03 março 2006

A PESTE GLOBAL

Usando uma máscara contra gases, Tirésias anuncia uma nova cena :

“A Peste Global :
onde a moléstia escapa da alma dos homens
e contamina o planeta inteiro.”


O cenário é totalmente branco. Iluminação forte e chapada. Não há sombras. Manequins pendem do teto, bonecos de corpo inteiro também totalmente pintados de branco. Estão suspensos de cabeça para baixo por cordas de um vermelho intenso, florescente.

A Peste global é asséptica. É a doença que realizou a aspiração definitiva da enfermidade e tornou-se hegemônica. Apresenta-se como a única forma possível de saúde e é o modo de vida da sociedade contemporânea.

Os atores se vestem com malhas colantes de cor branca. Têm os rostos, braços, pernas e pés maquiados de branco. As falas são pronunciadas de forma intercalada enquanto os atores movem-se entre os manequins.

“A Peste ! Ela voltou !”
“Como voltou ? Alguma vez teria ela se ido ?”
“A Peste ? Ela está por toda a parte !”
“Contaminou a todos ...”
“Mas ela sempre esteve aqui !”
“A Peste surgiu com o mundo ?”
“Não ! Não ! Ela veio com o homem.”
“Então é o homem a própria Peste ?”
“Não ! Mas a Peste está dentro do homem.”
“Mas como ? Se vemos a Peste no mundo...”
“Não no mundo todo. Apenas no mundo dos homens.”
“Foi o homem quem criou a Peste ?”
“Não ! Ela foi criada junto com o homem.”
“A Peste estava no barro de Adão ?”
“Não ! A Peste veio com o sopro de Deus.”
“Como é possível ?”
“Como o Criador inoculou sua amada criatura ?”
“Não teria o homem contraído a Peste ao ser expulso do Paraíso ?”
“Não ! Naquele momento a Peste foi apenas ativada.”
“E a humanidade começou então a padecer os efeitos da Peste. Mas a Peste já estava nos genes desde a criação.”
“ó céus ! ó deuses ! Como pode ser assim ?”
“Uma criatura amaldiçoada desde o surgimento. Um ser já nascido perverso e infame.”
“Isto não é justo ! Isto não é certo !”
“Adão, Jó e Cristo. Foi esse o caminho previsto desde a Criação. E isto não é apenas justo e certo. É o percurso definido em direção à transcendência.”
“Como ! Se por onde passo apenas vejo a Peste. O demônio tomou conta do mundo. Os homens venderam suas almas.”
“Ah ! O dinheiro ! Essa diabólica invenção que reduz tudo a um nada que pode ser trocado por tudo.”
“Foi o homem quem fez as opções. Foi o homem quem escolheu os caminhos.”
“Foi o homem quem elevou a Peste ao estado da arte.”
“Os homens batizaram a Peste com muitos nomes.”
“Clã e Patriarcado.”
“Império.”
“Coroa e Conquista.”
“Família e Estado.”
“Colonialismo.”
“Economia de Mercado”
“Globalização.”
“O homem fez da Peste a sua civilização. Edificou templos e escreveu enciclopédias em homenagem a ela.”
“O homem fez com que a Peste se irradiasse de dentro dele e se disseminasse por tudo o que ele toca.”
“A Peste se tornou maior e mais forte do que o próprio homem.”
“Globalização.”
“O futuro não precisa de nós !”
[1]

“Não teriam sido a competição e o mercado os impulsionadores do progresso ?”
“A civilização humana não tem se aperfeiçoado ao longo do tempo ?’
“Não está se tornando menos injusta ?”
“Não temos hoje a ONU, a Declaração dos Direitos do Homem, o direito de voto ?”
“E a democracia. E a liberdade de escolha. E os direitos das mulheres.”
“E a penicilina.“
“E a robótica, a nanotecnologia, a engenharia genética”
“A Peste torna cegos os que, na verdade, sempre quiseram permanecer na escuridão.”
“A Peste se alimenta da ignorância. E a ignorância é a mãe da ingenuidade e da má-fé.”
“Nunca os ricos foram tão ricos e os pobres foram tão pobres. Nunca a concentração de riqueza e a desigualdade foram tão cruéis e profundas.”
“O que chamam de progresso nada mais tem sido que o acirramento da injustiça e a exaltação da ganância.”
“O homem desenvolveu o poder de levar à extinção não apenas a si próprio como a todas as demais formas de vida no planeta.”
“Um grupo de consultores dos governos e transnacionais mais poderosos do planeta planeja eliminar 100 milhões de habitantes ao ano, para ampliar a racionalidade da economia global.”
[2]
“Tudo será feito sem escândalo: através de fome, desmonte dos serviços públicos, guerras tribais, ajustes fiscais.”
“Ah ! Essa estúpida teimosia dos pobres em reproduzir-se.”
“Ah ! Essa incurável incapacidade genética dos subdesenvolvidos.”
“Ah ! Essa repugnante proliferação e reprodução de pessoas analfabetas, incapazes de ganhar a vida, supérfluas, degeneradas.”
“A prostituição.”
“A transmissão da AIDS.”
“A redução dos gastos sociais.”
“A reincidência de doenças.”
“A malária. A tuberculose. A cólera. As epidemias.”
“Os baixos salários.”
“As privatizações dos serviços públicos.”
“A negação da noção de cidadania”.
“As esterilizações em massa.”
“A contracepção forçada.”
“O mercado mundial é que deve permanecer como o grande princípio organizador da sociedade”.
“A seleção das "vítimas" não deve ser responsabilidade de ninguém, senão das próprias "vítimas".”
“Elas selecionarão a si mesmas a partir de critérios de incompetência, de inaptidão, de pobreza, de ignorância, de preguiça.”
“Numa palavra, elas estarão no grupo dos perdedores".
“Os flagelos dos quatro cavaleiros do Apocalipse: a Conquista, a Guerra, a Fome e a Peste.”

Coro :

“Auschwitz não foi um desvio ou exceção, e sim um altar do capitalismo, último estágio das Luzes e modelo de base da sociedade tecnológica. Auschwitz seria o altar do capitalismo porque ali o homem é sacrificado em nome do progresso tecnológico, porque o critério da máxima racionalidade reduz o homem ao seu valor de matéria-prima, de material; seria o último estágio das Luzes ao realizar plenamente o cálculo, por elas inaugurado; e, finalmente, seria o modelo de base da sociedade tecnológica porque o extermínio em escala industrial consagra até mesmo na morte a busca de funcionalidade e eficiência, princípios fundamentais do sistema técnico moderno.” [3]





[1] “The future doesn’t need us”, Bill Joy
[2] “O Relatório Lugano”, Susan George
[3] Heiner Müller , poeta e dramaturgo alemão

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