08 setembro 2006


isso é o que nós somos, companheiro
(em 02/07/2005)

( sobre “Flores, flores para los muertos”
de Fernando Gabeira,
publicado na “Folha de São Paulo” em 18/06/2005 )


frases esparsas num bloco de notas
pétalas caindo numa cova vazia
não falem de flores
deixem que os mortos enterrem seus mortos
não se entrega não
só se entrega prá morte de arma na mão

infâmia maior
que a grande ditadura torturando a carne
é a cotidiana corrupção de cada alma
pelos diminutos minúsculos tiranos

isso é o que nós somos
mais que corações e mentes

isso é o que nos tornamos
anos de chumbo
ditadura de burgueses do capital alheio
pacto entre os bancos e as favelas
aliança da casa grande com as senzalas

cercados pelo deserto do real
sonhos roubados convertidos em pesadelo
esperança em medo
haverá um futuro ?
o futuro precisa de nós ?

maior é Deus
pequeno sou eu
na roda da história
grande e pequeno sou eu
não tivemos a sorte de escapar
dos tempos sem sol
e da onda de lama que agora submerge
os cínicos e os servis

o que somos
dor
insuportável peso tão leve do ser

o que nos falta
como superar a dor
cálice cheio até a boca
transbordando
isso é o que nós somos
isso é a nossa dor
não a afastemos
não nos afastemos dela

carecemos da compreensão que nada nos falta
somos um excesso
uma alucinação extraordinariamente nítida
que vivemos todos em comum com a fúria das almas

isso é o que nós somos
a chance de optar
entre o que eu quero
e o que a vida quer de mim

no fundo do poço
sobrevivendo ao patético momento
triste destino
sindicalistas e investidores unidos
na tragédia histórica de transformar em farsa
o que foi escrito com sangue nas estrelas

tudo o que era sólido derreteu-se no ar
o rei morreu
morram todos os reis
a arte do possível
seja a criação do impossível
como uma das possibilidades

após o fim de tudo
fantasmas rondam o Brasil
anfitriões da utopia
anunciam nada mais a se perder
senão as correntes que aprisionam
um mundo a ganhar

isso é o que nós somos
o fim
e o começo

dos escombros do velho
novamente se ergue o clamor por mudança

o que fazer

tudo é incerto
nada é inteiro
isso é o que nós somos
nevoeiro

a hora é agora
aqui nasce o futuro

precisará o futuro de nós ?

saberemos dissipar a ilusão de uma manhã gloriosa
quando enfim retornará um rei que nunca tivemos ?

saberemos que nossos sonhos são nossas armas
e só sucumbimos quando não sonhamos o bastante ?

saberemos reconhecer a falência de todos os modelos
e que só haverá um futuro
se somos capazes de continuamente reinventá-lo ?

isso é o que nós somos
país do futuro cumprindo a profecia do passado mítico
a encruzilhada do presente nos devorando com o enigma a decifrar :
quem somos ?

isso é o que nós somos, companheiro

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