24 fevereiro 2008

milagres capitalistas em cuba libre [1]

o jornalista pressiona a tecla ENTER e o e-mail é enviado.

tratava-se de sua coluna semanal para o jornal de maior tiragem no Brasil. em alguns poucos parágrafos, o texto demonstrava como através do capitalismo seria gerado o milagre cubano.

o homem se levanta. acende um cigarro. beberica uma dose de whisky. olha em torno.

por um breve instante, permanece imóvel no centro da ampla sala de seu luxuoso apartamento, no mais rico bairro da maior cidade do país.

mobília. decoração. biblioteca. iluminação indireta. música baixa e suave. conforto e sucesso.

ele caminha até a varanda. estende seu olhar através da noite poluída. tenta vislumbrar a turva linha do horizonte.

a convulsionada paisagem de neon e escuridão parece se contorcer entre gemidos, sussurros, súplicas desconexas.

com perplexidade, o jornalista sente seus pensamentos se embaralharem. sem saber se tomado por epifania ou maldição, pensa estar prestes a desmaiar.

quantos monstruosos milagres não se produziam ali mesmo, naquele exato momento, na atormentada cidade à sua frente?

estupros e mutilações. vício, vaidade, tiroteios, abortos e suicídios. hemorragias, escarro, traições e infâmias. assassinatos, frustrações e tumores.

milagres. milagres capitalistas. por toda a parte. de puro horror e iniqüidade.

com o toque do celular, o jornalista é trazido de volta a seu reconfortante cotidiano de oportunidades e negócios.

encharcado de suor, se atira de costas no sofá, antes de atender o telefone.

enquanto isto, em Cuba, numa das frondosas avenidas de Havana, em um inútil pardieiro, no que antes da Revolução fora um palacete magnífico, dez famílias exercitam sua imaginação.

especulam se a transição cubana será uma saída do fracassado regime de Fidel em direção a algum estágio superior do socialismo. quem sabe, o velho e bom capitalismo...

com a abertura aos investimentos estrangeiros, surgiriam imensas chances de prosperidade em Cuba. e todos sairão ganhando.

a nomenklatura do PC Cubano, corretores imobiliários de Miami, construtoras brasileiras e toda sorte de audazes empreendedores também fazem suposições e traçam seus planos.

chega-se então a um exemplo bastante engenhoso do que o capitalismo pode fazer por Cuba.

para deslanchar o mercado imobiliário em Cuba, será necessário um retorno ao passado para se poder chegar ao futuro.

os milhares de litígios se resolvem indenizando os herdeiros dos antigos proprietários com títulos emitidos pelo governo cubano. estes títulos são comprados, com deságio de até 90%, por corretores de imóveis de Miami.

estes negociam com as famílias cubanas que ocupam os diversos casarões, oferecendo a cada uma delas um apartamento em outros imóveis.

ao mesmo tempo, os corretores lançam agressiva campanha publicitária direcionada a aposentados nos EUA, para trocarem suas propriedades por mais baratos e muito melhores apartamentos de luxo em Havana, a serem erguidos no lugar dos casarões, e ainda embolsarem a diferença entre os preços de compra e venda.

todas estas novas construções ficam a encargo de empreiteiras brasileiros. com a ajuda de farta distribuição de caixinhas, serão beneficiadas pelos programas de incentivo à construção civil e de estímulo a habitações populares, lançados pelo governo cubano, oferecendo um amplo leque de subsídios financeiros e isenções fiscais.

todo mundo ganha.

os herdeiros recebem uma indenização razoável por um casarão já dado como perdido e do qual não tinham como retomar a posse. os “companheiros” da burocracia comunista cubana embolsam polpudas comissões. os moradores do cortiço tornam-se proprietários de apartamentos novos, com excelente perspectiva de valorização num mercado em processo de rápida expansão. os aposentados norte-americanos vão morar no dobro do espaço, ainda sobrando para eles muita grana no bolso. um exército de cubanos consegue emprego nos diversos canteiros de obras espalhados por Havana. os corretores e empreiteiros obtém com o negócio um retorno de 100%. mesmo com a repatriação de parte dos lucros, ainda assim os recursos que entram na economia cubana são, pelo menos, equivalentes ao hipotético valor inicial dos diversos pardieiros inúteis.

despertado o animal spirit do empresariado, a mão invisível do mercado opera seu milagre. e faz com que, pelo poder da consumação dos lucros, o interesse privado se concretize através da realização da necessidade coletiva.

logo ao ocuparem suas novas moradias, os antigos moradores do pardieiro inútil deparam-se com algumas surpresas.

como os prédios foram construídos em um outro bairro, agora a distância de seus locais trabalho é enorme. não há transporte público. tampouco nas cercanias dos prédios existem escolas, postos de saúde, creches.

o governo cubano e as construtoras brasileiras trocam acusações sobre quem seria o responsável pela falta de infra estrutura nos outros bairros onde os prédios populares foram construídos. o tempo passa. não chegam a conclusão alguma. tudo vai ficando como está.

logo nos primeiros meses de uso, os imóveis apresentam graves problemas. desvios e adulteração do material utilizado nas obras prejudicaram a qualidade das construções. rachaduras comprometem as estruturas. alguns dos prédios tem que ser evacuados. muitos dos moradores ficam sem ter para onde ir.

no decorrer daquele ano, a especulação imobiliária avança descontrolada em Havana. os moradores dos conjuntos recém construídos são assediados por vendedores ambiciosos. muitos acabam cedendo. inspirados pelos aposentados norte-americanos, vendem seus apartamentos na esperança de comprarem outra moradia, mesmo que pior mas por um preço menor, e assim ainda ganharem algum dinheiro.

antes reprimida pela mão de ferro do regime cubano, agora a demanda habitacional explode com toda violência. a frágil economia de Cuba, num delicado processo de transição para um sistema de livre mercado, entra em crise: inflação, desemprego, desabastecimento, colapso energético.

então, nas cercanias de Havana, emerge a verdadeira face dos milagres que o capitalismo produzirá em Cuba: nascem os barracos iniciais das primeiras favelas.

a partir daquela noite, entre as 50 milhões de crianças dormindo na rua em todo o mundo, algumas dentre elas serão cubanas. para se abrigarem já não contam com nem mesmo os antigos pardieiros inúteis.

em São Paulo, ainda transtornado, o jornalista demora um pouco para reconhecer ao telefone a voz do amigo, convidando-o para jantar.

no caminho para o restaurante, o carro blindado enguiça. a trava elétrica das portas entra em pane. quatro homens encapuzados e fortemente armados cercam o veículo. o homem tenta arrancar, mas a embreagem não responde.

ele é tirado do volante. jogado no meio da rua. agredido a chutes e coronhadas. arrastado para dentro de um outro carro, que sai em alta velocidade.

dois dias depois seu corpo é encontrado abandonado no meio de um matagal, numa das mais miseráveis periferias da cidade. completamente despido. há sinais de tortura. executado com tiros na nuca e no tórax, teve sua face desfigurada.

já não há mais os milagres que se esperava. já não há mais profetas. e ninguém sabe quanto tempo tudo isso vai durar. [2]



[1] sobre “O capitalismo produzirá o milagre cubano”, Elio Gaspari, Folha de São Paulo, 24/02/2008
[2] Salmos 74:9

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