25 setembro 2007

o pátio dos milagres

enfim reconciliados, o governo Lula e a grande mídia celebram as últimas façanhas da política econômica: crescimento de 5,4% no PIB, com cerca de seis milhões de pessoas saindo da faixa da miséria.

consuma-se o milagre longamente anunciado.

do pacto perverso entre o Bolsa Família e a Selic Banqueiro é gerada a redenção dos miseráveis.

através dos juros do endividamento consignado em folha, com risco zero para os credores, as camadas populares são conduzidas, em longas prestações, ao paraíso do consumo.

pela obra e graça do aumento do salário mínimo se faz a multiplicação da renda a remissão da desigualdade.

parece se confirmar a santidade de uma política econômica capaz de fazer nascer, da estéril combinação de alta taxa de juros e câmbio apreciado, a milagrosa luz do desenvolvimento.

entretanto, de uma análise com mais profundidade dos números das pesquisas recentes sobre o desempenho da economia
[1] a única luz que emerge é a luz do abismo.

o crescimento do PIB está se desacelerando: de 2,8% de expansão no terceiro trimestre do ano passado em relação ao trimestre anterior, caiu para 1% no trimestre seguinte, para 0,9% no primeiro trimestre deste ano e para apenas 0,8 % agora. [2]

e continua bem menor do que os índices da China (11,9%), Índia (9,3%), Rússia (7,8%), Venezuela (8,9%) ou Coréia do Sul (6,7%).
[3]

no cálculo de redução das desigualdades não entram os ganhos de juros. os salários tiveram uma redução relevante na participação no PIB. dentro dessa redução, houve redução nas desigualdades. os juros tiraram cada vez mais recursos da economia. quem arcou com a conta foram os que pagam impostos, basicamente classe média assalariada (através do Imposto de Renda) e consumidores em geral (através dos impostos indiretos). a classe média perdeu renda; as classes D e E ganharam. houve redução na desigualdade apenas nesse universo que perdeu espaço na economia.
[4]

a renda domiciliar per capita para definir um pobre na metrópole paulista seria aquela inferior a R$ 250 por mês (a renda total de um domicílio dividida pelo número de moradores). a do miserável seria inferior a R$ 125 mensais. ao se considerar a pobreza absoluta, os que estão abaixo da média nacional, no Brasil de 2006, a renda de 70% a 80% das pessoas não passava dessa média.
[5]

a distribuição de renda que está em curso é intrasalarial. a riqueza está se concentrando, ou seja, os ricos estão mais ricos. a melhora na distribuição pessoal da renda (que exclui juros e lucros) vem acompanhada da piora da distribuição funcional, que coloca de um lado os salários e, de outro, juros e lucros. uma coisa é a distribuição de renda entre trabalhadores, outra entre eles e os capitalistas. se o Brasil estivesse melhorando, o Bolsa Família estaria diminuindo, porque as pessoas sairiam à medida em que tivessem trabalho e renda própria.
[6]

o extrato mais pobre da sociedade está todo pendurado em políticas de exceção, e a tarefa do Estado consiste nisso. não se pretende diminuir a desigualdade, eliminar a pobreza. quem é beneficiado pelo Bolsa Família não muda de classe social. programas como esse apenas contemplam os gastos mínimos de sobrevivência.
[7]

no pátio dos milagres do governo Lula cada dádiva é sempre um embuste.




[1] IBGE e FGV
[2] Bernardo Kucinski,, “O crescimento do PIB: A conspiração triunfalista”
[3] Paulo Passarinho, “A economia brasileira se recupera?”
[4] Márcio Pochman, citado por Luis Nassif em “O PNAD e os juros”
[5] Vinicius Torres Freire, “O que é um miserável?”
[6] Reinaldo Gonçalves, entrevista ao Jornal do Commercio
[7] Francisco de Oliveira, entrevista ao Brasil de Fato

20 setembro 2007

os miseráveis

no pátio dos milagres do governo Lula, milagres que não se realizam, a panacéia com maior louvação tem sido o Bolsa Família.

para seus devotos, o Bolsa Família possuiria o milagroso poder de promover inclusão social.

como programa compensatório, nos moldes recomendados pelo FMI e o Banco Mundial, o Bolsa Família é o atestado de falência de uma política econômica que produz desigualdade em abundância e faz prosperar a miséria avassaladora.

na imundície do pátio dá prá ver muitos bichos. catam comida entre os detritos. não examinam nem cheiram, apenas engolem com voracidade. não são cães. não são gatos. não são ratos. os bichos, meu deus, são homens... [1]

apesar de sua guerra sem tréguas contra Lula, a grande mídia deu tratamento bastante favorável à divulgação de pesquisas recentes sobre o desempenho da economia. [2] crescimento do PIB (5,4%) puxado pela indústria (6,8%), expansão de 5,7% no consumo das famílias e "6 milhões saíram da faixa da miséria".

foi como se no pátio dos milagres todos os sinos repicassem. desvalidos, mutilados, estropiados enfim ungidos com a graça.

qual este improvável mistério glorioso de uma elite fanatizada numa cruzada para lançar Lula na fogueira dos hereges, enquanto entoa cânticos à política econômica do governo?

as pesquisas apontam que o crescimento do consumo das famílias se deu em ritmo superior ao crescimento da massa salarial, indicando como são mecanismos de crédito que sustentam esse incremento. numa clara demonstração de como tem funcionado a expansão daquilo que alguns já denominam de economia do endividamento. o aumento em 26,5% do saldo das operações de empréstimos a pessoas físicas se reflete nos extraordinários resultados dos balanços dos bancos, com as receitas de crédito embaladas pela consignação em folha. [3]

quando o paralítico atira para longe as muletas, o coxo se endireita sobre os pés e o cego encara com olhos que resplandecem, não há dúvidas de se estar no Pátio dos Milagres [4], onde cada dádiva é sempre um embuste.




[1] Manuel Bandeira, “O Bicho”
[2] IBGE e FGV
[3] Paulo Passarinho, “A economia brasileira se recupera?”

[4] Victor Hugo, “Notre Dame de Paris"

11 setembro 2007

paulicéia ltda.

tão bem organizados vivem e prosperam os Paulistas na mais perfeita ordem e progresso.

esses heróicos sucessores da raça dos bandeirantes são a única gente útil do país, e por isso chamados de Locomotivas.

a cidade é belíssima, e grato o seu convívio. oh! este orgulho máximo de ser paulistanamente!!! [1]

para celebrar seu esplendor hipócrita, São Paulo cunhou uma sucessão viciosa de lendas e de mitos, como um cortejo triunfante de vencedores que se recusa a pagar qualquer tributo à virtude dos fatos históricos.

ah! tudo começa com o largo coro de ouro das sacas de café... [2]

mas por acaso o café floresceu de si próprio?

como capital faz capital antes de ser capital? pela acumulação primitiva: de um lado o Rio, com o comércio de escravos, de outro as fontes fiscais, drenando recursos das províncias superavitárias - Bahia, Pernambuco e Minas - para a deficitária - São Paulo. [3]

os Barões do Café jamais se metamorfosearam em Capitães de Indústria. o capital industrial brasileiro não surge num momento de crise do complexo cafeeiro exportador. ao contrário, desponta num instante de auge, em que a taxa de rentabilidade ainda alcançava níveis elevadíssimos. [4]

os vultosos excedentes líquidos foram desviados para o financiamento da indústria por meio dos bancos, que cumpriram o papel de transmissão entre a acumulação originária de capital na cafeicultura e a acumulação propriamente capitalista na indústria. [5]

o núcleo inicial da burguesia industrial brasileira encontra suas origens na emigração européia. [6] entretanto, ao contrário do mito do self-made man, de origem modesta e que constitui fortuna graças ao trabalho árduo e persistente, o imigrante que vem a se tornar proprietário de empresas no Brasil aqui já chega com alguma forma de capital. [7]

para a burguesia industrial nascente, a base de apoio para o início da acumulação não é a pequena empresa industrial, mas o grande comércio ligado às atividades de importação e exportação. do mesmo modo que a exportação, a importação é dominada em grande parte por empresas estrangeiras. por sua vez, o comércio interno é controlado pelos importadores. graças a sua origem social, o burguês imigrante encontra facilmente um lugar no grande comércio. [8]

desse modo, o latifúndio exportador, a importação, o grande comércio e a burguesia imigrante, que vem a ser o núcleo da burguesia industrial nascente, estão todos intimamente conectados – fazendo com que, desde os primórdios, a burguesia brasileira nunca tenha se distinguido pelo caráter “nacional”.

ainda na República Velha, as divisas empregadas na sustentação do preço do café no mercado internacional já superavam as receitas com as exportações. [9] o subsídio estatal ao café não apenas dificultou a acumulação de capital em outros setores como circunscreveu a concorrência, impedindo a expansão de outros segmentos.

muito embora o grande salto na industrialização brasileira tenha se dado com Getúlio, a partir de 1930, não há em São Paulo uma rua sequer, uma estrada, um monumento, uma praça de periferia que preste homenagem a Vargas. [10]

já para os Bandeirantes, aqueles bravos empreendedores privados tão eficientes em sua caça às esmeraldas para exterminar índios e escravos foragidos, São Paulo ergueu não só um monumento como em denominação deles reservou o próprio palácio do governo estadual. Borba Gato ganhou uma enorme estátua. e Raposo Tavares – que de suas marchas pelo sertão retornava com caixotes repletos com milhares de orelhas salgadas das vítimas de suas matanças - tem uma rodovia inteira.

São Paulo tem sido fiel guardião da supremacia natural do liberalismo, sem que admita sequer compensações sociais bancadas pelo Estado (ou seja, pelo contribuinte) [11] - como se o mercado fosse bom também para produzir valores, e não apenas lucros. [12]

enquanto execra o Bolsa Família, que corresponde a uma ínfima fração (0,4% do PIB) da despesa com os juros com a dívida interna (cerca de 7% do PIB), São Paulo abriga a sede de 12 dos 15 maiores bancos brasileiros. [13]

a capital brasileira do capital, em seus delírios de grandeza, nunca deixou de sonhar com a secessão, pois ao se ver como dínamo econômico que não pode parar e funciona por si próprio, São Paulo julga prescindir do Estado, entendendo-se na condição de locomotiva arrastando uma composição de vagões vazios.

sob a sombra da bandeira desfraldada do estado mínimo, São Paulo discretamente se apraz com as desonerações tributárias, os créditos oficiais subsidiados e as renúncias fiscais.

e sua auto-imagem de próspera ilha de capitalismo num país fadado ao atraso, por absoluta falta de vocação para o trabalho e sem nenhuma propensão a poupar, nada mais é que o reflexo da face nua do isolamento de São Paulo, sua incapacidade em compreender a diversidade regional brasileira e um dos motivos da impossibilidade de produção cultural paulista com âmbito nacional.


Paulicéia Ltda. nada tem contra o apoio recebido por Lula nos Estados nordestinos, já que neles se encontra a maioria dos eleitores devidamente subornados pelo Bolsa Família, mas, a bem da Nação, propõe que o presidente faça para o Nordeste uma longa viagem, com passagem só de ida. [14]

sem jamais lograr um consenso sobre juros e câmbio, São Paulo firmou consigo mesma um pacto tácito contra a carga tributária. [15] contudo, da arrecadação com impostos, apenas 33% são oriundos de receitas, enquanto 67% provêm das contribuições, caracterizando um sistema fiscal socialmente injusto e altamente concentrador de renda.

matriz do cansaço de uma burguesia sem ousadia, para a qual a miséria sempre foi pesadelo e nunca desafio, São Paulo é um palco de bailados, onde sapateiam as apoteoses da ilusão... [16]




[1] Mário de Andrade, "Macunaíma" e "Paulicéia desvairada"
[2] Mário de Andrade, "Paisagem nO 2"
[3] Francisco de Oliveira, "A hegemonia inacabada"
[4] João Manuel Cardoso de Mello, "O capitalismo tardio"
[5] Jacob Gorender, "A burguesia brasileira"
[6] Luiz Carlos Bresser-Pereira, "Origens étnicas e sociais do empresário paulista"
[7] Warren Dean, "A industrialização de São Paulo"
[8] Sérgio Silva, "Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil"
[9] Wilson Suzigan e Annibal Villanova Villela, "Política de governo e crescimento da
economia brasileira (1889-1945)"
[10] Cristóvão Feil, no blog “Diário Gauche”, www.diariogauche.blogspot.com
[11] Otavio Frias Filho, “Suspense”
[12] FHC, em matéria de João Moreira Salles, revista Piauí, 08/2007
[13] Jorge Alano, “Economia e política no processo de financeirização do Brasil”
[14] João Mellão Neto, “Os perigos da incomPeTência”, 03/08/2007
[15] vide Luis Nassif, “Dos consensos limitados”, 10/09/2007
[16] Mário de Andrade, "Paisagem nO 2"