31 dezembro 2008

a nossa cara

muito embora garantisse em entrevista que Paulo Lacerda poderia retornar ao comando da Abin quando quisesse [1], Lula acaba afastando-o definitivamente. [2]


em mais uma patética tentativa de varrer para debaixo do tapete os elefantes de seu governo, Lula dá prosseguimento a estratégia de demolição controlada da Operação Satiagraha.

Tarso e Dilma são os arautos de uma das mais peculiares realizações do governo Lula: nos bicos das galinhas nascem dentes, para despedaçar com voracidade o que resta de justiça no Brasil. [3]

o maior esquema de crime organizado já surgido no Brasil opera livre e os que zelam pela justiça são perseguidos e afastados.

enquanto a máscara cai e fica exposta a verdadeira face do governo, a reação da opinião pública obedece a um mesmo recorrente padrão.

inicialmente, parte dos que apóiam o governo ficam indignados; outra parte, ainda assim, persiste no autoengano, desde não aceitar a veracidade da notícia até a irrestrita confiança numa paciência infinita para aguardar que tudo se esclareça num futuro próximo, o qual jamais se torna presente.

num segundo momento, muitos dos indignados também recaem no autoengano. surgem várias explicações para sustentar o estado de negação. desde a aparente capitulação do governo não passar de complexos movimentos do xadrez político, até uma cínica resignação de não restar para Lula outra opção além de submeter-se voluntariamente a Direita, senão acabará derrubado por ela.

em sânscrito, Satigraha significa “firmeza em busca da verdade”. ao ser conhecida, a verdade libertará. [4] mas quanta verdade o Brasil ainda pode suportar? [5]

vivemos em tempos sombrios. aquele que ainda ri é porque ainda não foi capaz de aceitar a terrível notícia. [6]

enquanto atende minimamente as demandas dos desfavorecidos e submete-se a quase totalidade das exigências dos poderosos, Lula faz aquilo que as classes dominantes nunca imaginaram que aconteceria: realiza magistralmente o que o governo FHC fez apenas razoavelmente bem. [7]

como na crise do mensalão, em que da própria carne foram cortados Delúbio, Silvinho, Genoíno, Gushiken, Dirceu e Palocci, mais uma vez Lula não recusa a ceder dedos e anéis, mão, membros, tronco e cabeça. apesar de manter a coroa, cada vez mais se limita a presidir apenas o Bolsa Família. [8]

situações limites são reveladoras e podem conduzir a um salto de maturidade e de crescimento, para além da paralisadora divisão entre a ilusão estéril do autoengano e uma indignação impotente. o apoio incondicional ao governo Lula, hipotecado sem exigir nenhuma contrapartida, o subprime político brasileiro.

as consequências passam pela continuidade nos seis anos de mandato da política monetária dos mercados financeiros, cujo resultado é a perene maior taxa de juros reais do mundo, para gerar o mais grave de todos os problemas: a desmobilização e regressão do poder de pressão popular.

em suas características atuais, em que a crítica ao governo é desqualificada por supostamente fazer “o jogo da Direita”, o apoio a Lula é a principal causa da inércia do governo.

se o índice de popularidade recorde do governo não se reciclar em apoio e cobrança de um projeto de nação, Lula jamais atravessará o Rubicão, pois governo algum se move, a não ser empurrado pela pressão popular.

por outro lado, modelo de governabilidade montado por Lula é incompatível com as necessidades de um projeto de construção nacional, pois foi moldado unicamente através de acordos pela cúpula, conduzindo o governo a seguidos impasses políticos, tornando-o refém de si próprio.

qual a melhor escolha para o Brasil: a conciliação ampla ou o enfrentamento exaustivo? [9]

há dois tipos de consenso e conciliação.

um tipo é quando a conciliação é considerada uma premissa. todos os esforços são determinados por ela e em direção a ela. geralmente é feita pela cúpula e na cúpula. um consenso frágil e uma conciliação oportunista. os resultados políticos obtidos quase sempre são dúbios e inconsistentes.

outro tipo de conciliação é aquela produzida por um exaustivo processo de enfrentamento. não um enfretamento suicida. mas um enfrentamento consciente que se paute pelo constante desequilíbrio da dinâmica da correlação de forças. um árduo movimento de crescimento e maturação, gerando condições para, então, nascer o consenso. um consenso construído na luta: uma conquista e não uma capitulação.

no primeiro caso a conciliação precede e se impõe ao processo de construção do consenso.

no segundo, é através dos enfrentamentos inerentes ao processo de construção do consenso que se forja uma conciliação.

agora mais uma vez exposto em sua cara lavada, este governo Lula é também a expressão do grau de desenvolvimento político da sociedade brasileira.

a sociedade somos nós. portanto, este governo Lula tem a nossa cara. mas não a cara de cada um de nós individualmente. e sim a cara de todos nós coletivamente.

é ao se auto-organizar que a sociedade muda a si própria.

é de dentro prá fora
é de baixo prá cima
o que está cima está embaixo
o que está embaixo está em cima

[1] “Se o Paulo Lacerda não tiver culpa no cartório, o Paulo Lacerda é um profissional do Estado brasileiro da mais alta competência. Pode voltar a hora que quiser depois que for terminada essa investigação”, em entrevista de inauguração da TV Brasil, 17/09/2008
[2] afastado desde 01/09/2008, Paulo Lacerda é exonerado do cargo e indicado o posto de “adido policial”, na Embaixada de Lisboa, 29/12/2008
[3] blog do Luis Nassif, “Dilma explica”, 17/09/2008
[4] João 8:32
[5] Nietzsche,
“Quanta verdade pode um espírito suportar?”, Ecce Homo
[6] Bertold Brecht, “Tempos Sombrios”
[7] Ricardo Antunes, entrevista ao Correio da Cidadania, 08/04/2008
[8] Paulo Henrique Amorim, “Golpe já deu certo: Eisenhower manda na CIA, 04/09/2008
[9] Felipe Guerra de Oliveira, Comunidade do Blog do Luis Nassif, 23/12/2008