29 fevereiro 2008


uma esfinge sem enigmas

ao se considerar as 500 maiores empresas brasileiras, elas nunca ganharam tanto dinheiro como agora. os bancos também nunca ganharam tanto dinheiro.[1]

enquanto ao Bolsa Família cabem meros R$ 8 bilhões, o governo gasta R$ 160 bilhões com os juros da dívida pública interna. em 2007, o lucro dos quatro maiores bancos foi de R$ 20 bilhões contra R$ 21 bilhões de todo o orçamento social de Lula. [2]

apesar de em seu transtorno compulsivo tentar obsessivamente gerar a crise capaz de golpear Lula até a queda derradeira, a grande mídia não deixa de celebrar em manchetes efusivas a política econômica do mesmo governo Lula. [3]

mantendo sua popularidade sequer arranhada, Lula continua dando as cartas e embaralha a política brasileira.

com sua dubiedade e sua arrogância, suas hesitantes meias-medidas e sua vã onipotência, sua capitulação voluntária aos mercados disfarçada sob o álibi de seu assistencialismo compensatório aos miseráveis, Lula faz com que um país inteiro se paralise, girando em círculos numa falsa encruzilhada, prisioneiro de uma esfinge sem enigmas, fugindo de uma resposta simples a tão incômoda pergunta:

como pode um governo dos trabalhadores executar tão bem a política econômica dos patrões?

não que uma defesa incondicional e irracional de Lula o pretenda perfeito e sem defeitos, apenas lhe considera como o pior presidente que o Brasil já teve, com exceção de todos os outros. [4]

a rentabilidade dos bancos não tem sido afetada pelas oscilações da economia brasileira. a única diferença está na fonte de lucros das instituições financeiras. em períodos de menor crescimento e maior instabilidade econômica, os ganhos são inflados pelas operações com títulos públicos, que ficam mais rentáveis com o aumento da taxa básica de juros. com um maior dinamismo da economia, o lucro vem da cobrança de tarifas, impulsionadas pela expansão das operações de crédito. [5]

em 2002, quando as especulações em torno das eleições presidenciais levaram o dólar perto de R$ 4, os principais bancos privados do país tiveram uma rentabilidade sobre patrimônio líquido de 28%. naquela ocasião, a elevada taxa Selic – oscilando em torno de 20% ao ano - favorecia os ganhos com aplicações em títulos públicos. as receitas com operações de tesouraria representavam 34% do faturamento total, enquanto o peso das tarifas era de apenas 11%.

já em 2007, a rentabilidade desse grupo de instituições chegou a 35%, sendo que o peso das tarifas no faturamento subiu para 18%, e os ganhos com tesouraria, ao contrário, caíram para 23% da receita total. [6]

mesmo assim, as taxas de juros dos empréstimos dispararam em janeiro de 2008, sendo que para pessoas físicas o salto foi de 4,9 pontos percentuais. [7]

se é bom que todo mundo ganhe, também é bom lembrar que o povo também precisa ganhar dinheiro. [8]

os ganhos com a prestação de serviços bancários são favorecidos, entre outros fatores, pelo aumento da renda da população, o que estimula o crescimento de setores como o de fundos de investimentos e de seguros. [9]

então, assim se revela o último dos mistérios de um governo dos de baixo, mas governando para os de cima, numa hegemonia às avessas. [10]

devido aos programas sociais, a economia política do governo Lula costuma ser avaliada como a máxima concessão possível de ser arrancada aos mercados, fazendo da taxa de juros, mantida como a segunda mais alta do mundo, e do câmbio apreciado, tornando o Real a moeda que mais se valorizou frente ao dólar, uma espécie de suborno oferecido aos grandes investidores para impedir qualquer chantagem que solape as condições de governabilidade, as quais, por sua vez, possibilitam a continuidade das políticas sociais.

do mesmo modo que o Bolsa Família é o instrumento pelo qual se impede uma explosão dos miseráveis e se mantém a brutal transferência de renda através da taxa de juros, firmando o pacto maldito entre as favelas e o Copom, não haveria expansão de crédito sem recomposição do salário mínimo, caso não se preservasse o preço da cesta básica e fora do risco zero do crédito consignado.

o aumento do consumo das famílias se dá num ritmo superior ao crescimento da massa salarial, indicando como são mecanismos de crédito que sustentam esse incremento. numa clara demonstração de como tem funcionado a expansão daquilo que alguns já denominam de economia do endividamento. [11]

através dos juros da consignação em folha, poupando os credores dos perigos da inadimplência, as camadas populares são conduzidas, em longas prestações, ao paraíso do consumo, gerando a bolha de crédito que possibilita os bancos a cravarem os sucessivos recordes em seus lucros. [12]

assim, embora avaliadas como o grande mérito do governo, as políticas sociais de Lula se encaixam perfeitamente nos fundamentos da “hegemonia às avessas”.

trata-se de um fenômeno novo, em nada parecido com qualquer das práticas de dominação exercidas ao longo da existência do Brasil.

não é o patrimonialismo, pois o que os administradores dos fundos de pensão estatais gerem é capital-dinheiro. não é o patriarcalismo brasileiro de Casa-grande & senzala, porque não é nenhum patriarca quem exerce o mando, nem a economia é “doméstica”. não é populismo, como sugere a crítica da direita, e mesmo de alguns setores da esquerda, porque o populismo foi uma forma autoritária de dominação na transição da economia agrária para a urbano-industrial. [13]

com a eleição de Lula, parecia ter sido derrotada a poderosa discriminação social brasileira, o preconceito de classe absurdamente alto num país com tradição racista. mas, para quê? para governar para os ricos. e os ricos consentem, desde que os fundamentos da exploração não sejam postos em xeque. [14]


ao negar-se a decifrar o enigma do auto-engano em que se imobilizou, para hipotecar apoio incondicional a Lula, a maior parte da Esquerda acaba por se converter em sua própria esfinge, sem se dar conta que devora a si mesma.




[1] Lula, 19/02/2008
[2] Francisco de Oliveira, “Obama, Tocqueville e a ilusão americana”, 28/02/2008
[3] “Brasil já é credor externo, informa BC“, 21/02/2008
[4] “Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos”, Winston Churchill
[5] Ney Hayashi da Cruz, “Bancos têm lucro com crise ou expansão”
, Folha de São Paulo, 25/02/2008
[6] dados do Inepad (Instituto de Ensino e Pesquisa em Administração), citados por Ney Hayashi da Cruz, “Bancos têm lucro com crise ou expansão”, Folha de São Paulo, 25/02/2008
[7] Lu Aiko Otta , “Taxas de juros disparam”, Jornal do Commercio, 27/02/2008
[8] Lula, 19/02/2008
[9] Ney Hayashi da Cruz, “Bancos têm lucro com crise ou expansão”, Folha de São Paulo, 25/02/2008
[10] Francisco de Oliveira, entrevista a Gazeta Mercatil, 07/12/2006
[11] Paulo Passarinho, “A economia brasileira se recupera?”
[12] “Lucro do Itaú dobra e é o maior do setor”, Folha de São Paulo, 13/02/2008
[13] Francisco de Oliveira, “Hegemonia às avessas”
[14] Francisco de Oliveira, “Hegemonia às avessas”

24 fevereiro 2008

milagres capitalistas em cuba libre [1]

o jornalista pressiona a tecla ENTER e o e-mail é enviado.

tratava-se de sua coluna semanal para o jornal de maior tiragem no Brasil. em alguns poucos parágrafos, o texto demonstrava como através do capitalismo seria gerado o milagre cubano.

o homem se levanta. acende um cigarro. beberica uma dose de whisky. olha em torno.

por um breve instante, permanece imóvel no centro da ampla sala de seu luxuoso apartamento, no mais rico bairro da maior cidade do país.

mobília. decoração. biblioteca. iluminação indireta. música baixa e suave. conforto e sucesso.

ele caminha até a varanda. estende seu olhar através da noite poluída. tenta vislumbrar a turva linha do horizonte.

a convulsionada paisagem de neon e escuridão parece se contorcer entre gemidos, sussurros, súplicas desconexas.

com perplexidade, o jornalista sente seus pensamentos se embaralharem. sem saber se tomado por epifania ou maldição, pensa estar prestes a desmaiar.

quantos monstruosos milagres não se produziam ali mesmo, naquele exato momento, na atormentada cidade à sua frente?

estupros e mutilações. vício, vaidade, tiroteios, abortos e suicídios. hemorragias, escarro, traições e infâmias. assassinatos, frustrações e tumores.

milagres. milagres capitalistas. por toda a parte. de puro horror e iniqüidade.

com o toque do celular, o jornalista é trazido de volta a seu reconfortante cotidiano de oportunidades e negócios.

encharcado de suor, se atira de costas no sofá, antes de atender o telefone.

enquanto isto, em Cuba, numa das frondosas avenidas de Havana, em um inútil pardieiro, no que antes da Revolução fora um palacete magnífico, dez famílias exercitam sua imaginação.

especulam se a transição cubana será uma saída do fracassado regime de Fidel em direção a algum estágio superior do socialismo. quem sabe, o velho e bom capitalismo...

com a abertura aos investimentos estrangeiros, surgiriam imensas chances de prosperidade em Cuba. e todos sairão ganhando.

a nomenklatura do PC Cubano, corretores imobiliários de Miami, construtoras brasileiras e toda sorte de audazes empreendedores também fazem suposições e traçam seus planos.

chega-se então a um exemplo bastante engenhoso do que o capitalismo pode fazer por Cuba.

para deslanchar o mercado imobiliário em Cuba, será necessário um retorno ao passado para se poder chegar ao futuro.

os milhares de litígios se resolvem indenizando os herdeiros dos antigos proprietários com títulos emitidos pelo governo cubano. estes títulos são comprados, com deságio de até 90%, por corretores de imóveis de Miami.

estes negociam com as famílias cubanas que ocupam os diversos casarões, oferecendo a cada uma delas um apartamento em outros imóveis.

ao mesmo tempo, os corretores lançam agressiva campanha publicitária direcionada a aposentados nos EUA, para trocarem suas propriedades por mais baratos e muito melhores apartamentos de luxo em Havana, a serem erguidos no lugar dos casarões, e ainda embolsarem a diferença entre os preços de compra e venda.

todas estas novas construções ficam a encargo de empreiteiras brasileiros. com a ajuda de farta distribuição de caixinhas, serão beneficiadas pelos programas de incentivo à construção civil e de estímulo a habitações populares, lançados pelo governo cubano, oferecendo um amplo leque de subsídios financeiros e isenções fiscais.

todo mundo ganha.

os herdeiros recebem uma indenização razoável por um casarão já dado como perdido e do qual não tinham como retomar a posse. os “companheiros” da burocracia comunista cubana embolsam polpudas comissões. os moradores do cortiço tornam-se proprietários de apartamentos novos, com excelente perspectiva de valorização num mercado em processo de rápida expansão. os aposentados norte-americanos vão morar no dobro do espaço, ainda sobrando para eles muita grana no bolso. um exército de cubanos consegue emprego nos diversos canteiros de obras espalhados por Havana. os corretores e empreiteiros obtém com o negócio um retorno de 100%. mesmo com a repatriação de parte dos lucros, ainda assim os recursos que entram na economia cubana são, pelo menos, equivalentes ao hipotético valor inicial dos diversos pardieiros inúteis.

despertado o animal spirit do empresariado, a mão invisível do mercado opera seu milagre. e faz com que, pelo poder da consumação dos lucros, o interesse privado se concretize através da realização da necessidade coletiva.

logo ao ocuparem suas novas moradias, os antigos moradores do pardieiro inútil deparam-se com algumas surpresas.

como os prédios foram construídos em um outro bairro, agora a distância de seus locais trabalho é enorme. não há transporte público. tampouco nas cercanias dos prédios existem escolas, postos de saúde, creches.

o governo cubano e as construtoras brasileiras trocam acusações sobre quem seria o responsável pela falta de infra estrutura nos outros bairros onde os prédios populares foram construídos. o tempo passa. não chegam a conclusão alguma. tudo vai ficando como está.

logo nos primeiros meses de uso, os imóveis apresentam graves problemas. desvios e adulteração do material utilizado nas obras prejudicaram a qualidade das construções. rachaduras comprometem as estruturas. alguns dos prédios tem que ser evacuados. muitos dos moradores ficam sem ter para onde ir.

no decorrer daquele ano, a especulação imobiliária avança descontrolada em Havana. os moradores dos conjuntos recém construídos são assediados por vendedores ambiciosos. muitos acabam cedendo. inspirados pelos aposentados norte-americanos, vendem seus apartamentos na esperança de comprarem outra moradia, mesmo que pior mas por um preço menor, e assim ainda ganharem algum dinheiro.

antes reprimida pela mão de ferro do regime cubano, agora a demanda habitacional explode com toda violência. a frágil economia de Cuba, num delicado processo de transição para um sistema de livre mercado, entra em crise: inflação, desemprego, desabastecimento, colapso energético.

então, nas cercanias de Havana, emerge a verdadeira face dos milagres que o capitalismo produzirá em Cuba: nascem os barracos iniciais das primeiras favelas.

a partir daquela noite, entre as 50 milhões de crianças dormindo na rua em todo o mundo, algumas dentre elas serão cubanas. para se abrigarem já não contam com nem mesmo os antigos pardieiros inúteis.

em São Paulo, ainda transtornado, o jornalista demora um pouco para reconhecer ao telefone a voz do amigo, convidando-o para jantar.

no caminho para o restaurante, o carro blindado enguiça. a trava elétrica das portas entra em pane. quatro homens encapuzados e fortemente armados cercam o veículo. o homem tenta arrancar, mas a embreagem não responde.

ele é tirado do volante. jogado no meio da rua. agredido a chutes e coronhadas. arrastado para dentro de um outro carro, que sai em alta velocidade.

dois dias depois seu corpo é encontrado abandonado no meio de um matagal, numa das mais miseráveis periferias da cidade. completamente despido. há sinais de tortura. executado com tiros na nuca e no tórax, teve sua face desfigurada.

já não há mais os milagres que se esperava. já não há mais profetas. e ninguém sabe quanto tempo tudo isso vai durar. [2]



[1] sobre “O capitalismo produzirá o milagre cubano”, Elio Gaspari, Folha de São Paulo, 24/02/2008
[2] Salmos 74:9

22 fevereiro 2008

socialismo ou morte

poucos assuntos são tão mal entendidos, tão manipulados e tão mal interpretados como a Revolução Cubana. [1]

se Fidel é o único mito vivo da História da Humanidade [2], o mérito é dos EUA. [3]

nos tempos heróicos da Sierra Maestra, Fidel e o Movimento 26 de Julho lutavam contra a ditadura de Fulgencio Batista, por uma Cuba democrática e não tinham nenhuma animosidade contra os EUA. [4]

mesmo após a derrota de Batista, Fidel Castro declarou à Associação de Banqueiros, em 06/03/1959, que desejava a colaboração deles. também afirmou, segundo o "News and World Report", não ter "nenhuma intenção de nacionalizar qualquer indústria". [5]

para os EUA, entretanto, Cuba era uma “fruta madura”, separada da árvore nativa, sem escolha além de apenas cair ao chão. força desligada do seu vínculo e incapaz de se auto-sustentar, gravitaria na direção dos EUA, o qual, pela mesma lei da natureza, não teria como segregá-la do seu seio. [6]

por sua localização geográfica, por necessidade e por direito, Cuba deveria pertencer aos EUA. [7]

a língua dos cubanos seria a primeira coisa a se eliminar, pois a língua latina bastarda de sua nação não resistirá por nenhum tempo ao poder competitivo do forte e vigoroso inglês. e o sentimentalismo político e suas tendências anárquicas serão eliminadas depois da língua e, de maneira gradual, a absorção do povo será absoluta, o que seria devido ao inevitável predomínio da mente americana sobre uma raça inferior. [8]

sendo os habitantes de Cuba, em regra, preguiçosos e apáticos, é claro que a anexação imediata de um número considerável de elementos tão perturbadores aos EUA seria uma loucura, e antes de colocá-la, haveria um saneamento da ilha, empregando o meio que a Divina Providência aplicou às cidades de Sodoma e Gomorra. [9]

assim, seria preciso destruir tudo aquilo que os canhões alcançarem a ferro e a fogo. e também aumentar o bloqueio a fim de que a fome e a peste, sua permanente parceira, dizimem a população. [10]

enquanto o comandante-em-chefe Fidel Castro declarava: “Queremos ter boas relações com os Estados Unidos, mas submissão, não” [11], a revista Time, de 06/04/1959, trazia um artigo afirmando: “o neutralismo de Castro é um desafio aos EUA”. [12]

embora o ideal de Fidel para Cuba fosse a democracia burguesa dos EUA, acabou sendo encurralado pelo próprio EUA, em cuja estratégia geopolítica há leis de gravitação política como as há de gravitação física. [13]

os governantes norte-americanos nunca deixaram de confessar, até com uma certa candura, verem Cuba como um país a ser incorporado aos EUA. [14]

na verdade, os EUA deixaram para Fidel uma única opção: “socialismo ou muerte”.


[1] Herbert Mattews, “Nos meus 30 anos no New York Times, jamais vi um grande assunto tão mal entendido, tão mal manipulado e tão mal interpretado como a Revolução Cubana”
[2] Lula, 19/02/2008
[3] Fidel Castro, “Si se me considera un mito, es mérito de los Estados Unidos."
[4] Fidel Castro, entrevista a Herbert Matthews, New York Times, 24/02/1957
[5] Peter Taafe, “Análise da revolução Cubana”
[6] John Quincy Adams, em 1817 como Secretário de Estado, em 1825-1829 cumpriu mandato como o 6º Presidente dos EUA
[7] The New York Sun, 05/1847
[8] The New York Sun, 05/1847
[9] plano de intervenção dos EUA em Cuba, apresentado em 24/12/1897, por Breckenridge,Secretário de Guerra dos EUA
[10] plano de intervenção dos EUA em Cuba, apresentado em 24/12/1897, por Breckenridge,Secretário de Guerra dos EUA
[11] Fidel Castro, entrevista a U. S. News and World Report
[12] Lázaro Barredo Medina, “O conflito mais duradouro da era contemporânea”
[13] John Quincy Adams, em 1817 como Secretário de Estado, em 1825-1829 cumpriu mandato como o 6º Presidente dos EUA
[14] Thomas Jefferson, um dos fundadores dos EUA, 1807, “Confesso com candura que sempre vi Cuba como o país mais interessante que se podia incorporar a nosso sistema de Estado.”