleno do que seja “solidariedade”.
a imensa parte dos defensores da tortura, da pena de morte e de uma "paga sofrida e demorada" seria capaz de, com as próprias mãos, executar o que propõe ?
costumam ser daqueles que tem nojo de trocar as fraldas dos filhos; não pisam no barro do chão para não “sujarem” os pés; passam mal ao doar sangue; no parto das crianças; sequer imaginar limpar uma latrina provoca ânsias de vômito; jamais mataram uma galinha, um coelho...
como reagiriam ao encarar a vítima nos olhos e, sem misericórdia, desfechar o golpe fatal ? ou lentamente arrancarem unhas, esmagarem testículos, vazarem olhos ?
bem verdade que da primeira vez é tudo muito mais difícil. depois se pega o jeito. e os monstros que habitam nos subterrâneos da alma de cada um de nós estão livres para saciarem sua fúria.
muito conveniente é concluir que “os nazistas foram culpados do que fizeram” e que “optaram pelo mal”. incomoda, porém, admitir que as massas não foram enganadas. as massas desejaram o fascismo.
afinal, o que poderia ser mais humano, demasiadamente humano, do que nossa longa história de bípedes implumes, predadores compulsivos, espalhando gratuitamente o terror pela face da Terra, destruindo a natureza, escravizando os animais e nos dilacerando uns aos outros...
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